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ANIVERSÁRIOS
Extraído do número 06 - 2003

Os sessenta anos da Mystici Corporis. A distinção entre Criador e criatura


A atualidade da encíclica de Pio XII que condena o “falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador”


de Lorenzo Cappelletti


Nesta página, detalhes da Última Ceia, de Andrea del Sarto, Museu do Cenáculo de San Salvi, Florença

Nesta página, detalhes da Última Ceia, de Andrea del Sarto, Museu do Cenáculo de San Salvi, Florença

Quem folhear as revistas de dez anos atrás, quando se dava o qüinquagésimo aniversário da Mystici Corporis, não encontrará, nem nas especializadas nem em outras, qualquer lembrança ou estudo crítico sobre essa encíclica. Talvez porque, desde muito tempo antes, o assunto já não passasse de um embaraçoso tabu. Assim, não surtiu efeito, naquela época, o convite sereno e razoável do cardeal Hamer, que, a pedido de 30Dias, apresentou, com o intuito de uma retomada, alguns trechos da encíclica (cf. n� 6, junho de 1993, pp. 34-48): "Devemos trabalhar para fazer com que o ensinamento da Mystici Corporis seja novamente atual, para o bem espiritual do povo cristão. [...] Espero que este cinqüentenário da Mystici Corporis possa ser um ano de retomada de contato com esse documento".
Passados mais dez anos, no sexagésimo aniversário da Mystici Corporis o convite do cardeal Hamer pode ser retomado também em sua memória: não celebrando esse documento como um totem (a outra face do tabu), mas reapresentando sua complexa gênese histórica e chamando a atenção para alguns aspectos da encíclica que nos parecem interessantes para o presente. Como jornalistas devem fazer.

