Home > Arquivo > 02 - 2007 > Um patrimônio a ser salvo
CHIPRE
Extraído do número 02 - 2007

REPORTAGEM. As igrejas bizantinas em ruínas na região norte da ilha

Um patrimônio a ser salvo


Viagem entre as antigas igrejas abandonadas no norte de Chipre que se encontram em grave situação de degradação. Um patrimônio artístico e de fé que corre o risco de desaparecer para sempre. Um tema sobre o qual os líderes religiosos da ilha começaram a dialogar pela primeira vez em 21 de fevereiro passado, na esperança de abrir uma nova fase de distensão entre a área grega e a área turca. O encontro entre os líderes religiosos ocorreu pouco antes da demolição de uma parte do muro que divide Nicósia, mais um importante sinal de degelo


de Giovanni Ricciardi


Data de 3 de julho de 2006 a resolução com a qual o Parlamento Europeu denunciou pela primeira vez por vias oficiais a situação de degradação e sistemática espoliação a que é submetido o patrimônio artístico e cultural do norte de Chipre, ocupado há 32 anos pelo exército turco. O presidente da República de Chipre, Tassos Papadopoulos, quis visitar pessoalmente o papa Bento XVI em 10 de novembro passado, apresentando-lhe um álbum fotográfico que documenta a gravidade do problema.
O que resta da igreja de São Nicolau (século XV), em Trachoni, não distante de Nicósia

O que resta da igreja de São Nicolau (século XV), em Trachoni, não distante de Nicósia

Boa parte das imagens que 30Dias apresenta nestas páginas é inédita. Afinal, só a partir de 2003 tem sido permitido aos greco-cipriotas atravessarem a linha de fronteira entre a República de Chipre e a região sob controle dos turcos. Desde então, as principais instituições culturais do país, como o Museu Bizantino da Fundação “Arcebispo Makarios III” e o Museu do Mosteiro de Kikkos, vêm monitorando a situação no território e chegaram a montar um arquivo de quase 20 mil fotografias digitais, relativas às cerca de quinhentas igrejas bizantinas e aos dezessete mosteiros situados no norte da ilha, que datam desde a época paleocristã até a Idade Moderna, passando pela era bizantina e pelo período da dominação francesa (séculos XI a XV) e veneziana (séculos XV a XVI): um patrimônio artístico de valor excepcional, boa parte do qual perdida ou degradada. São imagens que testemunham a urgência de uma intervenção de defesa que preserve a herança histórica, cultural e religiosa dessa região. É mérito de Ioannis Eliades, curador do Museu Bizantino de Nicósia, e de Charalampos Chotzakoglou, professor de História da Arte Bizantina na Universidade de Atenas, terem posto à disposição esse material, do qual foi extraída uma mostra fotográfica itinerante que pretende chegar no futuro a todas as capitais da União Européia.

Um pouco de história
Era 20 de julho de 1975 quando as tropas turcas desembarcaram no norte da ilha, chegando a controlar em pouco tempo um terço do país. Poucos anos mais tarde, em 1983, a região se autoproclamava “República Turca do Norte de Chipre”, entidade nunca ligitimada pela comunidade internacional e reconhecida apenas por Ancara. Ainda hoje, esse território – pouco mais de três mil quilômetros quadrados – é protegido por 40 mil soldados e dividido do resto da ilha por uma longa cerca de arame farpado sob a vigilância dos capacetes azuis da ONU. Uma linha que desde então divide também fisicamente as duas principais etnias que por séculos conviveram na ilha: os greco-cipriotas, de fé ortodoxa (82 por cento, com minorias latinas, maronitas e armênias), e os turco-cipriotas, muçulmanos (18 por cento), que descendem em parte dos Otomanos que governaram Chipre de 1571 a 1878 e em parte de gregos ou latinos que se converteram ao islã durante o domínio da Porta Sublime.
Aos grupos étnicos originários de Chipre se acrescentaram, nos últimos trinta anos, 160 mil colonos da Anatólia Central, introduzidos no norte pelo governo turco, que modificaram a composição demográfica da região, levando os próprios turco-cipriotas a se tornarem uma minoria, difundindo-se entre eles a tendência a migrar para os Estados Unidos, para a Grã-Bretanha e para a Austrália: uma hemorragia que reduziu seu número de 135 mil para 80 mil.

