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EXEGESE
Extraído do número 06 - 2003

“A fé exige o realismo do acontecimento”


“A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar tudo isso aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia”. O discurso do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé por ocasião do centenário da constituição da Pontifícia Comissão Bíblica


de Joseph Ratzinger


Joseph Ratzinger

Joseph Ratzinger

Não escolhi o tema da minha reflexão apenas porque ele faz parte das questões que, de direito, inserem-se numa retrospectiva sobre os cem anos da Pontifícia Comissão Bíblica, mas porque se insere, por assim dizer, também nos problemas da minha biografia: há mais de meio século o meu percurso teológico pessoal move-se no âmbito determinado deste tema.
No decreto da Congregação Consistorial de 29 de junho de 1912 De quibusdam commentariis non admittendis encontram-se dois nomes, que cruzaram a minha vida. Nele, com efeito, é condenada a Introdução ao Antigo Testamentoýdo professor de Frisinga, Karl Holzhey; ele já tinha falecido quando, em janeiro de 1946, comecei os meus estudos de teologia nas proximidades da Catedral de Frisinga, mas a seu respeito ainda circulavam anedotas eloqüentes. Devia ser um homem bastante orgulhoso e fechado. Conheço melhor o segundo nome citado, o de Fritz Tillmann, que organizou um Comentário do Novo Testamento definido inaceitável. Nessa obra, o autor do comentário aos sinópticos era Friedrich Wilhelm Maier, um amigo de Tillmann, então professor em Estrasburgo. O decreto da Congregação Consistorial estabelecia que estes comentários expungenda omnino esse ab institutione clericorum. O Comentário, do qual encontrei um exemplar esquecido quando era estudante no Seminário Menor de Traunstein, devia ser banido e retirado do comércio porque Maier afirmava nele, em relação à questão sinóptica, a chamada teoria das duas fontes, que hoje é aceita quase por todos. Isto, naquela época, determinou também o fim da carreira científica de Tillmann e de Maier. Contudo, aos dois era permitido mudar de disciplina teológica. Tillmann aproveitou esta possibilidade tornando-se depois um grande teólogo moral alemão. Juntamente com Th. Steinbüchel e Th. Müncker fizeram um manual de teologia moral de vanguarda, que tratava de maneira nova esta importante disciplina e a apresentava segundo a idéia básica da imitação de Cristo. Maier não quis aproveitar da possibilidade de mudar de disciplina; de fato, dedicou-se de alma e corpo ao trabalho sobre o Novo Testamento. Desta forma, tornou-se capelão militar e com este cargo participou na Primeira Guerra Mundial; em seguida, trabalhou como capelão nos cárceres até 1924, quando, com o consentimento do arcebispo de Breslau (hoje Wroclaw), Cardeal Bertram, num clima já mais tranqüilo, foi chamado para a cátedra de Novo Testamento na Faculdade teológica dessa cidade. Em 1945, quando aquela Faculdade foi suprimida, juntamente com outros colegas, foi para Munique, onde o tive como professor.
A ferida de 1912 nunca desapareceu totalmente, apesar de ele poder agora ensinar a sua matéria praticamente sem problemas e de ser apoiado pelo entusiasmo dos seus estudantes, aos quais conseguia transmitir a sua paixão pelo Novo Testamento e uma correta interpretação deste. De vez em quando, nas suas lições vinham-lhe em mente recordações do passado. Ainda me recordo sobretudo de uma expressão que ele pronunciou em 1948 ou em 1949. Disse que já podia seguir livremente a sua consciência de historiador, mas que ainda não se tinha chegado à completa liberdade da exegese que ele sonhava. Disse também que provavelmente não teria chegado a ver isto, mas que pelo menos, como Moisés no Monte Nebo, desejava poder lançar o olhar sobre a Terra Prometida de uma exegese livre de qualquer forma de controle e condicionamento do Magistério. Sentimos que no coração deste homem culto, que levava uma vida sacerdotal exemplar, fundada na fé da Igreja, pesava não só aquele decreto da Congregação Consistorial, mas que também os vários decretos da Comissão Bíblica – sobre a autenticidade moisaica do Pentateuco (1906), sobre o caráter histórico dos primeiros três capítulos do Gênesis (1909), sobre autores e sobre a época de composição dos Salmos (1910), sobre Marcos e Lucas (1912), sobre a questão sinóptica (1912), e assim por diante – impediam o seu trabalho de exegeta com obstáculos que ele considerava indevidos. Ainda persistia a impressão de que os exegetas católicos, devido a estas decisões magisteriais, fossem impedidos de desempenhar um trabalho científico sem restrições, e que desta forma a exegese católica, em relação à protestante, nunca pudesse estar completamente ao nível dos tempos e a sua seriedade científica fosse, de certa forma e com razão, posta em dúvida pelos protestantes. Naturalmente influía também a convicção de que um trabalho rigorosamente histórico fosse capaz de certificar de maneira credível os dados de fato objetivos da história, aliás, que este fosse o único caminho possível para compreender no seu sentido próprio os livros bíblicos, os quais, precisamente, são livros históricos. Dava por certa a credibilidade e a inequivocabilidade do método histórico; não lhe vinha minimamente nem sequer a idéia de que também neste método entrassem em jogo pressupostos filosóficos e que pudesse ser necessária uma reflexão sobre as implicações filosóficas do método histórico. Para ele, como para muitos colegas seus, a filosofia parecia um elemento que incomodava, algo que só podia poluir a objetividade pura do trabalho histórico. Não se lhe perspectivava a questão hermenêutica, ou seja, não se interrogava em que medida o horizonte de quem pergunta determine o acesso ao texto, tornando necessário esclarecer, antes de tudo, qual é o método justo de perguntar e de que forma é possível purificar o próprio perguntar. Precisamente por isto, o Monte Nebo teria certamente reservado algumas surpresas totalmente fora do seu horizonte.
