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IGREJA
Extraído do número 09 - 2006

“A liturgia e os pobres, tesouros da Igreja”


Entrevista com o arcebispo Malcolm Ranjith, escolhido pelo papa Bento XVI como secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos


Entrevista com Malcom Ranjith de Gianni Cardinale


O arcebispo Albert Malcolm Ranjith Patabendige Don, a completar 59 anos em meados de novembro, originário do Sri Lanka, foi nomeado secretário da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos em 10 de dezembro do ano passado. Bento XVI o chamou à Cúria, como segunda nomeação de relevo de seu pontificado, depois da de William Joseph Levada a prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Ao lado do recém-empossado cardeal secretário de Estado Tarcisio Bertone, dom Ranjith faz parte do círculo de estreitos colaboradores da Cúria Romana pessoalmente escolhidos pelo papa Ratzinger.
30Dias lhe pediu que aprofundasse alguns aspectos de sua biografia.

Don Albert Malcom Ranjith

Don Albert Malcom Ranjith

Excelência, como nasceu a sua vocação?
ALBERT MALCOLM RANJITH PATABENDIGE DON: Nasci numa família de bons católicos. Em nossa paróquia vivíamos com alegria a sadia e boa tradição da Igreja, na qual a missa cotidiana era uma prática da qual participavam muitos fiéis simples. A paróquia era dirigida por um ótimo missionário francês, um oblato de Maria Imaculada, padre Jean Habestroh, que deu tudo por Jesus e por Sua Igreja. Um verdadeiro modelo de dedicação. E assim, dentro dessa intensa vida de fé na família e na paróquia, o chamada a me dedicar plenamente ao serviço do Senhor nasceu desde pequeno e amadureceu, quando eu era coroinha, quase de modo natural.
Onde o senhor estudou?
RANJITH: Numa escola dos religiosos das escolas cristãs de La Salle, escolas de ótima qualidade, nas quais a vida devocional era muito intensa. Todos os dias rezávamos o Rosário, e éramos quase todos membros da Legião de Maria. Tive sorte, pois nessas escolas cresci não apenas nos conhecimentos científicos e na formação cultural, mas também na vida espiritual. E os religiosos de La Salle eram guias exemplares.
O senhor freqüentou o seminário maior nacional de Kandy, de 1966 a 1970...
RANJITH: Eu tinha dezoito anos quando entrei no seminário. Meu pai, num primeiro momento, não estava muito contente, pois eu era o primogênito e único filho homem. Mas, depois, graças sobretudo a minha mãe, meus pais entraram em acordo e me deram permissão de entrar no seminário. Depois dos estudos filosóficos e de um período de tempo que passamos fora do seminário, o primeiro e único cardeal que teve o Sri Lanka, Thomas Benjamin Cooray, mandou-me a Roma, para o Colégio de Propaganda Fide, a fim de que eu completasse os estudos teológicos.
E em Roma o senhor foi ordenado sacerdote.
RANJITH: Sim, em 29 de junho de 1975. Éramos mais de 350 diáconos ordenados por Paulo VI durante o Ano Santo. Em seguida, freqüentei o Pontifício Instituto Bíblico, onde, depois de quatro anos, obtive a licenciatura em Sagrada Escritura. Durante esses anos, tive também a sorte de poder fazer um curso de oito meses na Universidade Judaica de Jerusalém, onde pude receber dos rabinos professores um grande sentimento de amor pela Palavra de Deus. A Terra Santa está cheia de Deus e de Seu amor pela humanidade, um amor que naqueles lugares pode-se quase tocar com as mãos. Minha vocação sacerdotal, portanto, se enriquecia com novas forças espirituais, a cada dia que eu respirava aquele ar.