Ser cristão significa transformar-se em Cristo?
A Mystici Corporis nascia com duas intenções, naqueles anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, levando em conta sobretudo a situação alemã: de um lado, corrigir desvios teóricos e práticos da eclesiologia do Corpo Místico, que tendiam para um biologismo espiritual e para um falso misticismo; de outro, evitar que a urgência dessa correção trouxesse consigo o abandono do conceito do Corpo Místico de Cristo, sobre o qual se trabalhara intensamente entre as duas guerras.
O ponto culminante dos desvios fora atingido pela obra de Karl Pelz, pároco de Berlim que, em 1939, publicava pro manuscripto um texto de título ambíguo: Der Christ als Christus (O cristão como Cristo). Uma ambigüidade já resolvida na premissa, onde Pelz escrevia que "o estudo de nossa incorporação em Cristo termina com a constatação de que nós, cristãos, nos transformamos efetivamente em Cristo" (p. 7). Ele se sentia impelido a revelar essa verdade porque "nosso dever como sacerdotes é oferecer integralmente aos fiéis o conteúdo de verdade da nossa fé, especialmente num tempo em que, diante do violento ataque contra Cristo e a Igreja, cada um deveria ser capaz de usar todo o arsenal de armas da nossa fé" (p. 8). Citando abundantemente os Padres como seus fiadores, ele nada mais faz que repetir, de diversas perspectivas, que, "segundo os Padres, nós participamos da carne e do corpo de Cristo, ou seja, da sua santa humanidade" (p. 65). E isso de modo absolutamente independente do sacramento do batismo: "Devemos realmente nos convencer de que, segundo os Padres, Cristo, tão-somente pelo fato de se encarnar, uniu-se a todo homem" (p. 66).
A partir da interpretação dada por Pelz, diversos teólogos, nos anos seguintes, julgaram perigosa a doutrina do Corpo Místico, pedindo o restabelecimento puro e simples da definição da Igreja como societas perfecta. Essa noção se estabeleceu bastante recentemente, entre os séculos XVIII e XIX, e Santo Tomás, significativamente, não a usa, falando de communitas perfecta, ou, agostinianamente, de civitas (cf. Summa Theologiae I-II, q. 90, a. 3), incluindo na civitas a cooperação com o poder político (regnum). De forma igualmente significativa, a categoria de societas perfecta foi retomada por Karol Wojtyla em sua intervenção no Concílio (cf. Acta synodalia II/3, 155-156).
_as voltemos aos anos da guerra. A certa altura, Conrad Gröber, arcebispo de Friburgo, na Brisgóvia, e representante do episcopado alemão, preocupado com a questão, falou também sobre o assunto em sua carta aos bispos datada de 18 de janeiro de 1943 (in: Theodor Maas-Ewerd. Die Krise der Liturgischen Bewegung in Deutschland und Österreich. Regensburg, 1977, pp. 540-569): "Preocupa-me o elevado sobrenaturalismo e a nova atitude mística que ganham espaço dentro da nossa teologia e das fileiras jovens de nossa Igreja" (p. 548). De fato, escrevia, isso "pode degenerar numa mística em que as fronteiras da criação desapareçam" (id., ibid.). "A mística atual", dizia pouco antes, sinteticamente, nada mais é que "o reverso da medalha da gnose moderna" (p. 544). Mais ainda, "já assistimos ao fato deplorável de que, entre a juventude, indivíduos num primeiro momento demasiadamente inclinados ao sobrenatural acabam por se transformar em perfeitos descrentes" (p. 549). Ante uma ignorância cada vez mais difundida, a questão era "chamar a atenção para as verdades simples do catecismo e torná-las conhecidas [...]. Realmente, segundo o ensinamento da Igreja, são necessários poucos conhecimentos religiosos formais para se chegar à salvação da alma!" (pp. 549-550). O livro de Pelz, em particular, parecia-lhe danoso, não tanto em si mesmo, mas porque a unio mystica que defendia punha em questão a doutrina sobre a graça e os sacramentos. Em primeiro lugar, sobre a graça, pois "a graça santificante aparece como algo supérfluo" (p. 550), correndo-se o risco do quietismo. E também sobre os sacramentos, pois, "se existe uma tal intimidade com Deus e com Cristo, [...] para que serve receber a santa comunhão? Se já temos o que é necessário, certamente não será preciso ir buscá-lo. Para que serve, então, o altar do santíssimo sacramento, a conservação do santíssimo no tabernáculo, a visita a ele, sua exposição, as procissões, o recolhimento, a adoração perpétua, se todo batizado, fiel ‘cristóforo’, está invariavelmente unido a Cristo e, portanto, deve, ele mesmo, ser digno de adoração? Tudo se reduz a mero conteúdo simbólico. Além de tudo, quando se quiser diferenciar a presença eucarística da presença mística de Cristo em nós, para salvaguardar a presença mística, não será possível pensar no acontecimento concreto de algo que, no fundo, já se considera estavelmente presente" (p. 551).
Gröber previa conseqüências infelizes: "O futuro nos dirá para onde conduz - na pregação, na catequese e na vida cristã - a desvalorização do Cristo histórico, com sua estupenda proximidade dos homens, sua glória exemplar e sua realidade libertadora, em favor de um Cristo mais elevado que se encontra inteiramente para além do espaço e do tempo" (p. 552).
Além de remeter à posteridade a sentença sobre esse ponto, a longa carta de Gröber apelava também à intervenção dos bispos alemães e de Roma: "Nós, bispos alemães, podemos nos calar? Roma pode se calar?" (p. 569).
Eis que, cinco meses depois, era publicada, por ocasião da festa dos santos Pedro e Paulo de 1943, a Mystici Corporis.