Agora gostaria de tentar subir, por assim dizer, com ele ao Monte Nebo para observar, a partir da perspectiva de então, a terra que atravessamos nos últimos cinqüenta anos. A respeito disto, poderia ser útil recordar a experiência de Moisés. O capítulo 3ý do Deuteronômio descreve como no Monte Nebo é concedido a Moisés lançar um olhar sobre a Terra Prometida, que ele vê em toda a sua extensão. O olhar que lhe é concedido é, por assim dizer, um olhar puramente geográfico e não histórico. Contudo, poder-ýe-ia dizer que o capítulo 28 do mesmo livro apresenta um olhar não sobre a geografia mas sobre a história futura, na e com a Terra, e que aquele capítulo oferece uma perspectiva muito diferente, muito menos confortadora: “O Senhor dispersar-te-á entre todos os povos de uma extremidade à outra da terra... E, até no meio dessas nações, não encontrarás repouso nem ponto de apoio para a planta dos teus pés” (Dt 28, 64 s.). Poder-se-ia resumir o que Moisés via nesta visão interior da seguinte forma: a liberdade pode destruir-se a si mesma; quando perde o seu critério intrínseco suprime-se a si mesma.
O que poderia entrever um olhar histórico lançado do Nebo sobre a terra da exegese dos últimos cinqüenta anos? Antes de tudo, muitas coisas que teriam sido de conforto para Maier, a realização do seu sonho, por assim dizer. Já a encíclica Divino afflante Spiritu de 1943 introduziu uma nova forma de compreender a relação entre o Magistério e as exigências científicas da leitura histórica da Bíblia. Em seguida, os anos sessenta representaram a entrada na Terra Prometida da liberdade da exegese, mantendo esta imagem metafórica. Primeiro, encontramos a instrução da Comissão Bíblica, de 21 de abril de 1964, sobre a verdade histórica dos Evangelhos, mas depois, sobretudo, a Constituição conciliar Dei Verbum de 1965 sobre a Revelação Divina, com a qual se abriu na realidade um novo capítulo na relação entre Magistério e exegese científica. Não é preciso realçar aqui a importância deste texto fundamental. Ele, antes de mais, define o conceito de Revelação, que não se identifica de modo algum com o seu testemunho escrito que é a Bíblia, e abre, desta forma, um amplo horizonte, histórico e ao mesmo tempo teológico, no qual se move a interpretação da Bíblia, uma interpretação que vê nas Escrituras não só livros humanos, mas o testemunho de um falar divino. Assim, torna-se possível determinar o conceito de Tradição, que também supera a Escritura, apesar de ter nela o seu centro, a partir do momento em que a Escritura é, em primeiro lugar e por sua natureza, “tradição”. Isto leva ao terceiro capítulo da Constituição, dedicado à interpretação da Escritura; nele emerge, de maneira convincente, a necessidade absoluta do método histórico como parte indispensável do esforço exegético, mas surge depois também a dimensão propriamente teológica da interpretação, que como já foi dito, é essencial, se aquele livro é mais do que palavra humana.
