Para Pelágio a graça é apenas conhecimento e não atração amorosa
Entrevista com Nello Cipriani, professor ordinário do Instituto Patrístico Augustunianum
Entrevista com Nello Cipriani de Lorenzo Cappelletti
A figura do piedoso monge britânico
Pelágio e o seu contraste com Agostinho já há algum
tempo é um assunto que superou o recinto das discussões
acadêmicas e se impôs como argumento de atualidade eclesial.
Talvez porém pagando por uma simplificação excessiva:
Pelágio campeão da moral e Agostinho da graça. Na
realidade nem mesmo Pelágio esconde o papel da graça
divina...
NELLO CIPRIANI: Pelágio é um herege cristão. Herege como cristão. Acredita na graça que Deus nos fez em Cristo, o qual morreu e ressuscitou por nós. Acredita que, mediante Cristo Deus nos doou o Espírito Santo perdoando-nos os pecados e adotando-nos como filhos. Porém é herege porque limita a ação da graça do Espírito Santo no coração do crente. Como reconhece o próprio Agostinho, a graça, que fala Pelágio não é apenas uma ajuda exterior (como o ensinamento e o exemplo); é também um dom do Espírito, que deve ser pedido nas orações. Todavia mesmo esta ajuda interior resta sempre no plano do conhecimento. Trata-se em todo o caso da revelação de uma verdade, de uma iluminação e jamais de uma ajuda à vontade, que permanece sempre única a decidir. A graça divina, para Pelágio, mantém sempre um caráter puramente intelectivo.

O senhor poderia aprofundar o sentido do
“caráter intelectivo” da graça em Pelágio?
CIPRIANI: Pelágio é disposto a reconhecer uma iluminação da mente; e neste sentido fala da graça de Cristo que ajuda o agir moral do crente. Mas, segundo ele, o Espírito Santo não difunde nos corações a caridade, que seria fruto da vontade humana. Santo Agostinho evidentemente reconhece a graça do ensinamento e do exemplo, mas desaprova Pelágio por reconhecer o dom menor e de negar o maior: o dom da inspiratio dilectionis. Para Pelágio a ação da graça de Deus alcança o homem somente através de uma revelação que ilumina a mente. Deus opera em nós a vontade daquilo que é bem, a vontade daquilo que é santo, no momento em que nos inflama, com a revelação da grandeza dos bens futuros e a promessa dos prêmios, nós que somos sujeitos aos bens terrenos e que, assim como os animais irracionais, amamos apenas as coisas que estão sob os nossos olhos; no momento em que causa a vontade indolente ao desejo de Deus com a revelação da sabedoria; no momento em que nos persuade daquilo que é o bem” (De gratia Christi et de peccato originali I, 10, 11). Para Pelágio o cristianismo se reconduz ultimamente a um ensinamento, a uma doutrina. Não é o acontecimento de uma presença que fascina.
Parece que Pelágio não conhecesse o grego. A quais ensinamentos recorreu?
CIPRIANI: Pelágio justificava a redução da graça de Cristo com a preocupação de não desresponsabilizar o homem, destruindo o livre arbítrio. Admitia que devido aos maus hábitos no homem se pudesse obscurar a razão e portanto o conhecimento da lei natural; por isso Cristo viria ao socorro do homem com o ensinamento e com o exemplo, para fazê-la redescobrir. Mas não admitia que se pudesse enfraquecer a vontade, que por isso não teria alguma necessidade de ser curada e ajudada. Esta concepção moral permanecia fiel aos princípios fundamentais da pedagogia antiga (paideia), que via os pilares do agir moral na capacidade natural de conquistar as virtudes e no empenho da vontade pessoal, enquanto dava ao ensinamento e ao exemplo do mestre a função de levar à perfeição. Para conhecer esta concepção pedagógica e moral não era necessário ler os tratados de filosofia grega, bastava freqüentar as escolas da época. A retórica antiga, como se sabe, não pretendia apenas ensinar a falar bem, queria além disso ser escola de vida, queria dar uma educação completa do homem, intelectual e moral, além de literária. Portanto não deve surpreender se a escola e os tratados de retórica constituíram o lugar mais natural em que Pelágio e antes dele outros padres, principalmente gregos, puderam assimilar os princípios constitutivos da pedagogia antiga, adaptando a ela de qualquer forma a novidade da fé cristã.
Quais eram em síntese os princípios constitutivos da pedagogia antiga?
CIPRIANI: Os princípios fundamentais da concepção pelagiana da vida moral e espiritual, que correspondem exatamente aos da formação oratória e em geral de qualquer educação moral, podem ser reduzidos a três: a natureza, ou seja a capacidade inata de conhecer e cumprir livremente o bem; a vontade, ou melhor a aplicação assídua (studium), a prática (usus), o exercício (exercitatio) ou a imitação (imitatio) de modelos (exempla); e a doutrina, presente na lei evangélica. Pelágio sustentava que “de Deus temos a possibilidade inata do bem e do mal, quase, por assim dizer, uma raiz frutífera e fecunda; mas ela gera e produz frutos diversos segundo a vontade do homem; pode resplandecer flores da virtude ou cobrir-se de espinhos dos vícios segundo o arbítrio do próprio cultivador” (De gratia Christi et peccato originali I, 18,19).
Por outro lado, também Agostinho, formou-se em uma escola de retórica. Em que sentido e por que foi diversamente influenciado?
CIPRIANI: Também Santo Agostinho conhecia aquela concepção transmitida pela escola, que aliás demonstra compartilhar plenamente no âmbito da formação artística. Mas a considerava insuficiente para exprimir a novidade e a eficácia da graça de Jesus Cristo. Por motivos escriturísticos e teológicos rompeu de maneira bem mais radical do que o austero moralista britânico com a concepção moral transmitida pela escola de retórica.