Quem foram seus mestres?
RANJITH: Fui aluno do então padre Carlo Maria Martini, inteligente e muito capacitado: ele nos ensinava o Evangelho de São Lucas e Crítica Textual. Outro jesuíta, hoje cardeal, padre Albert Vanhoye, era também meu professor. Com ele como orientador, em 1978, escrevi minha monografia para a conclusão de curso de Sagrada Escritura sobre a Carta aos Hebreus. Da Urbaniana, guardei a figura do padre Carlo Molari: apresentava a doutrina dogmática sob um ponto de vista diferente, mas interessante, que suscitava debates e abria nossos olhos para que saboreássemos o verdadeiro valor da teologia. Houve muitos outros bons professores. Eu me lembro de dom Stefano Virgulin e do padre comboniano Pietro Chiocchetta: não ensinavam de modo “livresco”, mas com uma fé intensa em Jesus.
Concluídos os estudos, em 1978 o senhor voltou para a pátria.
RANJITH: Fui vice-pároco numa região pouco desenvolvida, num vilarejo de pescadores, todos católicos. E lá comecei a descobrir a ligação da teologia com a vida cotidiana dos fiéis a partir do grande veículo da liturgia. Quem celebra e reza intensamente é ajudado a pôr em prática o que celebra. Depois fui pároco também em outros vilarejos de pescadores. Eram muito pobres, mas tinham uma grande fé. E foi justamente graças ao contato com essas realidades que descobri a necessidade de que a Igreja se ocupe também da justiça social. Desde então, o amor pela liturgia e o amor pelos pobres, dois verdadeiros tesouros da Igreja, poderíamos dizer, foram a bússola da minha vida de sacerdote. Muito embora, naquela época, eu jamais pudesse pensar que um dia chegaria a ser secretário da Congregação para o Culto Divino.
Como o senhor ajudou aquelas populações?
RANJITH: Aproveitei os conhecimentos que tinha cultivado em Roma e na Alemanha. Chamei meus velhos amigos e, graças a Deus, as ajudas apareceram. Foi graças também a essa atividade que, em 1983, me tornei diretor nacional das Pontifícias Obras Missionárias. Cargo que exerci durante dez anos. E nessa condição participei de muitos encontros com os outros diretores das Pontifícias Obras Missionárias espalhadas pelo mundo inteiro. Foram essas reuniões que me ajudaram a ter uma visão realmente católica, universal da Igreja.
Em 1991, o senhor foi nomeado bispo auxiliar de Colombo. Com viveu essa primeira experiência episcopal?
RANJITH: Como bispo auxiliar, pude ampliar minha presença para toda a diocese e colaborar dessa forma com meu bispo ordinário. Pude descobrir, além disso, como o povo cristão deseja sentir próximos seus pastores, dos quais esperam uma vida que reflita a do supremo pastor, Jesus. Durante esse período, a pedido do episcopado, coordenei com o governo e a Santa Sé a preparação da viagem do papa João Paulo II ao Sri Lanka, ocorrida em janeiro de 1995. Foi uma grande experiência também. Era comovente ver nossos fiéis simples se apertarem ao redor do Papa com um grande sentimento de afeto.
O jovem padre Ranjith, vice-pároco do vilarejo de pescadores de Kepungoda, na arquidiocese de Colombo

