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Visível ou invisível? Diálogo sobre a realidade de Cristo ressuscitado
ET RESURREXIT TERTIA DIE SECUNDUM SCRIPTURAS
Visível ou invisível? Diálogo sobre a realidade de Cristo ressuscitado
Resposta de Massimo Borghesi, professor de Filosofia Moral da Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Perúgia (Itália)
de Massimo Borghesi

A incredulidade de Tomás, Caravaggio, Bildergalerie, Potsdam-Sanssoucis
O senhor tem a firme convicção de que a transmissão e a compreensão da fé, no mundo contemporâneo, exige, na teologia, uma “mudança de paradigma”3, a “necessidade de uma mudança global e estrutural”4. Para isso, é necessária uma “desconstrução da visão tradicional”5, uma desconstrução “das narrativas pascais”6, que leve a uma “leitura não fundamentalista”7 dessas narrativas, ou seja, a uma leitura não literal. Ao dizer isso, o senhor assume como guia e mestre Rudolf Bultmann, o qual “demonstrou de maneira irreversível ser ‘mitológica’”8 a visão neotestamentária tal como é expressa na linguagem (ingenuamente) realista dos Evangelhos. Para Bultmann, “é mitológica a concepção em que o não-mundano, o divino aparece como mundano, humano, e o além como aquém”9. É mitológica, portanto, toda a Revelação cristã, na medida em que entende a ação de Deus de modo histórico-empírico; são mitológicos os milagres, sinais sensíveis do poder divino. Como afirma Bultmann, com desarmante simplicidade: “Não nos podemos servir da luz elétrica e do rádio, ou recorrer, em caso de doença, às modernas descobertas médicas e clínicas, e ao mesmo tempo crer no mundo dos espíritos e dos milagres propostos pelo Novo Testamento”10. O senhor não adere às mesmas conclusões radicais do teólogo de Marburg. Segue-o, porém, na idéia de fundo, segundo a qual o discurso neotestamentário, “enquanto discurso mitológico, não é crível para os homens de hoje”11. Essa convicção o leva a ter certeza de que chegou a hora de uma reviravolta geral na teologia do Jesus ressuscitado. São os principais pontos dessa reviravolta que tento aqui, brevemente, resumir.
Teodicéia racionalista, teologia do “não-acontecimento”, cristianismo “socrático”
O primeiro e fundamental pressuposto de Bultmann é bem expresso por David Friedrich Strauss em sua Leben Iesu, de 1835: “O divino não pode ter acontecido assim (em primeiro lugar, de um modo imediato, e, também, de um modo ordinário) ou, por outra, o que aconteceu assim não pode ser divino”12. Trata-se do postulado racionalista segundo o qual Deus (se existe) não pode agir ou manifestar-se sensivelmente no espaço e no tempo. Deus não pode ser causa de eventos particulares, mas apenas fonte de leis universais. Isso leva Strauss (e com ele Bultmann) a uma “filosofia do não-acontecimento”13, a uma teoria que é a negação sistemática da possibilidade da Encarnação. Isso não surpreende. Desde o Deus sive natura de Spinoza, até o “largo fosso” entre as casuais verdades históricas e as verdades universais de Lessing até a crítica da fé supersticiosa de Kant, o procedimento é o mesmo: Deus não pode se manifestar na história. O panteísmo e o deísmo, de pontos de vista diversos, se opõem tanto ao Antigo quanto ao Novo Testamento, tanto à fé hebraica quanto à fé cristã.
