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DANTE NOS ESTADOS UNIDOS
Extraído do número 05 - 2006

E então saímos para ver as estrelas e as listas


O interesse por Dante nos Estados Unidos, explicado por uma docente da James Madison University da Virgínia


de Giuliana Fazzion



As imagens são de Sandow Birk, extraídas de Dante, Inferno, 
San Francisco, Chronicle Books. Imagem do inferno dantesco, detalhe

As imagens são de Sandow Birk, extraídas de Dante, Inferno, San Francisco, Chronicle Books. Imagem do inferno dantesco, detalhe

A presença de Dante na cultura americana remonta a 1867, quando o poeta Henry Wadsworth Longfellow concluiu a primeira tradução americana da Divina Comédia. O poeta Longfellow, em 1865, fundou um círculo para a tradução de Dante em sua casa em Cambridge, Massachussetts. O poeta James Russell Lowell, o médico Oliver Wendell Holmes, o estudioso de história George Washington Greene, o editor James Fields e Charles Norton, professor de história da arte, colaboraram com Longfellow na primeira tradução integral da Divina Comédia. Seu grupo se chamou “Dante Club” e, em 1881, tornou-se oficialmente “The Dante Society of America”, cujos três primeiros presidentes foram Longfellow, Lowell e Charles Elliot Norton. Antes da tradução de Longfellow, Dante era pouco conhecido nos EUA (na cultura popular), onde não se falava italiano, não se ensinava freqüentemente a língua italiana, não se viajava para a Europa com assiduidade, e os poucos italianos presentes no País estavam espalhados um pouco por toda a parte.
Como Dante chegou à América? Via Inglaterra, onde, na época do Renascimento, havia um grandíssimo interesse pela língua e pela literatura italianas. Depois, esse interesse diminuiu com o fim da era elisabetana. Mas foi retomado nos últimos anos do século XVIII e nos primeiros dez anos do XIX, e se concentrou muitíssimo no estudo da poesia de Dante. Assim, foi em inglês britânico que a Divina Comédia foi traduzida inteiramente pela primeira vez. E foi assim que atravessou o oceano e encontrou seus primeiros leitores americanos.
Não foi, porém, um caso de “vim, vi, venci”: Dante, como todos os imigrantes do Velho Continente, teve de esperar muitos anos, pacientemente, antes de conquistar seu lugar na nova terra.
Por muitos aspectos, poderia parecer singular o fato de o interesse por Dante ter encontrado nos Estados Unidos da América um fertilíssimo terreno de desenvolvimento, desde o início e das mais diversas formas. A imagem da América expansiva e um pouco barulhenta, difundida pelo cinema e por parte da literatura, não corresponde totalmente à verdade. Pois, na realidade, a América oculta componentes complexos, tortuosos, e continua a ser atravessada, como escreveu Perry Miller (autor de estudos sobre a ideologia puritana), pela “corrente subterrânea” das tensões ético-religiosas ligadas às suas origens, ao seu nascimento. Essa sensibilidade perante o aspecto ético-religioso é um dado fundamental para entender a América, que “nasceu como mito religioso e se configurou inicialmente como sonho de uma nova polis do outro lado do oceano, de uma nova Jerusalém desejada com intensidade quase agostiniana e ao mesmo tempo com vigor dinâmico e ativista. Essa vasta e intacta paisagem, esse espaço americano era um campo de aventura e terreno cheio de misteriosas simbologias”. Apesar de todas as enormes mudanças que ocorreram e do fato de milhões de imigrantes terem depois, de todas as partes, se transferido para o Novo Mundo, a base de tudo continuou a ser a aventura dos grupos puritanos, os quais, perseguidos na Inglaterra, atravessaram o Atlântico a bordo da “Mayflower” no final do outono de 1620 e fundaram nas vizinhanças de Cape Cod a colônia de Plymouth.
Os puritanos eram zelosos, rigorosos, exasperavam até o mais lúgubre fanatismo o princípio protestante da consciência livre, da relação direta e dramática entre o homem e Deus. E, sobretudo, tinham uma sensibilidade pronta a inflamar-se pelos símbolos e pelas alegorias, enquadravam eventos, pessoas e natureza numa espécie de código de sinais e figuras, quase tardo-medieval. Além disso, como diz um escritor ao falar da filosofia americana, o caráter da religiosidade puritana se desenvolveu desde as origens numa direção rigorosamente lógico-intelectualista, graças à qual não era possível chegar, ou tentar chegar, a entender o próprio Deus sem desenvolver “uma história de disciplina da mente humana”.
Para uma cultura como a puritana, caracterizada por um trabalho de escavação tenaz, muitas vezes obsessivo (basta lembrar os diários dos puritanos), e pela recorrente análise dos temas do pecado e da salvação, boa parte da literatura italiana veio a parecer “cheia de um caráter profano”, impregnada de espírito “papista” e “paganizante”. Aos puritanos mais obstinados, poderia chegar a parecer que na literatura italiana se concentrasse tudo aquilo de que o homem puritano e “virtuoso” deveria fugir.
Enquanto isso, Dante parecia ser o único, ou quase o único, passível de ser “recuperado”, pelas qualidades de energia ética e firmeza de caráter. A própria mídia protestante já havia lançado mão, para as suas polêmicas antipapistas, de posturas e trechos de Dante. Um exemplo significativo nos é oferecido, nos Estados Unidos, pelo eminente teólogo e pregador John Cotton, que incluiu Dante numa série de figuras que considera chamadas por Deus a testemunhar em favor de um “primeiro renascimento”, ao qual se seguiria, por obra do protestantismo, uma completa “ressurreição” do cristianismo baseado no “ministério do Evangelho”.