A Mystici Corporis
ajuda a distinguir
Prescindindo do que acabamos de expor, mesmo muito sumariamente, não é possível entender a situação concreta levada em consideração pela encíclica do início ao fim.
A encíclica começa referindo-se à continuação de erros antigos, mas tem em mira sobretudo o novo "falso misticismo que perverte as Sagradas Escrituras, pretendendo remover os limites intangíveis entre as criaturas e o Criador" (n� 9). Esse falso misticismo faz pairarem suspeitas sobre a doutrina do Corpo Místico, mas, em se tratando de uma doutrina revelada - afirma a encíclica - não há motivos para isso. A razão de alguma forma pode compreender essa doutrina, se proceder com devoção e sobriedade e se Deus o doar, como ensina o Vaticano I: "A razão iluminada pela fé, quando indaga com diligência, piedade e sobriedade, alcança sempre por graça de Deus alguma inteligência, sempre frutuosíssima, dos mistérios, quer pela analogia com os conhecimentos naturais, quer pela relação que os mistérios têm entre si e com o último fim do homem" (n� 10).
A certa altura, Conrad Gröber, arcebispo de Friburgo, na Brisgóvia, e representante do episcopado alemão, preocupado com a questão, falou também sobre o assunto em sua carta aos bispos datada de 18 de janeiro de 1943: “Preocupa-me o elevado sobrenaturalismo e a nova atitude mística que ganham espaço dentro da nossa teologia e das fileiras jovens de nossa Igreja”. De fato, escrevia, isso “pode degenerar numa mística em que as fronteiras da criação desapareçam”. “A mística atual”, dizia pouco antes, sinteticamente, nada mais é que “o reverso da medalha da gnose moderna”
Assim, em suas partes centrais, a encíclica explica que a Igreja é análoga a um corpo: mais ainda, é o Corpo de Cristo. E, para que não haja equívocos (de fato, "essa nobilíssima denominação não deve entender-se como se aquela inefável união, com que o Filho de Deus assumiu uma natureza humana determinada, se estendesse a toda a Igreja", n� 53), faz sua a noção do Corpo Místico: "Há muitas razões para se dever adotar [essa denominação]: pois que por ela o corpo social da Igreja, cuja cabeça e supremo regedor é Cristo, pode distinguir-se do seu corpo físico, nascido da Virgem Maria e que agora está sentado à direita do Pai ou oculto na terra sob os véus eucarísticos; pode também distinguir-se, e isto é importante por causa dos erros atuais, de qualquer corpo natural, quer físico, quer moral" (n� 58). Isso permite falar da inabitação do Espírito Santo nas almas, ou seja, da maneira como, dentro do Corpo Místico de Cristo, cada fiel está unido a Ele, rejeitando "toda a explicação desta mística união que pretenda elevar os fiéis tanto acima da ordem criada, que cheguem a invadir a divina, a ponto de se atribuir em sentido próprio um só que seja dos atributos de Deus" (n� 78). Por outro lado, a Mystici Corporis, citando a Divinum illud de Leão XIII, explica que, na ordem das criaturas, a união das almas com Cristo no paraíso não se diferencia da união na terra, a não ser pela nossa condição de peregrinos neste mundo (cf. n� 80). Em outras palavras, não há nenhuma diferença essencial entre as almas que estão unidas ao Senhor na graça e na glória.
Como conclusão, a encíclica convida cada fiel a se valer da doutrina do Corpo Místico exposta até ali para "acautelar-se dos erros a que expõe a investigação deste difícil assunto, quando feita a capricho, como alguns a fazem, não sem grande perigo para _ fé católica e perturbação das almas" (n� 84). Além de erros que dizem respeito à confissão e à oração, frisa que o primeiro erro é o daqueles que pretendem "que o Redentor e os membros da Igreja formam uma pessoa física" (n� 84). E, como conseqüência desse, "daqueles que da misteriosa união de todos nós com Cristo pretendem deduzir um mal-entendido ‘quietismo’ [...]. Ninguém pode negar que o divino Espírito de Cristo é a única fonte donde deriva toda a energia sobrenatural na Igreja e nos membros [tanto que, duas vezes, a encíclica cita Jo 15,5: "Sem mim, nada podeis fazer"]. Contudo, o perseverar constantemente nas obras de santidade, o progredir fervorosamente na graça e na virtude, o esforçar-se generosamente por atingir o vértice da perfeição cristã, enfim, o excitar, na medida do possível, os próximos a consegui-la, tudo isso não quer o celeste Espírito realizá-lo, se o homem não faz, dia a dia, com energia e diligência, o que está ao seu alcance" (n� 85).