Estranhamente, o senhor, em seu livro Ripensare la risurrezione, adere a esse ponto de vista criticando o “deísmo intervencionista [sic!]”14, segundo o qual Deus opera mediante “milagres”, ou seja, intervenções específicas no espaço e no tempo. Para o senhor, essa idéia do divino, que se expressa nas orações e nas fórmulas da piedade cristã, é expressão de um “esquema imaginativo”15 (kantiano) de uma mentalidade ingênua, popular, que não compreende que Deus, na realidade, não opera mediante milagres, mas mediante uma creatio continua que não viola a autonomia do mundo, com suas leis naturais. A cada instante, Deus faz “tudo o que é possível: ‘poeta do mundo’, procura levá-lo à máxima realização que lhe permitem os limites e as incompatibilidades inerentes a sua finitude”16. Assim, o senhor volta (conscientemente) a Leibniz e a sua idéia do melhor dos mundos possíveis. “Deus ‘poderia’ não ter criado o mundo, mas, se o criou, ele é finito e, se é finito, nele não podem deixar de estar presentes a carência e a contradição: o mal. Do contrário, o mundo seria infinito como Deus”17. Dessa forma, “o mal, como já vira Leibniz [...], tem sua condição de possibilidade na finitude”18. Deus, criando o mundo enquanto finito, cria, com ele, a necessidade do mal. O mal é necessariamente congênito à finitude, ontologicamente intrínseco à natureza finita. Não sei se o senhor se dá conta do caráter “gnóstico” dessa posição e de sua inconciliabilidade com a doutrina cristã.
te; presente na natureza.
Se não existem milagres e a ação divina é imanente à natureza, a “Revelação”, então, passa a ser o ato de conhecimento mediante o qual o homem religioso se dá conta do caráter divino do mundo. A “Revelação” passa a coincidir com uma gnose salvífica. “Definitivamente, a revelação consiste em ‘dar-se conta’ de que Deus, como origem fundadora e amor comunicativo, ‘já está dentro’, na medida em que habita a criação e nela se manifesta. A revelação permite que seja visto sobretudo no ser humano, procurando levar-nos a descobrir sua presença, vencendo nossa cegueira e quebrando nossas resistências: ‘Noli foras ire: in interiore homine habitat veritas’”19. A Revelação se reduz, aqui, a um processo imanente, “maiêutico”, socrático. Ela não traz algo realmente novo – a idéia da sobrevivência após a morte é universal –, mas esclarece e reconfigura uma certeza implícita, é a oportunidade de passar de uma fé confusa para uma fé clara e bem definida. “Como maiêutica, a palavra reveladora é necessária para despertar e levar os olhos a se abrirem; não introduz algo estranho, mas ajuda a descobrir na própria realidade a presença salvadora que a habita e a dinamiza”20. O cristianismo se transforma numa “maiêutica histórica”21. Cristo é um novo Sócrates que ajuda os discípulos a encontrarem, em sua experiência interior, a certeza de uma experiência de ressurreição que não precisa de nenhuma confirmação exterior. Dessa forma, como observa Ratzinger num ensaio de 1970, porém sempre atual, “no cristianismo já não vem a nós algo de fora que podemos acolher como novo e não dedutível de nós mesmos; pelo contrário, torna-se objetivo aquilo que é ainda sempre horizonte de nosso pensamento e de nossa reflexão. Dessa forma, a história, enquanto extra, tornou-se insignificante demais e fundamentalmente perdida em favor da ontologia. Desapareceu a ektasis da fé, substituída pela en-stasis da voragem filosófica”22.
“Como não lembrar as tentativas de uma gnose que sempre renasce
sob múltiplas formas [...], tendendo uma de suas temíveis vertentes
a esvaziar imperceptivelmente todas as riquezas e o alcance daquilo que é antes de tudo um fato: a ressurreição do Salvador” Papa Paulo VI
A estrutura contra o Evento
Quando a Revelação é assimilada ao plano da criação, a graça à natureza, a exterioridade – no sentido de Emmanuel Lévinas – à interioridade, somos conduzidos a afirmar que a Revelação está “presente em todas as religiões e até mesmo em todo e qualquer conhecimento filosófico”23. Dessa forma, o senhor mostra que compartilha a perspectiva do cristianismo transcendental, “anônimo”, já criticada por Henri de Lubac e Hans Urs von Balthasar24. Trata-se de um modelo que, de um lado, é herdeiro do idealismo pós-kantiano e, de outro, impôs-se no clima da década de 1970, marcado, culturalmente, pela hegemonia do estruturalismo. Essa corrente, como o senhor sabe, não admite acontecimentos ou saltos qualitativos no processo histórico. O evento é compreendido, antecipado, diluído dentro de uma estrutura, de uma rede de relações já dada, de um horizonte. Assim, no modelo estrutural-idealista, Jesus “torna-se” Deus ou “aparece” como Deus apenas dentro de uma estrutura apocalíptica própria do judaísmo. A estrutura determina a continuidade de um processo; o que ela não vê é descontinuidade. Ela não vê o “novo paradigma” que o senhor, recorrendo a T. S. Kuhn, quer aplicar à teologia contemporânea. Assim, é verdade que em Cristo as expectativas messiânicas de Israel, apocalípticas, sapienciais, se realizam, porém a realização não se dá na forma de uma síntese, mas de uma figura nova que, dando forma a aspectos heterogêneos (o Rei glorioso de Israel e o Justo humilhado e sofredor), não pode ser deduzida daquilo que a precede. O Evento excede a estrutura. Não aceitando essa novidade, o estruturalismo teológico é um trator que nivela, anula, aplaina. A “estrutura teológica”25, a que o senhor se refere, é um modelo segundo o qual, no antigo Israel, os profetas, assassinados pelos homens, são reivindicados por Deus. É o que acontece, no judaísmo tardio, com o episódio dos mártires Macabeus. Deus não pode deixar de ressuscitar os justos de Israel. Para o senhor, esse modelo se converte no critério que explica a consciência da Ressurreição: “A fé na ressurreição deve realizar-se dentro de uma idêntica estrutura”26.