Entre o Iluminismo e o Pré-Romantismo
Mas no século XVIII e no período pré-romântico, o puritanismo ia já absorvendo outros filões culturais e, com as influências exercidas pela nova física newtoniana, por Locke e pelo movimento iluminista em geral, ia-se cada vez mais estreitando “a relação entre Deus e a razão”. Durante todo o século XVIII, o intelectualismo teológico e o ativismo puritano iam-se fundindo com posições de iluminismo moderado e com conceitos como liberdade e salvação cada vez mais empregados em sentido político-constitucional. A respeito da literatura e da própria imagem da Itália continuava, porém, a prevalecer a postura de desconfiança-deferência. Associava-se à imagem da Itália a evocação de paixões exageradas, de fascinantes e ao mesmo tempo desastrosas seduções expressas numa “língua elegante”. No entanto, Dante parecia situar-se numa espécie de zona de grandeza severa e solitária, o que foi ainda mais sublinhado com a difusão das primeiras tensões e inquietações pré-românticas, do gosto pelo excelso e pelo sublime. Não deve admirar que a primeira tradução de um trecho de Dante que surgiu nos Estados Unidos tenha sido a do famosíssimo episódio, horrível e patético, do conde Ugolino, publicado na revista New York Magazine em 1791. O autor era William Dunlap, escritor, pintor, ativíssimo e aventureiro empreendedor teatral, diretor e operador cultural.
Paolo e Francesca