Prosseguimos a nossa investigação do Monte Nebo: Maier, do seu lugar de observação, teria podido alegrar-se especialmente pelo que aconteceu em junho de 1971. Com o motu proprio Sedula cura, Paulo VI reestruturou completamente a Comissão Bíblica de tal forma que deixou de ser um órgão do Magistério, para ser um lugar de encontro entre o Magistério e exegetas, um lugar de diálogo no qual se pudessem encontrar representantes do Magistério e qualificados exegetas para juntos encontrar, por assim dizer, os critérios intrínsecos da liberdade que a impedem de se autodestruir, elevando-a assim ao nível de uma verdadeira liberdade. Maier teria podido alegrar-se também pelo fato de que um dos seus melhores alunos, Rudolf Schnackenburg, tinha começado a fazer parte não precisamente da Comissão Bíblica, mas da não menos importante Comissão Teológica Internacional, de forma que agora ele mesmo, por assim dizer, estava quase naquela Comissão que lhe tinha causado tantas preocupações. Recordamos outra data importante que, do nosso Nebo imaginário, teria podido surgir no horizonte: o documento da Comissão Bíblica A interpretação da Bíblia na Igreja, de 1993, no qual já não é o Magistério que impõe do alto normas aos exegetas, mas são eles mesmos que procuram definir os critérios que devem determinar o caminho para uma interpretação adequada deste livro especial, o qual, visto só do exterior, constitui, no fundo, nada mais do que uma coletânea literária de escritos, cuja composição se alarga por todo um milênio. Só o sujeito do qual esta literatura nasceu – o povo de Deus peregrino – faz desta coletânea literária, com toda a sua variedade e os seus aparentes contrastes, um único livro. Mas este povo sabe que não fala nem age por si, mas é devedor Àquele que faz dele um povo: o próprio Deus vivo que lhe fala através dos autores de cada livro.
A Constituição conciliar Dei Verbum de 1965 sobre a Revelação Divina, abriu na realidade um novo capítulo na relação entre Magistério e exegese científica. Não é preciso realçar aqui a importância deste texto fundamental. Ele, antes de mais, define o conceito de Revelação, que não se identifica de modo algum com o seu testemunho escrito que é a Bíblia, e abre, desta forma, um amplo horizonte, histórico e ao mesmo tempo teológico, no qual se move a interpretação da Bíblia, uma interpretação que vê nas Escrituras não só livros humanos, mas o testemunho de um falar divino
Por conseguinte, o sonho tornou-se realidade? Os segundos cinqüenta anos da Comissão Bíblica cancelaram e puseram de parte como ilegítimo o que os primeiros cinqüenta tinham produzido? À primeira pergunta responderia que o sonho foi traduzido em realidade e que simultaneamente foi também corrigido. A mera objetividade do método histórico não existe. É simplesmente impossível excluir totalmente a filosofia, ou seja, a pré-compreensão hermenêutica. Isto já se evidencia, quando Maier ainda era vivo, por exemplo, no “Comentário a João” de Bultmann, onde a filosofia heideggeriana não servia apenas para fazer presente aquilo que historicamente estava longe e agia, ou seja, como meio de transporte que transfere o passado para o nosso hoje, mas também como desembarcadouro que leva o leitor para dentro do texto. Mas esta tentativa falhou, e tornou-se evidente que o puro método histórico – como de resto também no caso da literatura profana – não existe. É sem dúvida compreensível que os teólogos católicos, na época em que as decisões da Comissão Bíblica de então lhes impediam uma mera aplicação do método histórico-crítico, olhassem com inveja para os teólogos evangélicos, os quais, entretanto, com a seriedade da sua investigação, estavam em condições de apresentar resultados e aquisições novas sobre como esta literatura, que nós chamamos Bíblia, tenha nascido e crescido ao longo do caminho do povo de Deus. Mas com isto não era considerado suficientemente o fato de que na teologia protestante se tinha o problema oposto. É o que se vê de maneira clara, por exemplo, na conferência realizada em 1936 pelo grande aluno de Bultmann, que mais tarde se converteu ao catolicismo, Heinrich Schlier, sobre a responsabilidade eclesial do estudante de teologia. Naqueles tempos, a cristandade evangélica na Alemanha estava comprometida numa batalha pela sobrevivência: o confronto entre os chamados Cristãos alemães (Deutsche Christen) que, submetendo o cristianismo à ideologia do nacional-socialismo, o falsificaram nas suas raízes e a Igreja confessante (Bekennende Kirche). Neste contexto Schlier dirigiu aos estudantes de Teologia estas palavras: “...Refleti um momento sobre o que é melhor: que a Igreja, de maneira legítima e depois de uma reflexão atenta, prive do ensino um teólogo por uma doutrina heterodoxa, ou que o indivíduo, de modo gratuito acuse um ou outro professor de heterodoxia e alerte contra ele? Não se deve pensar que o julgar acabe quando se deixa que cada qual julgue ad libitum. Aqui a visão liberal é coerente quando afirma que não pode existir decisão alguma sobre a verdade de um ensinamento, e que por isso cada ensinamento tem algo de verdadeiro e, portanto, na Igreja devem ser admitidos todos os ensinamentos. Mas nós não partilhamos esta visão. De fato, ela nega que Deus tenha tomado verdadeiramente uma decisão entre nós...”. Quem se recorda que então grande parte das Faculdades protestantes de teologia estava quase exclusivamente nas mãos dos Cristãos alemães e que Schlier, devido a afirmações como a que acabamos de citar, teve que deixar o ensino acadêmico, pode dar-se conta de outro aspecto deste problema.