O afresco com os santos Andrônico e Atanásia na igreja de Santo Andrônico em Kythrea, um dos poucos que continuaram in situ depois do saque e do desabamento do teto

O afresco com os santos Andrônico e Atanásia na igreja de Santo Andrônico em Kythrea, um dos poucos que continuaram in situ depois do saque e do desabamento do teto

Os primeiros passos do diálogo
O problema ficou no papel até o final da década de 1990, apesar das muitas resoluções das Nações Unidas que pedem a retirada das tropas turcas e a reunificação do país. Mas quando foi acolhida, em 1999, a candidatura de Chipre à União Européia, começou uma longa negociação, sob observação da ONU, para encontrar uma solução de consenso, antes que a ilha passasse efetivamente a fazer parte da Europa. Foi o secretário-geral Kofi Annan que assumiu a tarefa de conduzir as negociações. Sua proposta final foi reprovada no referendo popular de 24 de abril de 2004. Uma semana depois, a União Européia aceitava da mesma forma o ingresso de Chipre como Estado que compreendia também o norte da ilha, no qual continua até hoje suspenso o chamado Acquis Communautaire, o conjunto de normas e convenções aceitas pelos países membros. Só em julho passado as partes retomaram o compromisso de reiniciar um diálogo em nível técnico e não político, que ainda pena para decolar.

Duas comunidades voltam a se encontrar
Mas um resultado concreto e importantíssimo da negociação da ONU foi a abertura, em 2003, de alguns pontos de passagem entre os dois setores da ilha, até então completamente fechados um ao outro. A partir desse momento se registraram 11 milhões de passagens. As duas comunidades voltaram a se encontrar. Multiplicam-se os intercâmbios comerciais, publicam-se jornais bilingües, a TV transmite debates entre os diversos representantes políticos e religiosos. Muitos turco-cipriotas se dirigem para o sul, obtêm o passaporte comunitário e a assistência à saúde gratuita, que lhes é garantida (e não para os colonos) enquanto cidadãos de pleno direito da UE. E é provável que hoje uma convivência fosse possível, apesar dos muitos problemas não resolvidos e dos processos abertos em torno das propriedades individuais, da questão das pessoas desaparecidas durante a guerra, das quais não se tem mais notícia desde 1974, e das discussões sobre os caminhos que poderiam conduzir, num futuro impreciso, a uma reunificação da ilha de forma federal.
Os greco-cipriotas também atravessam com freqüência as fronteiras. Voltam a ver os lugares de sua infância, a casa onde nasceram, a igreja do povoado. Uma peregrinação muitas vezes dolorosa. Em 30 de novembro passado, pela quarta vez, foram atraídos aos milhares para o santuário de Santo André Apóstolo, na ponta extrema da península de Karpasia, para venerar seu protetor. Santo André é uma das pouquíssimas igrejas do norte ainda em funcionamento, para as quais o Usaid (United States Agency for International Development) está realizando um programa de restauração. Mas as coisas não andam assim no resto do setor norte.

O mosteiro maronita do Profeta Elias, em Skylloura, hoje destruído e usado como abrigo para animais

O mosteiro maronita do Profeta Elias, em Skylloura, hoje destruído e usado como abrigo para animais