Paolo e Francesca

Em 1843, Thomas W. Parsons publicou em Boston a primeira tradução americana de uma boa parte da Divina Comédia (os primeiros 10 cantos do Inferno). Devemos dizer que naquele tempo, quando escreviam sobre Dante, os críticos e os escritores se baseavam no modelo inglês. Mas nos círculos intelectuais americanos havia um desejo de independência da influência inglesa tão grande, que deu uma nova vitalidade à cultura nacional. Esses intelectuais americanos puseram sua rebelião em prática importando novas correntes de arte e de pensamento das literaturas do continente europeu. E entre essas correntes, despontando sobre todas as outras, estava a representada por Dante, ao qual todos os intelectuais se dirigiram para encontrar a beleza de novos mundos e novos horizontes de pensamento e de arte. Ergueram para o poeta um monumento próximo aos de Shakespeare e Milton, e Dante se tornou para eles quase o símbolo de uma cultura cosmopolita a ser seguida como ideal de um futuro iminente. Esse movimento levou muitos estudantes e estudiosos americanos a viajarem para a Europa, sobretudo para Florença, Roma, Veneza e Paris. Graças a um contato crescente, chegou-se a considerar a literatura italiana superior à francesa. Num artigo publicado em 1817 na revista literária North American Review, dizia-se que a língua italiana, muito mais que a francesa, se adaptava amplamente a todo tipo de composição; tinha mais dignidade e força, uma ampla facilidade de expressão, uma imensa doçura e harmonia. As revistas literárias North American Review, entre 1815 e 1850, ano de seu encerramento, e American Quarterly Review, em seus dez anos de vida, publicaram mais ensaios, artigos e notas sobre a literatura, a arte e a história italianas do que os que dedicaram à cultura de outros países europeus, como a França e a Alemanha. Já em 1822, traduções inglesas britânicas de Dante, Petrarca, Ariosto e Tasso haviam sido reimpressas na América. E, em 1850, 103 textos italianos (algumas reimpressões de traduções já publicadas na Inglaterra e novas versões feitas nos Estados Unidos) chegaram às tipografias americanas. Esse período corresponde ao Romantismo, quando a América encontrou pela primeira vez a Idade Média. E o melhor guia para conhecer o verdadeiro mundo medieval foi a Divina Comédia, que deu aos americanos o quadro completo desse período histórico, a chave para entrar na poesia e na arte, na filosofia e na teologia, no pensamento religioso e político medievais. Mas Dante e seu mundo não se oferecem facilmente às mentes despreparadas. No canto I do Inferno, Dante diz que “longo estudo” e “grande amor” são o preço a pagar se se quer “penetrar” o segredo de sua arte e a essência do espírito medieval, do qual a Divina Comédia é a mais alta expressão. Deveriam se passar muitos anos de duro trabalho e perseverança antes que Dante e a Idade Média conquistassem o lugar que ocupam hoje na cultura americana.
Como mencionado anteriormente, a primeira tradução americana de um trecho de Dante (o episódio do conde Ugolino) foi publicada em 1791.
Uma das primeiras traduções que chegaram aos EUA foi a do autor inglês Henry Cary, que traduziu o Inferno em 1805 e toda a Divina Comédia em 1814.