O jovem padre Ranjith, vice-pároco do vilarejo de pescadores de Kepungoda, na arquidiocese de Colombo

Era a primeira vez que um papa tocava o solo do Sri Lanka?
RANJITH: Não, trinta anos antes, em dezembro de 1970, Paulo VI, voltando a Roma da Austrália, fez uma parada em Colombo, onde celebrou uma missa no aeroporto. Na época, eu era um jovem seminarista e ainda me lembro da alegria com que os católicos, mas não apenas eles, se reuniram em torno da figura do primeiro papa que punha os pés em nossa ilha.
No final de 1995, o senhor foi chamado a guiar a nova diocese de Ratnapura, onde ficou até 2001.
RANJITH: Pediram-me para assumir uma diocese nova, que acabara de ser constituída, situada no interior do país. E eu aceitei. Foram cinco anos muito felizes, apesar dos problemas que sempre existem, sobretudo quando se deve construir toda uma estrutura diocesana. Aprendi a ficar perto do clero – que em Ratnapura estava um pouco dividido – e dos fiéis, a maioria dos quais eram e são muito pobres. Nesse caso não eram pescadores, mas agricultores das plantações de chá.
Quantos católicos havia em Ratnapura?
RANJITH: Só dois por cento da população. Mas as relações com a esmagadora maioria budista eram ótimas. Quando entrei na diocese como bispo, fui visitar todos os templos budistas da cidade e encontrar os monges. Desde o primeiro dia, criamos um organismo de diálogo e cooperação em campos nos quais isso é possível, como o social. Nasceu uma amizade muito forte com alguns desses monges. A eles, algumas vezes, pedimos conselhos e sugestões quando construímos novas igrejas.
No entanto, nos últimos tempos, se discutem leis para impedir a conversão de uma religião para outra no Sri Lanka...
RANJITH: É uma questão que se discute em nível nacional e que se deve à longa guerra entre a minoria tâmil, grande parte dela hinduísta, e a maioria cingalesa, formada sobretudo por budistas, e também às atividades pouco corretas de algumas seitas cristãs fundamentalistas. A maioria cingalesa-budista tem medo de que as minorias, a tâmil-hinduísta mas também as comunidades cristãs que se encontram tanto entre os tâmil quanto entre os cingaleses, queiram conquistar uma posição dominante na sociedade, e por isso reage e procura controlá-las, criando nelas às vezes um sentimento de opressão. Isso de maneira geral. Mas, quando eu era bispo em Ratnapura, a situação era tranqüila na diocese, até porque ela está fora das regiões mais quentes do conflito, que ficam no nordeste do país.
Em 2000 foi publicada a declaração Dominus Iesus, sobre o caráter salvífico único de Jesus. Ela criou problemas no diálogo com o budismo?
RANJITH: Para dizer a verdade, um primeiro problema surgiu em 1994, quando João Paulo II publicou com Vittorio Messori o livro-entrevista Cruzando o limiar da esperança, no qual algumas frases sobre o budismo suscitaram reações. Mas aqueles que deram difusão ampla a essas afirmações eram estrangeiros que vieram se instalar no país. Foram eles que deram grande destaque nos jornais do Sri Lanka à notícia de que o Papa havia atacado o budismo nesse livro. Eram artigos que inflamavam as tensões, ainda que muitas pessoas nem tivessem lido o livro do Papa. Mas um monge budista que eu conhecia escreveu no principal jornal de língua inglesa do Sri Lanka, o Daily News, um artigo em que defendia o Santo Padre. Esse monge escreveu que, segundo as indicações de Buda, todos os ensinamentos deveriam ser submetidos à crítica, inclusive os seus. E, portanto, o Papa tinha todo o direito de dizer o que achava negativo na religião budista. Paradoxalmente, foram mais alguns teólogos católicos que criticaram o Papa do que os próprios budistas. Mais ou menos o mesmo aconteceu com a Dominus Iesus: os ataques maiores vieram dos teólogos católicos e não dos outros. Muitas vezes, nessas coisas, nós nos deixamos guiar por nossas emoções, mais que por uma análise dos fatos. E assim se criam situações antipáticas e inúteis.
De qualquer forma, durante a visita de João Paulo II ao Sri Lanka de janeiro de 1995 os líderes budistas não participaram do encontro com o Papa...
RANJITH: Os líderes não, mas muitos e muitos fiéis budistas participaram do encontro com alegria. Devo especificar que o altar principal no qual o Papa celebrou a santa missa, na esplanada de Galle Face, foi desenhado e construído por um monge budista, nosso amigo, que dessa forma se recusou a ser instrumentalizado pelos outros.
Padre Ranjith durante um encontro de promoção da infância missionária, 
quando era diretor das Pontifícias Obras Missionárias do Sri Lanka

Padre Ranjith durante um encontro de promoção da infância missionária, quando era diretor das Pontifícias Obras Missionárias do Sri Lanka