A situação das igrejas
De 1974 até hoje, reduziram-se a quatro ou cinco as igrejas do norte que ainda funcionam. Setenta e sete foram transformadas em mesquitas, depois de terem sido espoliadas de todos os ícones e dos paramentos sacros; as outras foram submetidas a saques e destruições, utilizadas como estábulo para animais, lojas, garagens, depósitos de armas, necrotérios, hotéis, galerias de arte, night club, ou simplesmente abandonadas a seu destino, sem contar cinqüenta edifícios sacros dos quais ainda não são conhecidas as condições, pois se encontram dentro de regiões sob controle militar direto, e outros que foram demolidos. Nem os numerosos sítios arqueológicos da região ficaram isentos de furtos e espoliações. Outro motivo para alarme é o furto e a venda, que começaram logo depois de 1974, de mosaicos, afrescos, milhares de ícones – cujo número é estimado em cerca de 20 mil, hoje praticamente desaparecidos –, negociados no mercado negro internacional de obras de arte. Um fenômeno que infelizmente é comum a muitas regiões do Oriente Médio expostas a ventos de guerra, mas que no norte de Chipre assumiu um caráter sistemático de trinta e dois anos para cá. As conseqüências são hoje pesadamente evidentes.
Um dos exemplos mais fortes é o da igreja de Panagia Kanakaria, na qual existia uma obra de arte de valor inestimável. Seu mosaico absidal, da época de Justiniano (datado entre 525 e 530), estava entre as pouquíssimas imagens que escaparam, no Mediterrâneo oriental, da fúria dos iconoclastas; mas, em 1979, foi arrancado e dividido em pedaços. Representava Cristo nos braços da Virgem sentada no trono, cercada pelos arcanjos Miguel e Gabriel e por treze medalhões com os rostos de Cristo e dos apóstolos. Quatro peças reapareceram na Europa em 1988. Um mercador de arte turco, Aydin Dikmen, ofereceu-as à antiquária americana Peggy Goldberg, fechando o negócio por um milhão de dólares. Mas quando Goldberg, por intermédio do arquiduque Geza de Habsburgo e de sua casa de leilões de Genebra, contatou Marion True, diretora do Paul Getty Museum de Malibu, para revender os mosaicos pela cifra de 20 milhões de dólares, o Museu avisou as autoridades judiciárias americanas e a Igreja cipriota. Hoje os fragmentos, restituídos pela magistratura dos Estados Unidos ao legítimo proprietário, estão expostos no Museu Bizantino de Nicósia. Mas o resto do mosaico é irrecuperável, se é que o procedimento rudimentar de descolamento da parede não provocou a destruição de boa parte da obra. “A odisséia dos mosaicos da igreja de Kanakaria”, escrevia em 1990 no Frankfurter Allgemeine Zeitung o bizantinólogo alemão Klaus Gallas, de volta de uma viagem ao norte de Chipre, “representa apenas um dos milhares de exemplos de obras desaparecidas que só em raras ocasiões puderam ser reconhecidas como obras de arte roubadas”.
O famoso mosteiro bizantino na cidade de Kalogrea, conhecido pelo nome de Antiphonitis, tornou-se o símbolo da destruição do patrimônio artístico e eclesial do norte do Chipre. Seus esplêndidos afrescos, datados entre os séculos XII e XV, foram cortados em pequenos pedaços para poderem ser vendidos a colecionadores particulares. A enorme representação do Segundo Advento ou a monumental representação da Árvore de Jessé e algumas cenas da Vida de Maria já estão perdidas para sempre. A Igreja de Chipre conseguiu recuperar apenas alguns fragmentos deles, enquanto outros continuam escondidos em coleções particulares desconhecidas. E quando vêm à luz aqui e ali, nos estoques das casas de leilão ocidentais, começam longas batalhas legais para procurar recuperá-los e restituí-los a Chipre. Uma operação que nem sempre tem sucesso: em 1995, uma corte holandesa se pronunciou contra o repatriamento de quatro preciosos ícones provenientes da igreja de Antiphonitis. Resultaram em nada também as tentativas de trazer de volta a Chipre uma porta proveniente da iconóstase da igreja de Agios Anastasios, em Peristerona, perto da cidade de Famagusta, atualmente exposta no Colégio de Arte japonês de Osaka.
O precioso afresco do Segundo Advento (século XV) do mosteiro de Antiphonitis, no vilarejo de Kalogrea

O precioso afresco do Segundo Advento (século XV) do mosteiro de Antiphonitis, no vilarejo de Kalogrea

Maior sorte tiveram os trinta e oito fragmentos do século XIII furtados da igreja de Agios Eufemianos, no povoado de Lyssi, vendidos à Menil Foundation of Texas, e hoje expostos no museu da Fundação, em Houston. Os afrescos, recompostos e restaurados, que representam o Cristo Pantocrátor e a Virgem, graças a um acordo entre a Igreja Ortodoxa de Chipre e a Fundação americana, deverão ser restituídos a Chipre até 2012. Mas só pouquíssimos dos 20 mil ícones das igrejas do norte puderam ser recuperados. Não faltaram nesse sentido casos em que os próprios turco-cipriotas conservaram a salvo e restituíram à Igreja Ortodoxa preciosos ícones provenientes do norte.