Mas mesmo boas traduções como a de Cary não são capazes de oferecer um conhecimento profundo da arte do grande poeta, quando não se é capaz de compreender a língua em que sua Comédia foi escrita.
O primeiro professor oficial de italiano nos Estados Unidos de que temos conhecimento foi Carlo Bellini, a quem, em 1779, graças à ajuda de seu amigo Filippo Mazzei e com a recomendação do presidente Thomas Jefferson, foi conferida a cátedra da faculdade de Línguas da Universidade “William & Mary”. Bellini aproveitou essa oportunidade para iniciar cursos sobre Dante. Deixou a cátedra em 1803.
Numa ainda pequena Nova York viria a estabelecer-se, em 1805, Lorenzo Da Ponte (1749-1838), o aventuroso literato vêneto que, banido de Veneza, mudou-se primeiramente para Dresdem e depois para Viena, a corte do imperador José II, onde preparou, para Mozart, os libretos das Bodas de Fígaro, de Assim fazem todas e do Don Giovanni. Entre amores e intrigas, deixou Viena e foi para Londres. Desposou uma inglesa e depois se estabeleceu nos Estados Unidos. Lá foi o primeiro a abrir uma escola particular, na qual o italiano finalmente era ensinado por um professor competente. Da Ponte, em 1807, fundou a Academia de Manhattan, onde ele e sua esposa ensinavam latim, francês e italiano aos jovens. Naquele mesmo ano publicou em Nova York uma pequena autobiografia em italiano à qual acrescentou em apêndice as traduções do episódio do conde Ugolino e de algumas partes do Inferno. Esse livro, que Da Ponte montara para suas aulas, é importante porque foi o primeiro texto em italiano a ser impresso na América. Da Ponte adorava Dante, e assim que seus alunos começavam a saber usar os verbos, os adjetivos e os substantivos, ele os fazia ler a Divina Comédia e os estimulava a aprenderem versos de cor. Foi chamado a lecionar italiano no Columbia College, e também ali encontrou uma maneira de introduzir temas dantescos. Enquanto Da Ponte lecionava em Nova York, em Boston se estabelecia um jovem siciliano, Pietro D’Alessandro, poeta romântico em exílio político, que ganhava a vida dando aulas de italiano; mais tarde uniu-se a ele outro siciliano, Pietro Bachi, com uma preparação cultural excelente, que o levaria a lecionar italiano em Harvard, onde seria o primeiro professor dessa língua, tornando-se depois assistente de George Ticknor. Este último, professor de Línguas e Literaturas Estrangeiras, em 1831 dedicou a Dante um primeiro curso específico. Ticknor deixaria Harvard em 1835 e seu sucessor na cátedra de Línguas e Literaturas Estrangeiras seria Henry Wadsworth Longfellow. Longfellow, a partir de então, começaria a ensinar Dante intensamente e continuaria a ensiná-lo durante vinte anos, ou seja, durante todo o período em que lecionou em Harvard. No inverno de 1838, Longfellow leu o Purgatório a sua classe de Harvard e o comentou. Foi para esse curso, justamente, que começou a traduzir versos do Purgatório para o inglês. Longfellow iniciou a tradução sistemática do Purgatório em 1843, mas esse foi um lento processo, mesmo porque, nos dez anos que se seguiram, dedicou-se a trabalhos originais. Terminou-a em 1853. Depois de uma outra longa pausa, devida à trágica morte da esposa, voltou à tradução da Divina Comédia em 1861. Desta vez trabalhou com tenacidade e em 1863 completou o Inferno. A Divina Comédia estaria completamente traduzida em 1867.
Às portas da cidade de Dite