A atração despertada pela graça e a abertura ecumênica
Se, portanto, Roma locuta est no sentido desejado por Gröber em sua questão de fundo, condenando como contrária à fé católica a indistinção entre Criador e criatura, entre Cristo e o cristão, e as conseqüências de ordem moral dessa indistinção, a Mystici Corporis se afasta, porém, da análise e das propostas do bispo alemão, como também das de outros, na medida em que, de um lado, evita acusar o protestantismo de ser a fonte dos males de que todos se lamentam, e, de outro, não propõe um retorno puro e simples à doutrina da societas perfecta. Com maior antevisão, a encíclica talvez já intuísse que a deriva protestante nada mais era que uma etapa, nem ao menos inevitável, rumo à fusão ao mesmo tempo antiquíssima e moderníssima entre "eu" e "Deus". E entendia que já não era apenas reivindicando (com finalidade antiprotestante, em última análise) a natureza de societas perfecta da Igreja, ou seja, a auto-suficiência da Igreja para alcançar seus fins, que se ofereceria a contribuição decisiva para a efetiva conquista desses fins.
Não é por acaso, desse ponto de vista, que a encíclica começa e termina apelando à beleza e à força de atração como aquilo que distingue o pertencer a Cristo e à Igreja. Por isso, expõe-se a doutrina do Corpo Místico (escreve o Papa no n� 11), "para que a incomparável formosura da Igreja resplandeça com nova glória, para que mais esplendidamente se manifeste a excelsa e sobrenatural nobreza dos fiéis que no corpo de Cristo se unem à sua cabeça".
Chega-se a sentir na Mystici Corporis um certo sopro ecumênico, corroborado pela tempestade da guerra. No início (n� 5): "Confiamos ainda que o que vamos expor sobre o Corpo Místico de Cristo não será desagradável nem inútil aos que vivem fora do seio da Igreja Católica. E isto, não só porque a sua benevolência para com a Igreja parece aumentar de dia para dia, senão também porque vendo eles atualmente como as nações se erguem contra as nações e os reinos contra os reinos, e crescem indefinidamente as discórdias, os antagonismos e as sementeiras do ódio, se volverem os olhos para a Igreja, se contemplarem a sua unidade de origem divina, por virtude da qual os homens de todas as nacionalidades se unem a Cristo com vínculos fraternos, então sem dúvida ver-se-ão forçados a admirar uma tal sociedade de amor e sentir-se-ão atraídos com o auxílio da graça a participar da mesma unidade e caridade".
A abertura ecumênica volta no final da encíclica (n� 94): "Esposa de Cristo é só a Igreja; contudo, o amor do divino Esposo é tão vasto, que a ninguém exclui, e na sua esposa abraça a todo o gênero humano; pois que o Salvador derramou o seu sangue na cru_ para conciliar com Deus a todos os homens". Portanto, "também nos outros homens ainda não incorporados conosco na Igreja, reconheçamos outros tantos irmãos de Jesus Cristo segundo a carne, chamados como nós para a mesma salvação eterna".
Paradoxalmente, se temos saudade da Mystici Corporis_ não é tanto por sua densa doutrina, mas por estas observações que respeitam ao mesmo tempo a liberdade humana e a gratuidade da graça divina: "Implorando que os errantes entrem quanto antes no único redil de Jesus Cristo, declaramos contudo ser absolutamente necessário que eles o façam espontânea e livremente, pois que ninguém crê, senão por vontade", escreve Pio XII, citando Agostinho. "Por conseguinte, se alguns que não crêem são realmente forçados a entrar nos templos, a aproximar-se do altar e a receber os sacramentos, não se fazem verdadeiros cristãos: a fé, sem a qual é impossível agradar a Deus, deve ser libérrima homenagem da inteligência e da vontade. [...] Mas porque os homens são livres e podem, sob o impulso de más paixões e apetites desordenados, abusar da própria liberdade, então é necessário que o Pai das luzes, pelo Espírito de seu amado Filho, os mova e atraia eficazmente à verdade" (n� 101).