O papel da Europa
As instituições culturais do país procuram hoje envolver a opinião pública européia, na esperança de poder encontrar rapidamente um caminho apto a preservar e recuperar um patrimônio que corre o risco de ser definitivamente apagado. E muito se poderia fazer, se fosse possível obter as permissões para restaurar e preservar as estruturas arquitetônicas e os afrescos ainda presentes in situ do perigo de desabamento ou de novos saques, e encontrar solução para o litígio entre a Turquia e a Igreja Ortodoxa de Chipre, uma vez que aquela não reconhece a esta a propriedade sobre esses edifícios sacros.
A Europa, por seu lado, começa a responder. Depois da resolução do Parlamento de Estrasburgo, em julho passado, em dezembro a Comissão Européia aprovou o projeto de uma catalogação sistemática dos monumentos religiosos do norte do Chipre e da quantificação dos danos provocados pela guerra e pelos saques, para proceder a uma obra de restauração e preservação. E durante a recente visita a Chipre do presidente da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa, Renè Van der Linden, os cipriotas ofereceram à Comissão o banco de dados já preparado nestes anos, pedindo a Van der Linden que trabalhasse para que os estudiosos obtenham a permissão de visitar as cinqüenta igrejas que se encontram dentro das áreas militares do norte; e esclareceram também que podem participar do projeto representantes de todos os grupos religiosos interessados, além dos ortodoxos: católicos latinos e maronitas, anglicanos, protestantes, armênios e judeus, proprietários dos respectivos lugares de culto, para que cada um possa contribuir para a restauração e a manutenção desses edifícios.

Um dos trinta e cinco fragmentos dos afrescos do mosteiro de Antiphonitis (século XV) seqüestrados em Munique, restituídos às autoridades em 1997 e hoje expostos no Museu Bizantino de Nicósia

Um dos trinta e cinco fragmentos dos afrescos do mosteiro de Antiphonitis (século XV) seqüestrados em Munique, restituídos às autoridades em 1997 e hoje expostos no Museu Bizantino de Nicósia

Um encontro inesperado
Mas a visita de Van der Linden contribuiu também para abrir um diálogo entre os líderes religiosos da ilha. Em 21 de fevereiro passado, no Ledra Palace Hotel, a sede do comando da ONU que controla a linha de demarcação entre o sul e o norte, ocorreu o primeiro encontro oficial entre Chrysostomos II, novo arcebispo ortodoxo de Chipre, e Ahmed Yonluer, chefe religioso dos turco-cipriotas. É mérito do presidente da Assembléia Parlamentar do Conselho da Europa ter conseguido inserir “discretamente” na agenda um tema delicado como o das igrejas do norte. Um êxito que não tem nada de óbvio, impensável até pouco tempo atrás. O arcebispo expressou a necessidade de dar início a uma obra de restauração em larga escala. Yonluer deu sinais de abertura prudente, propondo começar pelo mosteiro de Santo André Apóstolo, e pediu em troca que seja permitido a um hodja, um religioso muçulmano, que resida permanentemente no Hala Sultan Tekke, uma meta popular de peregrinação para os muçulmanos de Chipre que se encontra às margens do lago salgado de Larnaka, no sul do país. Chrysostomos II se declarou pronto a aceitar que em todos os lugares de culto islâmicos do sul possa se estabelecer o clero islâmico, mas Yonluer preferiu frisar a necessidade de uma política de pequenos passos. Em todo caso, o encontro foi cordial. O arcebispo declarou ter encontrado em Yonluer “um amigo até agora desconhecido”. E acrescentou: “Ambos expressamos a nossa determinação a trabalhar pela restauração e a manutenção dos monumentos religiosos em ambas as partes da ilha”.
A marcha de aproximação entre a Turquia e a Europa não poderá deixar de passar também por aqui. E a questão das igrejas de Chipre poderia ser uma oportunidade, também para Ancara, para convencer os países mais relutantes a seu ingresso na UE. Sem provas de força, por parte de ninguém, mas por meio de um diálogo positivo sobre temas concretos. “O próprio processo de integração européia, por sua natureza, é um processo de paz”, comenta a propósito disso a embaixadora Erato Kozakou-Mercoullis, diretora da Divisão da Questão Cipriota no Ministério das Relações Exteriores de Nicósia: “Por isso”, conclui, “apesar dos muitos problemas não resolvidos, eu estou otimista”.


Italiano Español English Français Deutsch