Essa fé se constrói em dois momentos. De um lado, Jesus é visto como o ponto mais alto da “esperança que a escatologia da época, de caráter apocalíptico, deslocava para o fim dos tempos”27. É aqui que se forma a fé no Ressuscitado, uma vez que, “sem esse horizonte, dificilmente poderia ser compreendida a ressurreição de Jesus: nele estão suas raízes”28. De outro lado, Jesus é compreendido como “ressuscitado” graças a seu particular destino de morte. Como eu lhe assinalava em meu artigo anterior, seu procedimento lembra, aqui, a dialética contradição-reconciliação própria de Hegel: o positivo só se pode realizar passando pelo abismo do negativo; a idéia de ressurreição, passando pela experiência da morte. Essa leitura dialética leva-o a rejeitar a letra do texto evangélico, que insiste no escândalo diante da cruz, na fuga dos discípulos, em seu medo. “Sem dúvida, essa visão conta com dois fortes pontos de apoio: de um lado, o prestígio que lhe fornece o fato de estar muito presente no esquema redacional das próprias narrativas evangélicas; de outro, o fato de se prestar a ser usada como fácil recurso apologético: algo deve ter acontecido entre a falta de fé, que levou à fuga covarde, e a fé viva que transformou os discípulos em arautos corajosos e audazes. Esse algo seriam os acontecimentos excepcionais e milagrosos que os levaram a confessar a ressurreição”29.
Essa explicação razoável, que oferece motivos à passagem do escândalo da morte na cruz para a fé no Ressuscitado, é, porém, rejeitada pelo senhor por uma razão que, se me permite, é completamente discutível. Segundo sua argumentação, não é admissível que os discípulos, que eram amigos de Jesus, o tenham abandonado na hora da morte. “Teriam de ser autênticos monstros, no plano psicológico, e uma vergonhosa exceção, no plano histórico. Pois, todas as vezes que um grande líder morre por fidelidade a sua causa, o que isso suscita é precisamente um fortalecimento da adesão e um aumento de prestígio”30. Nesse ponto, o senhor argumenta de maneira realmente singular. Sua explicação poderia ser plausível perante um líder político condenado à morte: “Os ‘criminosos’ de Roma eram os heróis do povo subjugado por eles”31. Mas, diante de alguém que declarara a pretensão de ser o Messias e o Filho de Deus, a morte é derrota e fracasso. O senhor não pode contornar esse nó, como faz o idealismo, não pode eliminar o escândalo da Sexta-Feira Santa histórica e reduzi-lo à “Sexta-Feira Santa especulativa” (Hegel). A morte na cruz não é o “catalisador” da Ressurreição, é a hora das trevas, na qual os amigos fogem. A iconografia cristã levou mais de um milênio para representar o crucificado nos espasmos da morte. Como o senhor pode pensar que essa visão do Calvário, devastadora para quem havia conhecido a Jesus, pudesse induzir alguém a “imaginar” que Ele venceu a morte? Sua confiança de que do negativo procede o positivo é, na realidade, a herança última da dialética hegeliana. Se a dialética não é a lei da história, sua argumentação é apenas opinião.