Às portas da cidade de Dite

Houve outras traduções melhores, como as de Cary e de Wright, mas eram traduções britânicas. A tradução de Longfellow era um tributo da América à genialidade do imortal florentino.
James Russell Lowell (1819-1891) herdou o lugar de Longfellow em 1855. Não ficou famoso por ter traduzido a Divina Comédia, mas é lembrado por ter escrito um ensaio muito importante sobre Dante. Em Harvard, era popular por seu curso sobre o poeta florentino. Em 1877, tornou-se ministro das Relações Exteriores e foi enviado à Espanha. Deixou o cargo de professor a outro colega e amigo, Charles Norton.
Norton (1827-1908), editor, professor de história da arte e grande amigo e admirador de Longfellow, tornou-se o novo professor de Dante em Harvard. Sua paixão por Alighieri levou-o a entender intimamente o grande poeta e seu mundo. Sua grande sensibilidade à beleza artística, seu entusiasmo, que conseguia comunicar aos outros, lhe conquistaram muitos amigos e admiradores, não apenas nos Estados Unidos, mas também na Inglaterra e na Itália, e seu nome se tornou familiar aos estudiosos de Dante europeus.
Norton trabalhou muito na fundação da “Dante Society” em Cambridge. No mês de fevereiro de 1881, houve uma reunião na casa de Longfellow, onde já se formara, em 1865, o círculo para a tradução de Dante. Lá se decidiu formar a sociedade da qual Longfellow foi eleito presidente. Mas, dois meses depois, em maio de 1882, Longfellow morreu e a presidência passou a Lowell. Em 1891, com a morte de Lowell, a presidência da sociedade passou a Norton, que a manteve até sua morte, em 1908.
Em 1887 a “Dante Society” de Cambridge instituiu o prêmio que seria entregue todos os anos “a estudantes ou recém-formados de Harvard para o me­lhor ensaio sobre temas dantescos”. Essa tradição existe até hoje.
As aspirações americanas a aprender tudo o que dizia respeito à Itália, à sua arte, à sua literatura, como dissemos, derivavam da Inglaterra. Mas, a partir de 1830, os americanos começaram a viajar e a descobrir a Itália. Nos consulados americanos das maiores cidades italianas não havia muito o que fazer, e por isso os cônsules passavam o tempo aprendendo a língua, a literatura, a arte, a história, e todas essas experiências eram reunidas em livros, diários, que depois o público americano lia com grande interesse.
Na Europa ocorria outro fenômeno, que contribuiu para o enriquecimento do conhecimento da literatura italiana nos Estados Unidos. Na época pós-napoleônica, o fracasso de diversos movimentos revolucionários impeliu muitos italianos de uma certa cultura a buscarem asilo nos Estados Unidos, onde sobreviviam ensinando a língua e a literatura italianas. Foi por meio desses canais que o povo americano conheceu a Itália, apreciou suas belezas naturais e artísticas e aprendeu sua grande história.
Florença e Roma eram cidades irresistíveis para os americanos. Jovens artistas americanos chegavam a Florença e alguns passavam lá o resto de suas vidas. O nome de Florença era inevitavelmente associado a Dante, e aqueles que estudavam seriamente a Divina Comédia estavam convencidos de que não poderiam entendê-la se não visitassem Florença.
Em todo o século XIX aparecem constantemente ensaios sobre Dante em revistas literárias americanas. Não fazem, porém, nenhuma referência à alegoria ou ao simbolismo, mas à história de sua cidade, ao itinerário romântico de seu amor, a suas aventuras políticas, ao seu exílio.
O interesse por Dante recebeu um grande impulso no período entre 1880 e 1890, que corresponde a um momento de grande avanço na cultura geral dos Estados Unidos. Isso se nota pelo grande número de publicações sobre Dante produzidas nesses dez anos. Mas duas coisas em particular são muito importantes: uma é que essas publicações vêm de centros como Chicago, St. Louis, St. Paul e Denver, e também do Sul e do Far West; a outra é a contribuição das escritoras americanas, que sempre tiveram um lugar importante na história cultural local, mas dessa vez colaboraram de modo bastante relevante para a fortuna do poeta florentino. E isso porque, antes de todos os outros estudiosos, elas encararam a filosofia de Dante. Merece ser lembrada a escritora Susan E. Blow, cujos artigos foram reunidos e publicados num livro intitulado A Study on Dante. Esse livro representa a primeira tentativa feita por um estudioso de Dante americano de analisar a estrutura da Divina Comédia com o propósito de descobrir detalhadamente o significado filosófico e espiritual da sua alegoria.
Com a aproximação do final do século XIX e do Romantismo, e com a vida americana influenciada pelas descobertas científicas, mudanças ocorreram também na literatura e nas artes. A nova tendência era o Realismo, e Dante, o herói do Romantismo, parecia fadado a perder inevitavelmente sua grande força de atração entre o grande público. Em vez disso, o estudo de Dante ganhou em intensidade e profundidade nos círculos intelectuais e nos institutos universitários de todo o país. Novos livros, escritos não mais por diletantes, mas por estudiosos de grande reputação, encontraram um público entusiasmado entre as classes intelectuais. Portanto, apesar das mudanças nas idéias e no gosto, Dante permaneceu em seu alto pedestal americano, no qual havia sido posto pelos três grandes de Cambridge e por seus sucessores.

