Os judeus escondidos no mosteiro
O Santo Padre ordena...
Publicamos o memorial inédito do mosteiro dos Quatro Santos Coroados, relativo aos anos da ocupação nazista de Roma: a ordem de Pio XII para que o mosteiro fosse aberto aos perseguidos, os nomes dos judeus escondidos, a vida no convento durante aqueles anos terríveis
de Pina Baglioni
A entrada do mosteiro dos Quatro Santos Coroados
“Aqui entre nós” é o mosteiro de clausura das agostinianas anexo à milenar Basílica dos Quatro Santos Coroados, às costas do monte Célio, em Roma. Quem toma a palavra é irmã Rita Mancini, madre superiora à frente da comunidade monástica agostiniana desde 1977.
Solicitadas e encorajadas pelo congresso internacional “Pio XII. Testemunhos, estudos e novas aquisições”, organizado por 30Dias em 27 de abril na Pontifícia Universidade Lateranense, as claustrais dos Quatro Santos entraram em contato com a nossa revista para oferecer sua contribuição: algumas páginas preciosíssimas do Memorial das religiosas agostinianas do venerável mosteiro dos Quatro Santos Coroados. Ou seja, uma parte do diário oficial da comunidade, que reúne desde 1548 - ano em que as agostinianas se assentaram nos Quatro Santos - as crônicas da vida monástica.
Graças às agostinianas dos Quatro Santos há a possibilidade de abrir uma janela para aquele microcosmo separado do mundo e inesperadamente chamado pelo papa Pio XII a abrir as portas, levantar as grades e deixar-se envolver, arriscando-se a graves conseqüências, com os destinos de muita gente cuja vida estava em perigo.
“Quando cheguei aqui, em 1977, conheci irmã Emilia Umeblo”, conta a madre superiora dos Quatro Santos. “Nos tempos da ocupação, ela era a irmã ‘externa’, ou seja, a pessoa autorizada, por motivos práticos, a sair da clausura. Ela me falou bastante daqueles meses e do cuidado com os aspectos logístico-organizativos para facilitar a hospitalidade dos refugiados judeus e de muitos outros antifascistas. Entre outras coisas, irmã Emilia estava em constante contato com Antonello Trombadori, dirigente do Partido Comunista e chefe dos grupos armados partigiani de Roma, e com muitos outros opositores do nazi-fascismo. Supliquei várias vezes a irmã Emilia que escrevesse tudo o que me contava. Infelizmente, ela nunca quis fazer isso. Ela já morreu e levou suas lembranças consigo”.
Por sorte, restam as páginas que irmã Rita Mancini pôs à disposição de 30Dias. Elas dizem respeito a um período de tempo que vai de 1942 a 6 de junho de 1944 e que compreende, portanto, o período da ocupação nazista em Roma até a libertação da cidade, ocorrida em 4 de junho de 1944.
Pio XII na praça São João de Latrão, em 13 de agosto de 1943, depois dos bombardeios sobre o bairro San Giovanni, de Roma
E bem no meio da tempestade, enquanto o claustro do século XIII se enche de palha e feno, para que toda aquela pobre gente possa repousar, nada se interrompe: trabalho e celebrações litúrgicas continuam, sob a paternal vigilância de dom Carlo Respighi, então reitor da Basílica dos Quatro Santos e prefeito das cerimônias apostólicas, morto em 1957. Num grande local adjacente à horta as monjas escondem nada menos que onze automóveis, inclusive o do marechal Pietro Badoglio, chefe do governo militar italiano, que fugiu de Roma logo depois do 8 de Setembro. E ainda sete éguas, quatro vacas...
Mas, pelo que ficamos sabendo pelo memorial, mesmo depois da libertação a hospitalidade prosseguiu nos Quatro Santos: “Recebemos ordens da Secretaria de Estado para que hospedemos com a mais escrupulosa precaução o general Carloni, que vinha sendo procurado para ser levado à morte”. Trata-se de Mario Carloni, general dos atiradores que havia sido chefe da 4ª divisão alpina Monte Rosa da República de Salò.
Já se sabia que o mosteiro romano fazia parte da densa rede de institutos católicos que hospedaram judeus e perseguidos políticos durante a ocupação fascista: ele está na Relação das casas religiosas em Roma que hospedaram judeus publicada na seção de documentos da Storia degli ebrei italiani sotto il fascismo de Renzo De Felice, editada pela primeira vez em 1961 (Turim, Einaudi, 1993, pp. 628-632), onde se lê que as “irmãs agostinianas dos Quatro Santos Coroados” hospedaram 17 judeus. A relação, que retoma um artigo da Civiltà Cattolica de 1961 assinado por padre Robert Leiber, continua a ser ainda hoje um dos documentos-chave para todas as investigações que se seguiram. Até para as mais recentes. Como a iniciada em 2003 pela Coordenação dos Historiadores Religiosos, sobre os judeus hospedados nos edifícios católicos em Roma entre o outono de 1943 e 4 de junho de 1944. Irmã Grazia Loparco, docente de História da Igreja da Pontifícia Faculdade Auxilium e membro da Coordenação, em janeiro de 2005 comunicou à agência internacional Zenit os primeiros resultados da investigação: os judeus salvos em Roma dentro dos institutos religiosos foram, segundo uma estimativa por baixo, pelo menos 4300.
Tanques alemães nas ruas do centro de Roma, em setembro de 1943
O que acrescentam então as páginas do memorial agostiniano que 30Dias publica? “Basta ler, não há muito mais a dizer: nossas irmãs não receberam um convite vago da Santa Sé a abrir o convento a quem precisasse. Foi uma ordem”, frisa irmã Rita Mancini. “Um ordem peremptória do Pontífice para hospedar os judeus e quem quer que estivesse arriscando a vida em razão das perseguições dos nazi-fascistas. Compartilhando tudo com eles, fazendo-os se sentirem em casa. Com alegria, apesar do perigo. Se isso for indiferença...”.
Duas irmãs no claustro do mosteiro dos Quatro Santos Coroados, numa foto dos primeiros anos da década de1940
Mas, “mesmo durante o período da ocupação alemã, a Igreja resplandece em Roma”, dirá um grande leigo, o historiador Federico Chabod, aos estudantes da Sorbonne. Resplandece, continua Chabod, “de maneira muito diferente de como aconteceu no século V. A cidade se encontra, de um dia para o outro, sem governo; a monarquia fugiu, o governo também, e a população volta seu olhar para São Pedro. Desaparece uma autoridade, mas, em Roma – cidade única sob este aspecto – existe uma outra: e que autoridade! Isso significa que, ainda que em Roma esteja a sede e a organização militar do Comitê de Libertação Nacional, para a população é muito mais importante e adquire um relevo cada dia maior a ação do papado” (Federico Chabod, L’Italia contemporanea 1918-1948, Turim, Einaudi, 1993, pp. 125-126).
Publicamos aqui, em seguida, o memorial relativo ao período da ocupação nazi-fascista em Roma. Ele compreende também um trecho de um artigo publicado no L’Osservatore Romano.