“Ainda hoje vemos essa tendência manifestar suas últimas conseqüências dramáticas, chegando fiéis que se dizem cristãos a negar o valor histórico dos testemunhos inspirados ou, mais recentemente, interpretando de forma meramente mítica, espiritual ou moral a ressurreição física de Jesus” Papa Paulo VI
O Ressuscitado “invisível”
A fé dos discípulos não nasce, portanto, de “algo” novo – um acontecimento – que se deu após a morte de Cristo na cruz. Não nasce da experiência desconcertante, empírica, de um corpo gravemente ferido que volta a reviver em formas novas, análogas à condição física anterior. Não. A certeza de que Cristo ressuscitou depende apenas da estrutura, do transcendental, do horizonte prévio de compreensão dos discípulos, de um modelo teórico. Esse modelo assume a forma de um silogismo: 1) Deus, justo, não pode deixar de ressuscitar todos aqueles que morrem pela justiça; 2) Jesus, morto na cruz, é justo; 3) Jesus não pode não ser ressuscitado por Deus. A idéia de Ressurreição é uma conclusão lógica, o resultado de um raciocínio.
Como escreve Giuseppe Barbaglio, na edição de Concilium que o senhor organizou e dedicou a “A ressurreição dos mortos”, deu-se com os discípulos “que, de uma catástrofe psicológica, nasceu uma ‘ressurreição’ pessoal: ressuscitaram para uma experiência nova de confiança em Jesus. Como isso pôde acontecer? Eles se questionaram, voltaram, mediante a lembrança, às palavras e à vida do Mestre, meditaram – supõe-se – as Escrituras e concluíram que sua ressurreição espiritual não foi uma empreitada autônoma: não um processo psicológico de elaboração do luto, da perda, mas um dom de graça do próprio Jesus; e a interpretaram como ‘aparição’”32. Trata-se de uma dedução, de uma “‘aparição’ de Cristo não aos olhos deles, mas à sua vida”33.
As aparições pascais são interpretações, resultado de uma operação mental cuja fonte é atribuída a Deus. O mentalismo – o que eu anteriormente chamava idealismo – explica o não a qualquer descrição realista, sensível, carnal, do Ressuscitado. “A presença do Ressuscitado, em si mesma, não é acessível ao sentidos corpóreos; portanto, as ‘aparições’, sendo ‘físicas’, não poderiam ser aparições do Ressuscitado. Aqueles que, em maior ou menor medida, entendem esses relatos ao pé da letra devem levar em conta que estão diante de uma interpretação, ou seja, de um processo mediante o qual algo que aconteceu no mundo induz, no protagonista, a convicção de uma presença não-mundana, de caráter transcendente”34. O que se vê é o Jesus morto, não o Jesus ressuscitado. O caráter transcendente da Ressurreição é incompatível com uma experiência empírica: “Tocar o Ressuscitado com o dedo, vê-lo subir até as nuvens do céu ou imaginá-lo comendo são representações de inegável caráter mitológico”35. A “visão do Ressuscitado [...] simplesmente não tem sentido”36; mais ainda, “é impossível”37. A Ressurreição não é um milagre, “no sentido de um acontecimento que se possa verificar empiricamente”38, não é um “acontecimento histórico”39. Postada no espaço do agir transcendente de Deus, ela não tem visibilidade no mundo. Passa a ser uma coisa certa apenas na medida em que corresponde à estrutura, ao modelo messiânico-apocalíptico que, em Cristo, encontra sua representação exemplar. “Concretamente, mediante o destino de Jesus, a compreensão da ação ressuscitadora do ‘Deus dos vivos’, já anteriormente descoberta em seu significado fundamental, alcança seu ponto mais alto”40. A experiência dos discípulos, aqui, não está na “ruptura da história mediante processos milagrosos”, mas “na correta interpretação do que a situação concreta, enquanto determinada pela ação salvadora de Deus [...], manifesta à consciência que crê”41.