Voltemos à atualidade. Como o senhor avalia a tentativa de introduzir leis anticonversão em seu país?
RANJITH: Antes de mais nada, nós, cristãos, dizemos claramente à maioria budista que não é nosso desejo subverter as tradições religiosas e culturais em que se reconhece a maioria do povo do Sri Lanka. Além do mais, mesmo que uma lei desse tipo seja aprovada, as conseqüências poderão não ser totalmente negativas. Isso significará que o Senhor quer pôr à prova a nossa fé, e não duvido que com Sua ajuda a fé do nosso povo cristão se reforçará.
Em 1º de outubro de 2001 veio a público a sua nomeação a secretário adjunto de Propaganda Fide. Que recordação o senhor tem desse chamado a Roma?
RANJITH: Em 1995, além de bispo de Ratnapura, eu me tornei também secretário-geral da Conferência Episcopal e presidente da Comissão Episcopal para a Justiça e a Paz. Com o vice-presidente dessa Comissão, o bispo de Mannar, Joseph Rayappu, de etnia tâmil, trabalhei muito para levar o governo de Colombo e os Tigres tâmil à mesa de negociações que conduziram ao cessar-fogo, rompido, infelizmente, justamente nos últimos meses. Lembro-me que conseguimos levar 26 monges budistas à região controlada pelos tâmil para tentar romper a hostilidade que os budistas e os tâmil alimentavam mutuamente em razão das atrocidades cometidas por ambos no passado. O encontro entre os dois grupos foi uma experiência muito feliz. Bem no momento em que eu estava muito empenhado nessas iniciativas de paz, o núncio apostólico me telefonou, anunciando a decisão do Papa de me nomear secretário adjunto de Propaganda Fide e perguntando se eu acataria essa solicitação. Diante do desejo do Papa, eu disse sim. Dessa forma, fui para Roma desenvolver minha missão na Congregação dirigida pelo cardeal Crescenzio Sepe.
Na qual ficou durante cinco anos.
RANJITH: Foi um período muito interessante. Para mim foi um pouco uma continuação do trabalho que eu já havia desenvolvido na qualidade de diretor das Pontifícias Obras Missionárias no Sri Lanka. Foram quase dois anos nos quais procurei ser o mais autêntico, leal e sincero possível no meu trabalho. Tentei valorizar ao máximo o papel dos diretores nacionais das Pontifícias Obras Missionárias nas várias Igrejas locais, e preservar a transparência absoluta em todas as delicadas questões financeiras que estavam relacionadas com essas obras.
Em 29 de abril de 2004 veio a público a sua nomeação a núncio apostólico na Indonésia e no Timor Leste.
RANJITH: Depois de um período de reflexão, me pediram que me tornasse núncio apostólico. Aceitei com grande interesse, mesmo sendo uma experiência nova, num campo que ainda era misterioso para mim. Como bispo, eu havia colaborado com a nunciatura de Colombo, mas não havia recebido a formação especial que os núncios têm. Eu diria que foi uma experiência muito rica e que procurei estar próximo daquela Igreja e de seus pastores e manifestar, dessa forma, a proximidade do Santo Padre.
Foi justamente quando o senhor estava em Jacarta que ocorreu o terrível tsunami que arrasou o Sudeste asiático. Como o senhor viveu essa experiência?
RANJITH: Naqueles dias, um de meus mais queridos amigos, o arcebispo de Viena, cardeal Christoph Schönborn, estava comigo. Quando soubemos da tragédia, abandonamos a programação que havíamos estabelecido para a visita dele e fomos para Banda Aceh. Foi uma viagem extremamente difícil, mas conseguimos chegar a visitar as regiões atingidas. Foi um espetáculo terrível: morte e destruição por todos os lados. Passamos dois dias como missionários, dormindo em alojamentos improvisados, sem água corrente nem luz. Mas ficamos contentes por poder estar próximos da pequena comunidade católica de Banda Aceh e também da ilha de Nias. A voz do cardeal Schönborn, que, de lá, narrava a sua experiência às rádios e TVs européias, foi também determinante para a solidariedade que recebemos de todas as partes do mundo. Depois, por intermédio da rede da Cáritas e da ajuda da Santa Sé, conseguimos estabelecer um programa de ajuda sólida para aquelas populações. A Cáritas indonésia estava inativa; com a ajuda do cardeal arcebispo de Jacarta e da Cáritas Internacional, conseguimos reativar esse organismo eclesial e estabelecer projetos de ajuda para a reconstrução daquelas regiões. Lembro-me de que participamos de reuniões intermináveis, mas importantes, graças às quais pudemos dar nossa contribuição como Igreja Católica às populações atingidas por essa imensa tragédia.