O século XX
No século XX, Dante “is still alive and well”. A “Dante Society”, a partir de 1954, transformou-se na sociedade por ações “Dante Society of America Inc.”, e seu Annual Report já era um dos mais importantes instrumentos de consulta: lá se comenta a bibliografia dos estudos dantescos, lá se publicam ensaios, notas, conferências muitas vezes de notável interesse. A Sociedade tem uma rica biblioteca de literatura dantesca na Harvard University, que, na América, só fica atrás da que a Cornell University veio a herdar do estudioso e bibliófilo Daniel Willard Fiske. A sociedade desenvolve também atividades promocionais, e gerencia um “Dante Prize” destinado a teses de graduação e pesquisas sobre temas dantescos.
O estudo americano de Dante já chegou a dar contribuições extremamente notáveis. Por exemplo, o número de poetas do século XX influenciados por Dante é relevante. Há alguns anos, saiu um livro intitulado The Poets’ Dante, uma coletânea de ensaios escritos por famosos poetas do século XX. Os organizadores, Peter Hawkins (professor de Estudos Religiosos na Universidade de Boston) e Rachel Jacoff (professora de Literatura Comparada e de Estudos Italianos no Wellesley College), contam na introdução que, como a maior parte dos leitores de Dante, eles entraram em contato com o poeta florentino por intermédio de Ezra Pound e Thomas S. Eliot. Em seus estudos em nível de mestrado na faculdade de Inglês, o italiano se tornou a língua a ser aprendida para estudar Dante. Para eles, Dante era realmente “o altíssimo poeta”, e justamente por isso liam em particular James Merrill, Gjertrud Schnackenberg, Charles Wright, Seamus Heaney, poetas que tinham uma afinidade com Dante e para com o qual se sentiam endividados, pela inspiração que dele haviam recebido. Daqui surgiu a idéia de reunir ensaios escritos por poetas contemporâneos que contam como “encontraram” Dante pela primeira vez, o que os atraiu para ele, o que os manteve à distância do poeta, e se os escritos dele tiveram uma influência direta sobre seus trabalhos. Há ensaios de Ezra Pound, Thomas S. Eliot, Osip Mandelstam, Robert Duncan, Howard Nemerov, Seamus Heaney, Jacqueline Osherow, Robert Pinsky, Rosanna Warren, Daniel Halpern, Mark Doty, o belíssimo ensaio de Jorge Luis Borges, entre outros.

Traduções americanas da Divina Comédia
Atualmente existem mais traduções de Dante em inglês que em qualquer outra língua, e os Estados Unidos produzem mais traduções de Dante que qualquer outro país. O poeta Eliot, em 1929, disse que Dante e Shakespeare dividem o mundo moderno entre si: a parte do mundo que “pertence” a Dante aumenta a cada ano. Em 1989, cerca de sessenta anos depois de Eliot, o escritor Stuart McDougal disse que o impacto de Dante sobre os maiores escritores do mundo moderno superou grandemente o de Shakespeare. De fato, Dante virou o jogo. “Migrou” do campo literário, cultural e acadêmico para o mundo externo e teve um impacto tanto sobre o público instruído quanto sobre o não instruído.
O século XX é o período das grandes traduções. E por isso começou no século XX um debate que em certo sentido continua ainda hoje: tradução em prosa ou poesia? Alguns são contrários à tradução inglesa usando o terceto, e estas são as razões: 1) o inglês é pobre em rimas; 2) esse “uso do terceto” não se presta à língua; 3) o verso em inglês não se adapta à formação constante da rima.
Traduttore traditore. Todo tradutor de Dante sabe o quanto isso é verdade. Dizendo isso se reconhece com humildade a extrema dificuldade de fazer justiça a Dante, considerado por Byron “o mais intraduzível dos poetas”. De fato, qualquer tradutor reconhece que, procurando conservar certos aspectos da poesia, outros são perdidos na tradução. E muitos desses tradutores concordam com Dorothy Sayers, segundo a qual o maior elogio que sua tradução possa receber é que seja um impulso, um estímulo aos leitores a que leiam Dante na língua original.
O que se espera de uma tradução? Que comunique o sentimento e o sentido do trabalho original. No caso da Divina Comédia, a opinião está dividida entre aqueles que afirmam que o espírito e o sentido dessa obra se comunica melhor ao leitor por meio de uma tradução em verso e aqueles que preferem uma tradução em prosa. Muitos críticos concordam, de qualquer forma, que tanto a tradução em prosa quanto a tradução em verso apresentam suas vantagens. A tradução em prosa comunica melhor o sentido literal, ao passo que a tradução em verso pode comunicar o sentido do movimento e do ritmo da poesia de Dante. No ensino da obra-prima de Dante nos Estados Unidos são usadas edições bilíngües, nas quais o texto original se encontra na página à esquerda e a tradução na da direita. O poeta Thomas S. Eliot e outros afirmaram ter aprendido a ler italiano com essas edições.