O cristianismo, enquanto Evento – fato novo que irrompe na história, presença “carnal” do divino no mundo –, transforma-se, aqui, em hermenêutica, interpretação, captação. Não poderia ser de outra forma, dado que no plano empírico nada acontece, nada que seja fenomenicamente relevável. “A ressurreição se dá na própria cruz”42; não existe um hiato entre a morte e a ressurreição de Jesus; a “teologia dos três dias”43 é insustentável. Como também é insustentável a teologia do “estágio intermediário”44 que separa o destino das almas da ressurreição corpórea no último dia. Isso é possível, pois – e aqui, se o senhor me permite, reside todo o equívoco de sua leitura – a ressurreição não indica a ressurreição da carne. “Repensar a ressurreição”, para o senhor, significa purgar a crença na sobrevivência pessoal após a morte de qualquer conotação fisicista. Isso explica sua tranqüila aceitação do “sepulcro não vazio”45 de Jesus, e sua afirmação de que a “a identidade de Jesus se preserva apesar de seu cadáver permanecer no sepulcro”46. Cristo ressuscita como espírito, não em sua humanidade corpórea. Não é o corpo, nem tão-somente a alma, “mas a ‘pessoa’ [que se dirige] para sua nova (e para nós incompreensível) configuração, enquanto contraposta ao ‘cadáver’”47.
No dualismo entre alma-pessoa e corporeidade, sua reflexão se encontra com a clássica oposição entre Hélade e Israel que Oscar Cullmann levou até as últimas conseqüências. Para o senhor, a crença na ressurreição corpórea, tal como se exprime nas narrativas pascais, é uma conseqüência da mentalidade hebraica dos discípulos. “Tendo em conta seu contexto cultural e sua antropologia, não podiam pensar nem expressar de outra forma a experiência que estavam vivendo”48. Ou seja, os discípulos só podiam pensar na Ressurreição a partir do “caráter preponderantemente unitário da antropologia bíblica”49. “Interpretando a ressurreição de Jesus em conformidade com os esquemas de um acontecimento empírico (túmulo vazio, aparições empíricas), eles fizeram tudo o que então era culturalmente possível”50. Tal como é para Bultmann, um judeu do século I só podia ver o mundo dentro do invólucro do mito. Não “via” coisas reais; “interpretava”. Via dentro de uma “visão de mundo” (Weltanschauung) que deformava seu olhar. Esse pressuposto do historicismo pós-iluminista, segundo o qual só os homens dos séculos XX e XXI são capazes de distinguir entre imaginação e realidade, leva o senhor a negar a possibilidade de que os discípulos sejam testemunhas oculares51, a negar valor jurídico ao testemunho deles52. “Hoje sabemos que as narrativas [do Cristo ressuscitado] não podem ser entendidas ao pé da letra, uma vez que são construções que nascem de uma prodigiosa imaginação, baseadas nas lembranças daquele Jesus que os discípulos tinham visto e ouvido”53.
As descrições das aparições do Ressuscitado são “construções que nascem de uma prodigiosa imaginação”! Pessoalmente, se eu pensasse assim não seria cristão, mas o mais radical dos idealistas! No horizonte idealista, as aparições pascais são construções teológicas, não descrições de fatos que têm relevância teológica. São semelhantes aos milagres, inclusive o da ressurreição de Lázaro, que vale apenas como “ilustração simbólica”54 da ressurreição de todos os homens. “O milagre de Lázaro nunca aconteceu; o milagre de Lázaro acontece sempre”55. Essa é realmente a teologia do não-acontecimento.