Extraído de 30Dias (n.3, março de 1996, pp. 30-33) e republicada em Il potere e la grazia. Attualità di sant’Agostino, Nuova Omicron Roma 1998, pp.115-123.
NELLO CIPRIANI: Pelágio é um herege cristão. Herege como cristão. Acredita na graça que Deus nos fez em Cristo, o qual morreu e ressuscitou por nós. Acredita que, mediante Cristo Deus nos doou o Espírito Santo perdoando-nos os pecados e adotando-nos como filhos. Porém é herege porque limita a ação da graça do Espírito Santo no coração do crente. Como reconhece o próprio Agostinho, a graça, que fala Pelágio não é apenas uma ajuda exterior (como o ensinamento e o exemplo); é também um dom do Espírito, que deve ser pedido nas orações. Todavia mesmo esta ajuda interior resta sempre no plano do conhecimento. Trata-se em todo o caso da revelação de uma verdade, de uma iluminação e jamais de uma ajuda à vontade, que permanece sempre única a decidir. A graça divina, para Pelágio, mantém sempre um caráter puramente intelectivo.

Ruínas arqueológicas de uma basílica cristã em Cartago
CIPRIANI: Pelágio é disposto a reconhecer uma iluminação da mente; e neste sentido fala da graça de Cristo que ajuda o agir moral do crente. Mas, segundo ele, o Espírito Santo não difunde nos corações a caridade, que seria fruto da vontade humana. Santo Agostinho evidentemente reconhece a graça do ensinamento e do exemplo, mas desaprova Pelágio por reconhecer o dom menor e de negar o maior: o dom da inspiratio dilectionis. Para Pelágio a ação da graça de Deus alcança o homem somente através de uma revelação que ilumina a mente. Deus opera em nós a vontade daquilo que é bem, a vontade daquilo que é santo, no momento em que nos inflama, com a revelação da grandeza dos bens futuros e a promessa dos prêmios, nós que somos sujeitos aos bens terrenos e que, assim como os animais irracionais, amamos apenas as coisas que estão sob os nossos olhos; no momento em que causa a vontade indolente ao desejo de Deus com a revelação da sabedoria; no momento em que nos persuade daquilo que é o bem” (De gratia Christi et de peccato originali I, 10, 11). Para Pelágio o cristianismo se reconduz ultimamente a um ensinamento, a uma doutrina. Não é o acontecimento de uma presença que fascina.
Parece que Pelágio não conhecesse o grego. A quais ensinamentos recorreu?
CIPRIANI: Pelágio justificava a redução da graça de Cristo com a preocupação de não desresponsabilizar o homem, destruindo o livre arbítrio. Admitia que devido aos maus hábitos no homem se pudesse obscurar a razão e portanto o conhecimento da lei natural; por isso Cristo viria ao socorro do homem com o ensinamento e com o exemplo, para fazê-la redescobrir. Mas não admitia que se pudesse enfraquecer a vontade, que por isso não teria alguma necessidade de ser curada e ajudada. Esta concepção moral permanecia fiel aos princípios fundamentais da pedagogia antiga (paideia), que via os pilares do agir moral na capacidade natural de conquistar as virtudes e no empenho da vontade pessoal, enquanto dava ao ensinamento e ao exemplo do mestre a função de levar à perfeição. Para conhecer esta concepção pedagógica e moral não era necessário ler os tratados de filosofia grega, bastava freqüentar as escolas da época. A retórica antiga, como se sabe, não pretendia apenas ensinar a falar bem, queria além disso ser escola de vida, queria dar uma educação completa do homem, intelectual e moral, além de literária. Portanto não deve surpreender se a escola e os tratados de retórica constituíram o lugar mais natural em que Pelágio e antes dele outros padres, principalmente gregos, puderam assimilar os princípios constitutivos da pedagogia antiga, adaptando a ela de qualquer forma a novidade da fé cristã.
Quais eram em síntese os princípios constitutivos da pedagogia antiga?
CIPRIANI: Os princípios fundamentais da concepção pelagiana da vida moral e espiritual, que correspondem exatamente aos da formação oratória e em geral de qualquer educação moral, podem ser reduzidos a três: a natureza, ou seja a capacidade inata de conhecer e cumprir livremente o bem; a vontade, ou melhor a aplicação assídua (studium), a prática (usus), o exercício (exercitatio) ou a imitação (imitatio) de modelos (exempla); e a doutrina, presente na lei evangélica. Pelágio sustentava que “de Deus temos a possibilidade inata do bem e do mal, quase, por assim dizer, uma raiz frutífera e fecunda; mas ela gera e produz frutos diversos segundo a vontade do homem; pode resplandecer flores da virtude ou cobrir-se de espinhos dos vícios segundo o arbítrio do próprio cultivador” (De gratia Christi et peccato originali I, 18,19).
Por outro lado, também Agostinho, formou-se em uma escola de retórica. Em que sentido e por que foi diversamente influenciado?
CIPRIANI: Também Santo Agostinho conhecia aquela concepção transmitida pela escola, que aliás demonstra compartilhar plenamente no âmbito da formação artística. Mas a considerava insuficiente para exprimir a novidade e a eficácia da graça de Jesus Cristo. Por motivos escriturísticos e teológicos rompeu de maneira bem mais radical do que o austero moralista britânico com a concepção moral transmitida pela escola de retórica.
Extraído de 30Dias (n.3, março de 1996, pp. 30-33) e republicada em Il potere e la grazia. Attualità di sant’Agostino, Nuova Omicron Roma 1998, pp.115-123.