Pouco antes da sua nomeação a núncio, o L’Osservatore Romano de 26-27 de abril de 2004 publicou um artigo seu comentando a instrução Redemptionis Sacramentum, “sobre algumas coisas que se devem observar e evitar acerca da Santíssima Eucaristia”, publicada pouco tempo antes pela Congregação para o Culto Divino, em parceria com a Congregação para a Doutrina da Fé...
RANJITH: Escrevi esse artigo a pedido do prefeito da Congregação para o Culto Divino, cardeal Francis Arinze. Eu tinha achado a Redemptionis Sacramentum muito útil e necessária, e por isso fiquei muito contente em comentá-la.
Foi um artigo por assim dizer profético, visto o cargo que o senhor hoje exerce...
RANJITH: Não sei. Mas, como já disse, sempre me interessei pela liturgia, sobretudo em seus aspectos pastorais, e sempre busquei ler e me atualizar a respeito desses aspectos. Eu me lembro de que, quando encontrava o então cardeal Ratzinger, nas nossas conversas muitas vezes acabávamos falando de liturgia.
Como o senhor conheceu o cardeal Joseph Ratzinger?
RANJITH: Foi graças a uma questão relacionada ao Sri Lanka, a do teólogo Tissa Balasuriya, que havia escrito um livro, Mary and human liberation, no qual era feita uma análise teológica que dificilmente poderia ser considerada compatível com a doutrina católica. Na época, eu era um jovem bispo recém-nomeado, me interessei por esse livro e coordenei uma comissão episcopal criada especialmente para estudá-lo. Em 1994, quando se concluíram os trabalhos dessa comissão, a Conferência Episcopal emitiu um comunicado pelo qual os fiéis eram avisados de que o livro não refletia a doutrina da Igreja. Esse comunicado desencadeou uma campanha na imprensa mundial contra nós e em favor do padre Balasuriya. A controvérsia foi tão forte, que até Roma começou a investigar. E assim fui chamado à Urbe para explicar o que estava acontecendo ao Papa e ao prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger. As afirmações do padre Balasuriya eram tão graves, que em janeiro de 1997 foram formalmente condenadas pela Congregação, e ele mesmo, não as tendo retirado, sofreu a excomunhão latae sententiae. Essa excomunhão foi revogada no ano seguinte, depois de uma solene declaração pública do próprio padre Balasuriya.
Foi nesse contexto, então, que começou a sua convivência com o cardeal Ratzinger...
RANJITH: Sim, eu o encontrei diversas vezes e nessas ocasiões tinha a oportunidade de esclarecer a ele as minhas impressões e as minhas preocupações, enquanto bispo, especialmente a respeito da questão do diálogo inter-religioso e também das questões litúrgicas. Quando, mais tarde, fui chamado a Propaganda Fide, tive a oportunidade de encontrar o cardeal Ratzinger com maior freqüência, também durante as reuniões ordinárias desse organismo, do qual ele também era membro. Assim, além de ser um ávido leitor de seus livros, aprendi a apreciar pessoalmente também seus dotes humanos. Vi sempre nele um grande teólogo e, em suas palavras, não um pedante, mas essencialmente uma pessoa próxima do Senhor.
Dessa forma, o senhor ficou pouco menos de dois anos em Jacarta. Em 10 de dezembro de 2005, foi publicada sua nomeação a secretário do Culto Divino. O senhor esperava esse novo chamado a Roma?
RANJITH: Eu me lembro de que Bento XVI me chamou em audiência a Castel Gandolfo durante o verão de 2005, em meados de setembro, e me perguntou se eu aceitaria a nomeação a secretário da Congregação para o Culto Divino. Eu disse que sim. Sempre me interessei pela liturgia, que sempre considerei a chave da relação entre a fé e a vida, pois da maneira como é celebrada a liturgia é também vivida a fé cristã. A liturgia, por um lado, exterioriza a fé, e, por outro, a alimenta. Poder dar minha contribuição sobre esse ponto, ainda que modesta, sabendo como ele é caro ao papa Bento, encheu meu coração de alegria.
Albert Ranjith com padre Uwe Michael Lang, autor do livro Rivolti al Signore. L’orientamento nella preghiera liturgica, Sena, ed. Cantagalli, 
por ocasião da apresentação da obra, em 27 de abril de 2006