“‘Ele já não está ligado aos limites do espaço e do tempo. Move-se com uma liberdade nova, desconhecida na terra, mas ao mesmo tempo se afirma com força que Ele é Jesus de Nazaré, em carne e osso, aquele que viveu anteriormente com os seus, e não um fantasma.’ [...] Não se trata apenas, portanto, da sobrevivência gloriosa de seu eu” Papa Paulo VI
O espírito (idealista) contra a letra
(realista)
Em meu artigo anterior, eu criticava sua posição enquanto idealista. Na carta com a qual o senhor me responde, mostra-se surpreso com essa conotação, e afirma ser decididamente um “realista”. A leitura de Ripensare la risurrezione confirma para mim, porém, que sua perspectiva parte por completo do ponto de vista idealista-transcendental. É esse ponto de vista que o leva a negar a possibilidade de uma experiência empírica de Cristo ressuscitado. Leva-o a negar a Jesus ressuscitado qualquer conotação física, evidentemente de uma fisicidade transformada. Daí a maneira ambígua com a qual o senhor emprega o termo “ressurreição”, que, de seu ponto de vista, é uma “metáfora perigosa”56. De fato, sua “desconstrução” do relato evangélico, que pretende conservar seu “espírito” superando sua “letra”, deixa no leitor – são palavras suas – “uma certa sensação de artifício ou até de in-exegese, como se fosse introduzido nos textos algo que eles não contêm de modo algum”57. Eu lhe confirmo, de meu ponto de vista, que a impressão é correta. A violência hermenêutica, própria da posição idealista, está em inverter a ordem das causas e dos efeitos. No caso da Ressurreição, isso implica que o que vem depois (a fé no Ressuscitado) se torne a causa do que vem antes (a visão do Ressuscitado). Assim, o senhor acolhe as argumentações de Wolfhart Pannenberg, derivadas de Paul Althaus, segundo as quais o kerygma da Ressurreição “não se poderia ter sustentado em Jerusalém nem um dia sequer, nem uma hora, se o vazio do túmulo não fosse constatado por todos os interessados como um fato real”58. Para a antropologia hebraica não era possível crer em Jesus ressuscitado se seu cadáver continuasse a jazer no sepulcro. O senhor reconhece, nesse caso, estar diante de argumentações “sérias”, mas delas conclui, ao contrário, que “a experiência da ressurreição de Jesus fez que os discípulos cressem na tradição do túmulo vazio”59. Acrescenta que “a hipótese do sepulcro não vazio permite uma leitura muito mais coerente e de maior força semântica [sic!]”60. Por que, eu lhe pergunto? Por que a hipótese do sepulcro não vazio deveria ser mais plausível? Do ponto de vista racionalista, eu o compreendo: vale aqui a explicação de que os discípulos, às escondidas, furtaram o cadáver. Mas, e do ponto de vista do relato evangélico? O senhor mesmo reconhece que no caso do sepulcro vazio “não é possível dirimir exegeticamente a questão, uma vez que, numa simples análise histórica, encontramos razões sérias tanto para a afirmação quanto para a negação”61. Admitindo que as coisas sejam assim, por que optar pela hipótese do sepulcro não vazio? Só pode haver uma resposta: porque o senhor aceita o kantismo de Bultmann como um axioma indubitável. Por uma opção filosófica, não por uma evidência exegética. O senhor opta por Bultmann, convencido de que só assim o “espírito” do Evangelho pode-se comunicar ao homem moderno. Rejeita a “letra” por uma espécie de apologética submissa ao idealismo moderno. A mensagem cristã poderia voltar, dessa forma, a ser acessível a ouvidos que não querem ouvir falar de milagres e de um Ressuscitado em carne e osso. O senhor não leva em conta que o escândalo diante de alguém ressuscitado dentre os mortos já está presente na reação pagã ao discurso de Paulo no Areópago de Atenas (At 17,31-32). Seu racionalismo quer eliminar essa possibilidade. A maneira como o senhor resolve o dilema do túmulo vazio é bem típica: afirmando que, “superada a adesão ao imaginário que representa o Ressuscitado como alguém que volta a ser uma figura (mais ou menos) terrena, e encarado com toda a seriedade o caráter transcendente da ressurreição, o fato de o cadáver continuar ou não no sepulcro perde toda a sua relevância”62. Se o Ressuscitado não tem nenhuma relação com seu corpo, o problema do cadáver, presente ou não no sepulcro, já não tem importância. Essa, porém, é uma violência hermenêutica que não demitiza o “mito”, mas, pelo contrário, transforma em mito tudo aquilo que, no texto evangélico, tem valor histórico. Isso pode ser feito porque a exegese é guiada, na origem, por uma compreensão filosófica prévia que já decidiu de antemão que o divino não pode se manifestar e agir em forma humana. Assim, as conclusões exegéticas de Bultmann “não são o resultado de constatações históricas, mas provêm de um conjunto estruturado de pressupostos sistemáticos”63. Isso o senhor mesmo reconhece, quando afirma que “não é a exegese dos detalhes que decide a interpretação final, mas a coerência do conjunto”64. Essa coerência deve ser capaz de “oferecer uma resposta às legítimas exigências da cultura atual”65, afirmação em que, por “cultura atual”, se entende o racionalismo pós-idealista. O horizonte filosófico decide, dessa forma, a hermenêutica do texto bíblico. Assume uma prioridade ideal. Compartilha-se assim plenamente o horizonte de Bultmann, o qual “está convencido de que os fatos, tal como são descritos na Bíblia, não podem ter acontecido, e encontra métodos que deveriam mostrar como na realidade teriam acontecido. Nesse nível, a exegese moderna comporta uma ‘reductio historiae in philosophiam’: a história é reduzida a filosofia e por meio da filosofia”66. Uma exegese autêntica, porém, não pode excluir, a priori, que Deus possa entrar e agir “sensivelmente” na história humana. Essa hipótese é a Revelação cristã.