As traduções mais usadas nas universidades americanas
John D. Sinclair (prosa, edição bilíngüe). Esta é ainda a edição mais popular. Sinclair escolheu a prosa para alcançar seu objetivo, que era combinar uma tradução literal, ou quase, do texto italiano a uma boa forma da língua inglesa.
Essa tradução é renomada por ser cuidadosa e expressa num inglês elegante. Notas explicativas, consideradas por muitos professores “uma pequena jóia”, se encontram no final de cada canto. Elas contêm o resumo do canto, no qual o tradutor trata do aspecto histórico, das qualidades estéticas e fornece elementos de crítica. Ainda no final de cada canto há breves notas numeradas que chamam a atenção para alguns termos do texto.
Charles S. Singleton (prosa, edição bilíngüe). É uma tradução clara e acurada. Cada cantiga é publicada em dois volumes; um contém o texto e a tradução e o outro os comentários de teologia e mitologia, análises lingüística, histórica e biográfica. Faltam os resumos dos cantos.
John Ciardi (poesia). Popular, mas tem suscitado também controvérsias. Ciardi usou o dummy, ou “terceto defeituoso”, para empregar um inglês idiomático e ao mesmo tempo para comunicar as sensações do poema. A crítica contesta seu uso de algumas “licenças poéticas” não necessárias.
Mark Musa (Inferno, poesia). Sua versão é muito usada nos college. Escolheu uma forma poética sem rima para obter uma tradução acurada.
A Universidade de Harvard usa a tradução de Jean e Robert Hollander para o ensino do Inferno e do Purgatório, e a de Mandelbaum para o Paraíso.

Conclusão
No verão de 1999, a seção “Bookend” do New York Times foi inteiramente dedicada ao criador de histórias em quadrinhos Seymour Chwast, que escolheu para essa edição o mundo da Divina Comédia. A página foi intitulada: A Divina Comédia de Dante: O Diagrama. Essa divertida representação dos três reinos ofereceu ao leitor dominical da seção dedicada à resenha de livros uma visão esquemática da Comédia dantesca. Uma pergunta que se pode fazer é: por que os quadrinhos apareceram lá, sem explicações particulares, num dos jornais mais famosos e talvez mais vendidos do mundo? E por que o New York presumia que um leitor normal conhecesse o poema?
O fato é que Dante é conhecido não apenas por aqueles que leram o poema ao menos uma vez, mas também por um número ainda maior de pessoas que nunca leram sequer uma página dele. Dante é uma figura popular da cultura contemporânea americana. Por exemplo, diversos filmes americanos - O Balconista (Clerks, 1994), Seven (1995), O Inferno de Dante (Dante’s Peak, 1997) - fazem alusões ao poema ou o tomam como ponto de partida. Existe até um conjunto de rock que adotou o nome “Divine Comedy” com a intenção de ser facilmente lembrado. Os Estados Unidos têm muitos restaurantes e bares chamados “Dante’s Inferno”. Esta última expressão é comumente usada por jornalistas para descrever situações sociais e políticas particularmente críticas.
Como se viu, a fortuna de Dante nunca declinou em setecentos anos, e nunca declinará, pois sua mensagem é universal e sempre atual.


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