Chegamos assim à segunda e conclusiva questão: como devemos avaliar, hoje, os primeiros cinqüenta anos da Comissão Bíblica? Tudo foi, apenas, um trágico condicionamento da liberdade da teologia, um conjunto de erros dos quais nos devemos libertar nos segundos cinqüenta anos da Comissão, ou não devemos, ao contrário, considerar este difícil processo de maneira mais pormenorizada? Que as coisas não sejam tão simples, como pareceu nos primeiros entusiasmos do começo do Concílio, é evidenciado por quanto já dissemos. Permanece uma verdade que o Magistério, com as decisões citadas, alargou demasiado o âmbito das certezas que a fé pode garantir; por isso permanece uma verdade, que assim foi diminuída a credibilidade do Magistério e limitado de modo excessivo o espaço necessário para as investigações e para as interrogações exegéticas. Mas é de igual modo verdadeiro, no que se refere à interpretação da Escritura, que a fé tem a sua palavra a dizer e que, por conseguinte, também os Pastores são chamados a corrigir, quando se perde de vista a natureza particular deste livro e uma objetividade, que é pura só na aparência, faz desaparecer aquilo que a Sagrada Escritura tem de seu e de específico. Portanto, foi indispensável uma profunda investigação, para que a Bíblia tivesse a sua justa hermenêutica e a exegese histórico-crítica o seu justo lugar.
Parece-me que se podem distinguir dois níveis do problema, que na época estava em questão, e hoje também. Num primeiro nível, devemos perguntar-nos até onde chega a dimensão meramente histórica da Bíblia e onde começa a sua especificidade, que a mera racionalidade histórica não alcança. Também se poderia formular como um problema interno do próprio método histórico: que pode fazer ele na realidade e quais são os seus limites intrínsecos? Quais são as outras modalidades de compreensão necessárias para um texto deste gênero? A investigação pormenorizada que se deve empreender pode ser comparada, num certo sentido, ao trabalho que o caso Galileu exigiu. Até aquele momento parecia que a visão geocêntrica do mundo estava ligada de maneira inextrincável ao que era revelado pela Bíblia; parecia que quem estava a favor da visão heliocêntrica do mundo atacava o núcleo da Revelação. A relação entre a aparência externa e a verdadeira e própria mensagem do todo devia ser revista profundamente, e só lentamente se poderiam elaborar os critérios que teriam permitido pôr numa justa relação entre si a racionalidade científica e a mensagem específica da Bíblia. Sem dúvida, a tensão não pode ser considerada totalmente resolvida, porque a fé testemunhada pela Bíblia inclui também o mundo material, afirma algo também sobre ele, sobre a sua origem e sobre a origem do homem em particular. Reduzir toda a realidade do modo como nos vem ao encontro a meras causas materiais, confinar o Espírito criador na esfera da mera subjetividade, é inconciliável com a mensagem fundamental da Bíblia. Mas isto exige um debate sobre a própria natureza da verdadeira racionalidade; dado que, se se apresenta uma explicação meramente materialista da realidade como única e possível expressão da racionalidade, então a própria racionalidade é compreendida de maneira falsa. Deve-se afirmar algo análogo no que se refere à história. Num primeiro momento parecia indispensável, para a credibilidade da Escritura e, portanto, para a fé fundada sobre ela, que o Pentateuco devesse ser atribuído indiscutivelmente a Moisés ou que os autores de cada um dos Evangelhos tivessem que ser verdadeiramente os que foram nomeados pela Tradição. Também aqui era necessário, por assim dizer, definir de novo lentamente os âmbitos; a relação fundamental entre fé e história devia ser novamente pensada. Um semelhante esclarecimento não era uma empresa que se pudesse fazer de um dia para outro. Também nisto haverá sempre espaço para o debate. A opinião de que a fé, enquanto tal, não conhece absolutamente nada dos fatos históricos e deve deixar tudo isto aos historiadores, é gnosticismo: esta opinião desencarna a fé e a reduz a pura idéia. Para a fé que se baseia na Bíblia é, ao contrário, exigência constitutiva precisamente o realismo do acontecimento. Um Deus que não pode intervir na história nem mostrar-se nela não é o Deus da Bíblia. Por isso, a realidade do nascimento de Jesus da Virgem Maria, a efetiva instituição da Eucaristia por parte de Jesus na Última Ceia, a sua ressurreição corporal dos mortos – este é o significado do sepulcro vazio – são elementos da fé enquanto tal, que ela pode e deve defender contra uma só presumível melhor consciência histórica. Que Jesus em tudo o que é essencial tenha sido efetivamente aquele que nos mostram os Evangelhos, não é de modo algum um pressuposto histórico, mas um dado de fé. Objeções que nos queiram convencer do contrário não são expressão de um efetivo conhecimento científico, mas são uma sobreavaliação arbitrária do método. Que, porém, muitas questões nos seus particulares devem permanecer abertas e ser confiadas a uma interpretação consciente das suas responsabilidades é o que, entretanto, aprendemos.