“E a Igreja exorta, sempre guiada por Santo Agostinho, a buscar soluções mediante o estudo unido à oração: ‘Quanto aos estudiosos dos textos sacros, não apenas devemos estimulá-los a que conheçam os gêneros literários usados nas Sagradas Escrituras, [...] mas também, e isto é o principal e o mais necessário, a que rezem para compreender’” Papa Paulo VI
Uma cristologia docetista
O racionalismo filosófico se expressa na convicção de que a expressão “ressurreição da carne” é mero “simbolismo”67, uma maneira de dizer que Cristo, mesmo após a morte, continua a ser a mesma pessoa. Mas, dessa forma, o cerne da posição cristã é que é eliminado. Se Cristo não ressuscitou “na carne”, o Verbo não se encarnou de verdade. Negar a “fisicidade” da Ressurreição é como negar a realidade da Encarnação. A afirmação do Prólogo de João – Et Verbum caro factum est (Jo 1,14) – tem como conseqüência a possibilidade da experiência empírica do Ressuscitado. A visão de Jesus “vivo” é a condição de possibilidade da fé. Pensar de maneira diferente é aderir à “cristologia docetista” de Bultmann, segundo a qual, no dualismo entre evento e palavra, “a realidade, ou seja, a existência concreta e carnal de Cristo e a existência do homem em geral são excluídas do âmbito do significado”68. Diferentemente de Bultmann, para o qual o Ressuscitado está apenas na pregação, no kerygma, o senhor crê na realidade de Cristo depois de sua morte, mas como uma “realidade” que não inclui a carne. Cristo é tão “imortal” quanto Héracles, quanto qualquer homem que morre. Por que, então, ter fé n’Ele? Por que, em Jesus, a compreensão da ação suscitadora de Deus “alcança seu ponto mais alto”69, um “ápice insuperável”70? Se Cristo é apenas o “primogênito dos defuntos”71, como todo homem que, morrendo, ressuscita, se seu “primado cronológico está arraigado ao primado ontológico”72, onde está a diferença entre Cristo e o ser humano em geral? Que tem de especial a vida do Cristo “maiêutico”, socrático, da qual foram retirados os milagres e sinais do divino, enquanto resíduos “mitológicos”? No dualismo entre o espírito e a letra, a figura de Jesus se divide entre o Jesus histórico que, no modelo ariano, é um homem virtuoso assumido por Deus, e o Jesus divino, ressuscitado, o qual assume uma forma “docetista”. Um Cristo “gnóstico”, não judeu, para o qual a carne, de um lado, não é útil à salvação e, de outro, não é remida da corrupção da morte. O novo paradigma, que o senhor defendia, luta aqui contra a visão judaica, rumo a uma perspectiva gnóstica. O senhor mesmo o reconhece, quando afirma que “a antropologia bíblica [...] dificilmente permitia conceber e representar a ressurreição sem levar em conta o corpo físico. Daqui vem a insistência sobre o elemento visual e sensível [...], talvez influenciada pela polêmica antignóstica”73. É uma passagem importante. Em sua cristologia, a natureza humana não é realmente assumida. Seu Ressuscitado, sem corpo, leva a cristologia inevitavelmente para um horizonte docetista.