Albert Ranjith com padre Uwe Michael Lang, autor do livro Rivolti al Signore. L’orientamento nella preghiera liturgica, Sena, ed. Cantagalli, por ocasião da apresentação da obra, em 27 de abril de 2006

Excelência, sua primeira aparição pública como secretário da Congregação para o Culto Divino foi uma conferência proferida por ocasião da apresentação do livro de Uwe Michael Lang, oratoriano de origem alemã residente em Londres, Rivolti al Signore. L’orientamento della preghiera liturgica (Sena, Cantagalli, 2006, 150 pp.), realizada em 27 de abril no Instituto Patrístico Augustinianum de Roma. O livro, publicado em alemão em 2003, contém um prefácio do então cardeal Joseph Ratzinger, publicado pela primeira vez em italiano na edição de março de 2004 de 30Dias. O que mais o impressionou nesse livro?
RANJITH: Eu já havia lido esse livro e o belíssimo prefácio do então cardeal Ratzinger. Assim, quando recebi o convite, aceitei logo. Foi uma oportunidade para proporcionar um debate muito positivo na Igreja. Fala-se muito de participação dos fiéis na liturgia. Mas os fiéis participam mais quando o sacerdote celebra versus populum ou quando celebra voltado para o altar? De fato, não se pode dizer que essa participação é mais ativa quando o padre celebra voltado para o povo; pode acontecer que nesse caso o povo se distraia. Da mesma forma, a participação é verdadeira quando o abraço da paz cria uma grande confusão na igreja, com os sacerdotes indo às vezes cumprimentar até as últimas fileiras? Essa é a actuosa participatio, desejada pelo Concílio Vaticano II, ou simplesmente uma grande distração que não ajuda em nada a acompanhar com devoção o momento seguinte da missa (para não falar que às vezes se esquece até de dizer o Agnus Dei...)? Repito, o livro de padre Lang foi e é uma provocação extremamente útil, a começar pela introdução, na qual o cardeal Ratzinger lembra que o Concílio nunca pediu que se abolisse o latim, nem que se revolucionasse a direção da oração litúrgica...
Uma entrevista sua à Croix de 25 de junho, intitulada “A reforma litúrgica do Vaticano II nunca decolou”, provocou um grande burburinho. O senhor pode explicar melhor seus juízos sobre a reforma litúrgica posta em prática depois do Concílio Vaticano II?
RANJITH: Essas palavras foram retiradas do seu contexto. Não é que eu tenha avaliado negativamente tudo o que ocorreu depois do Concílio. O que eu disse foi que o resultado esperado pela reforma litúrgica não se manifestou. Nós nos perguntamos se a vida litúrgica, a participação dos fiéis nos ritos sagrados, é mais alta e melhor hoje do que a que se dava na década de 1950. Criticava-se o fato de que, antes do Concílio, os fiéis não participavam realmente da missa, mas a assistiam passivamente ou praticavam devoções pessoais. Mas os fiéis hoje participam mesmo de um modo espiritualmente mais elevado e pessoal? Aconteceu mesmo que muitas pessoas que estavam fora da Igreja começaram a fazer fila para entrar nas nossas igrejas depois das novas liturgias? Ou será que não aconteceu justamente o contrário, que muitos foram embora e que as igrejas se esvaziaram? De que reforma estamos falando, então?
Culpa da secularização...
RANJITH: Certamente, mas essa situação é também fruto da maneira como foi tratada, ou melhor, maltratada a liturgia... Na prática, a meu ver, as sacrossantas expectativas do Concílio de uma liturgia mais bem compreendida e portanto espiritualmente mais fecunda receberam uma resposta ainda mais decepcionante. Portanto, há ainda muito o que fazer, a fim de que as igrejas se encham de novos de fiéis que se sintam realmente tocados pela graça do Senhor durante as sagradas liturgias. Num mundo secularizado, em vez de procurar elevar os corações para a grandeza do Senhor, procurou-se muito mais, eu acredito, rebaixar os mistérios divinos a um nível banal.
Albert Ranjith, recém-ordenado bispo auxiliar de Colombo, é recebido em sua paróquia de origem

Albert Ranjith, recém-ordenado bispo auxiliar de Colombo, é recebido em sua paróquia de origem

Quando o senhor foi nomeado secretário para o Culto Divino, escreveram que tinha ótimas relações com o mundo lefebvriano. Isso corresponde à verdade?
RANJITH: Não conheci dom Marcel Lefebvre em razão da nossa diferença de idade, pois ele é de uma outra geração. Mas certamente tive algum contato com alguns de seus seguidores. Mas não sou um apaixonado pelos lefebvrianos. Infelizmente, ainda não voltaram à plena comunhão com a Santa Sé, mas às vezes quando falam sobre a liturgia é evidente que estão cobertos de razão. E por isso são uma provocação que nos deve fazer refletir sobre o que estamos fazendo. Isso não significa que posso ser definido um adepto ou um amigo dos lefebvrianos. Compartilho alguns pontos defendidos pelos chamados militantes antiglobalização com relação à justiça social, mas isso não significa que sou um adepto deles... Por outro lado, a missa tridentina não é propriedade privada dos lefebvrianos. Ela é um tesouro da Igreja e de nós todos. Como o Papa disse à Cúria Romana no ano passado, o Concílio Vaticano II não é um momento de ruptura, mas de renovação na continuidade. Não se joga fora o passado, mas se cresce sobre ele.
Isso significa que a chamada missa de São Pio V, na realidade, nunca foi abolida?
RANJITH: O fato de a Santa Sé ter recentemente aprovado a instituição, em Bordeaux, de uma sociedade de vida apostólica de direito pontifício caracterizada por usar exclusivamente os livros litúrgicos pré-conciliares [o Instituto do Bom Pastor, no qual se reuniram alguns “ex-lefebvrianos”, ndr.], significa de maneira inequívoca que a missa de São Pio V não pode ser considerada abolida pelo novo missal chamado de Paulo VI.


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