Para "ceder", como escreve ainda o Papa, "às inspirações da graça divina" (n� 101), nada mais é preciso fazer senão rezar. E, nisso, as pessoas distantes e próximas da Igreja estão unidas. De fato, "se muitos ainda - infelizes - estão longe da verdade católica, é porque não só eles, mas também os fiéis não oram mais fervorosamente por essa intenção" (n� 101).
De "o cristão como Cristo"
a "eu sou Tu"
O cardeal Ratzinger, num livro que acaba de ser publicado pela editora Herder com o título Glaube, Wahrheit, Toleranz. Das Christentum und die Weltreligionen, e em fase de publicação em italiano pela editora Cantagalli, no qual reúne conferências sobre os temas da fé, das religiões, das culturas e da verdade, escolhe como leitmotiv de toda a obra o confronto entre a fé monoteísta, ou melhor, a compreensão de Deus como pessoa, e uma mística que, em última análise, identifica eu e Deus.
As citações que aqui transcrevemos são do primeiro capítulo e de um "interlúdio" que o segue. "Em última análise, trata-se de ver se o divino é Deus, alguém que está diante de nós - de forma que o termo último da religião seja relação, amor que se torna unidade ("Deus tudo em todos": 1Cor 15,28), sem eliminar o fato de se estar diante de um eu e de um tu -, ou se o divino está além da pessoa, sendo o fim último unir-se e dissolver-se no Uno-todo."
Naturalmente, explica Ratzinger, não se deve entender por mística "essa forma de piedade religiosa que se pode encontrar na própria ordem de pertencer da fé cristã", mas a experiência de indistinção "no último estágio da qual o místico não dirá mais a seu Deus: ‘Eu sou teu’, mas ‘eu sou Tu’. A distinção é relegada à esfera do provisório, o estágio definitivo é a fusão, a unidade".
Reaparece, portanto, com uma formulação diferente, "o cristão como Cristo" que fora alvo da Mystici Corporis. Estamos no âmbito do mesmo problema: a desviadora interpretação mística do cristianismo.
Os dois caminhos, no entanto, diferem radicalmente: "Na mística vigora o primado da interioridade, a absolutização da experiência espiritual. [...] Não se dá nenhuma ação de Deus, existe apenas a mística do homem, o caminho dos diversos graus da união".
No caminho monoteísta - que, no cristianismo, explica plenamente seus efeitos (mas Ratzinger esboça uma fileira mais ampla: "Surgiu em Israel graças a uma revolução" e "da raiz de Israel, passou ao cristianismo e ao islã") - "não é decisiva a experiência espiritual pessoal, mas o chamado divino. Todos aqueles que reconhecem essa vocação, portanto, estão, no fim das contas, na mesma condição".
"ode ser difícil, para a concepção moderna de religião, aceitar isso, como foi também para os Padres, a começar por Agostinho. Ele, "que descobrira a beleza da verdade na Hortensius de Cícero e aprendera a amá-la, achou a Bíblia, assim que caiu em suas mãos, indigna da tulliana dignitas". De fato, "diante da sublimidade do pensamento místico, os protagonistas da história da fé parecem ao rés do chão. [...] Vistos na ótica da história das religiões, Abraão, Isaac, Jacó não são realmente grandes personalidades religiosas". Mas esse escândalo não deve ser redimensionado, pois é justamente por meio dele que somos conduzidos "ao caráter particular e único em seu gênero da revelação bíblica. [...] Ela não é primordialmente o encontro de uma verdade, mas a ação do próprio Deus na história. [...] De fato, ao contrário do que ocorre na mística, aqui é Deus quem opera, e é Ele quem dá ao homem a salvação". E Ratzinger prossegue, citando Daniélou: "Para o sincretismo, as almas salvas são aquelas capazes de interioridade, seja qual for a religião a que pertençam. Para o cristianismo, são salvas as almas que crêem, qualquer que seja o seu grau de interioridade. Uma criança pequena, um operário oprimido pelo trabalho, se crêem, são superiores aos maiores ascetas".
É interessante também o caminho vislumbrado por Ratzinger como possível superação do pântano do sincretismo. Além da honestidade, do respeito e da paciência necessários em qualquer diálogo, o que pode favorecer a saída do desnaturamento místico do cristianismo é um jogo de alianças. Ou seja, o cristão deve ser capaz de estabelecer uma aliança com a moderna racionalidade leiga, tal como, "na época da Igreja antiga, foi possível ao cristianismo ligar-se de forma bastante estreita com as forças iluministas".
Idéias claras e distintas.


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