Três considerações finais
Concluo minha resposta com três observações. A primeira: acolhendo a demitização bultmanniana, o senhor acredita reconciliar cristianismo e pensamento moderno. O preço dessa reconciliação, porém, é justamente eliminar o interesse do iluminismo pelo cristianismo. Diferentemente do idealismo hegeliano, para o qual a religião já está “superada” na filosofia, o iluminismo luta com o cristianismo no plano da verdade histórica. Isso se demonstra, atualmente, pelo interesse, até polêmico, da cultura laica pelo Jesus de Nazaré de Bento XVI74. Retirando o valor histórico do relato evangélico, “mitizando” a história, o senhor não apenas elimina o terreno de contenda, mas também o de um possível interesse. Se o Evangelho, quando fala de milagres, é mítico, não fugirá desse juízo também o seu Ressuscitado, cujo aspecto e cuja forma ninguém pôde ver. Seu “espectro” não escapa à crítica de Kant contida nos Träume eines Geistersehers. Na realidade, sua posição antiempirista é uma tomada de posição contra o iluminismo, uma recusa a dialogar e medir-se com esse tipo de cultura. Em segundo lugar, ela é uma recusa a confrontar-se com aquela parte do pensamento do século XX, de ascendência hebraica – desde o dialogisch Denken (Buber, Rosenzweig) até a Escola de Frankfurt (Horkheimer, Adorno) e ao messianismo político (Benjamin) –, para a qual o tema da redenção da carne e da história tem um valor crucial. Seu idealismo se fecha, além disso, a qualquer possível valorização das tendências realistas que aparecem na estética contemporânea, tendências nas quais se manifesta um interesse pela ressurreição cristã entendida como “prova estética da possibilidade de esperança”75.
Sua posição anti-estética me leva à segunda observação. Sua visão do Cristo ressuscitado, que “não tem – nem pode ter – nenhuma das qualidades físicas que constituíam seu corpo mortal”76, apresenta mais de uma analogia com a posição iconoclasta evidenciada na carta de Eusébio de Cesaréia à irmã do imperador Constantino, Constância, estudada numa importante obra de Christoph Schönborn77. Para o bispo Eusébio, não era possível representar Cristo em ícone, pois, depois de sua morte, seu corpo glorioso já não tinha qualquer analogia com o corpo mortal. Assim, para o senhor, “vê-lo [o Ressuscitado] significaria ver algo empírico e finito: não Deus, mas um ídolo. E, assim, negar a possibilidade das aparições empíricas é a única maneira de garantir a autêntica realidade do Ressuscitado”78. Ver Deus em forma humana é idolatria. No senhor, a proibição veterotestamentária volta na proibição de “representar” a Ressurreição. O Cristo ressuscitado de Piero della Francesca, como também a Incredulidade de Tomé de Caravaggio, pertencem à arte do passado, à visão mitológica do mundo própria de uma era em que o cristianismo era caracterizado por uma fé ingênua e popular.
“Perante este mistério, somos todos tomados pela admiração e ficamos cheios de surpresa, exatamente como quando estamos diante dos mistérios da Encarnação e do nascimento virginal. Deixemo-nos, portanto, introduzir, com os apóstolos, na fé em Cristo ressuscitado, único que nos pode dar a salvação” Papa Paulo VI
A terceira e última observação
ser refere a uma de suas convicções de fundo. Mais de uma
vez, o senhor afirma que “nenhum teólogo responsável
entende hoje ao pé da letra as narrativas pascais”79. Afirma, ainda,
que “nos tratados sérios desapareceu a insistência nos
‘milagres’ – compreendidos hoje, em sua maioria, como
‘sinais’ que não interrompem o funcionamento das leis
naturais –, ou em que Jesus proclamasse sua divindade de maneira
direta. Ao contrário, insiste-se na ‘cristologia
indireta’”80. Ora, deixando de lado o caráter discutível
do termo “sérias”, eu gostaria de me deter nesse
“nenhum teólogo responsável”. Como o senhor pode
afirmar isso? O senhor mesmo reconhece que alguns dos maiores
teólogos do século XX estão firmemente convencidos da
plena credibilidade das narrativas pascais. É o caso de Karl Barth,
que, em sua Dogmática, “acentua cada vez mais o realismo temporal das
aparições e o túmulo vazio, [...] insistindo no
caráter único, enquanto físico e sensível, da
experiência apostólica”