É sem dúvida compreensível que os teólogos católicos, na época em que as decisões da Comissão Bíblica de então lhes impediam uma mera aplicação do método histórico-crítico, olhassem com inveja para os teólogos evangélicos, os quais, entretanto, com a seriedade da sua investigação, estavam em condições de apresentar resultados e aquisições novas sobre como esta literatura, que nós chamamos Bíblia, tenha nascido e crescido ao longo do caminho do povo de Deus. Mas com isto não era considerado suficientemente o fato de que na teologia protestante se tinha o problema oposto. É o que se vê de maneira clara, por exemplo, na conferência realizada em 1936 pelo grande aluno de Bultmann, que mais tarde se converteu ao catolicismo, Heinrich Schlier, sobre a responsabilidade eclesial do estudante de teologia....
Com isto, chegamos ao segundo nível do problema: não se trata simplesmente de fazer um elenco de elementos históricos indispensáveis à fé. Trata-se de ver o que pode a razão e por que é que a fé pode ser razoável e a razão aberta à fé. Entretanto, não foram corrigidas apenas as decisões da Comissão Bíblica que tinham entrado demasiado no âmbito das questões meramente históricas; também aprendemos algo de novo sobre as modalidades e os limites do conhecimento histórico. Werner Heisenberg, no âmbito das ciências naturais, verificou com a sua “Unsicherheitsrelation” que o nosso conhecer nunca reflete apenas o que é objetivo, mas é sempre determinado também pela participação do sujeito, da perspectiva da qual apresenta as perguntas e da sua capacidade de percepção. Tudo isto, naturalmente, é válido em maior medida e sem comparação, quando entra em jogo o próprio homem ou onde o mistério de Deus é perceptível. Portanto, fé e ciência, Magistério e exegese já não estão em oposição como mundos fechados em si mesmos. A fé é, ela mesma, um modo de conhecer. Querer pô-la de lado não produz a pura objetividade, mas constitui a escolha de um ponto de vista que exclui uma determinada perspectiva e já não quer ter em conta considerações casuais da perspectiva escolhida. Mas se nos apercebemos de que as Sagradas Escrituras provêm de Deus através de um sujeito que ainda vive – o povo de Deus peregrinante – então é também evidente de modo racional que este sujeito tem algo para dizer sobre a compreensão do livro.
A Terra Prometida da liberdade é mais fascinante e multiforme do que podia imaginar o exegeta de 1948. As condições intrínsecas da liberdade tornaram-se evidentes. Ela pressupõe a escuta atenta, conhecimento dos limites dos vários caminhos, plena seriedade da ratio, mas também prontidão em limitar-se e em superar-se no pensar e no viver juntamente com o sujeito que nos garante os diversos escritos da Antiga e da Nova Aliança como uma única obra, a Sagrada Escritura. Estamos profundamente gratos pelas aberturas que, como fruto de um longo trabalho de investigação, o Concílio Vaticano II nos deu. Mas também não condenamos o passado com superficialidade, mas o vemos como parte necessária de um processo de conhecimento que, considerada a grandeza da Palavra revelada eýos limites das nossas capacidades, nos apresentará sempre novos desafios. Precisamente nisto está o melhor. E assim, a cem anos da constituição da Comissão Bíblica, apesar de todos os problemas que surgiram neste espaço de tempo, ainda podemos olhar, agradecidos e cheios de esperança, para o caminho que se abre diante de nós.
O discurso do cardeal Ratzinger
foi pronunciado em língua italiana
no Augustinianum em 29 de abril de 2003.




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