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ARGENTINA
Extraído do número 08 - 2008

Reportagem. Padres e pobres em Buenos Aires

Os amigos de padre Bergoglio


Na década de 1960, um grupo de sacerdotes foi morar nas favelas formadas por imigrantes na capital argentina, para apoiá-los nas lutas políticas e sociais. Mas acabaram mudados pela devoção simples das pessoas que queriam instruir. História de uma aventura cristã que continua até hoje. Com a ajuda da Virgem e dos santos


de Gianni Valente


Uma procissão em homenagem a São Pantaleão parte da paróquia de Nuestra Señora de Caacupé, em Villa 21

Uma procissão em homenagem a São Pantaleão parte da paróquia de Nuestra Señora de Caacupé, em Villa 21

Encontro marcado para domingo, ao meio-dia, em frente a Nuestra Señora de Caacupé. “Procissão e missa de sanación y liberación”, prometia o panfleto distribuído entre os casebres mais miseráveis de Villa 21. No início, são mais de duzentas pessoas, mas muitas outras vão-se juntando à medida que o pequeno cortejo, puxado pelo bispo Oscar, adentra a malha de vielas lamacentas abarrotadas de canos de água remendados, fios de energia elétrica dependurados e carcaças de automóveis carbonizados. Na festa de São Pantaleão, médico e mártir, que cai bem no meio do inverno argentino, é preciso pedir proteção contra a gripe, a pneumonia e as doenças da estação. Mas não só. “Que cada um olhe para o seu coração e veja o que está vivendo”, é o convite feito por padre Pepe durante a missa, na pracinha incrivelmente lotada. “Reconheçamos que somos todos pecadores, e que precisamos do Senhor para nos curar. Por aqueles que estão doentes de corpo e alma, por aqueles que vivem preocupados ou estão passando por um problema sério, [...] peçamos a nossa mãe, a Virgem de Caacupé, que nos ajude a ter a saúde de que precisamos em nosso bairro.” No fim da missa, os mais velhos fazem fila para receber a unção dos enfermos. Para que “o Espírito Santo do perdão nos cure e liberte de toda enfermidade. [...] Como escreve São Tiago, a oração feita com fé salvará o mundo”.
O poeta Charles Péguy, talvez pensando na parábola do fariseu e do publicano, escreve que o rico, quando reza, fala, ao passo que o pobre pede coisas que servem para a vida: a paz na família e no mundo, a cura de uma pessoa querida, a saúde da alma e do corpo. Nas villas miserias – as favelas argentinas, a meio caminho entre um amontoado de barracos e um bairro operário –, não é difícil ficar doente. Villa 21, ainda por cima, é vizinha do Riachuelo, o “rio mais nojento e poluído do mundo” – dizem os próprios moradores do bairro -, que corre bem ao lado, empesteando o ar com seus miasmas. Uma parte de Villa 21 cresceu em cima das montanhas de lixo descarregadas em aterros ilegais; só Deus sabe o que existe ali embaixo. Todos os dias, e mais de uma vez por dia, quando os caminhões vão cortando o emaranhado de ruas de terra sem pedir licença, as paredes das velhas casas tremem como papelão e, de vez em quando, alguém é obrigado a sair correndo – quase sempre crianças, por vezes atropeladas em suas brincadeiras de rua. Mas existem outras doenças, as mesmas que assolam as muitas periferias urbanas do Hemisfério Sul: os chicos destruídos pelo paco, a droga feita especialmente para os pobres com os restos da fabricação da cocaína; os niños de la calle; os bêbados que batem na esposa; as mil histórias de vidas que saíram dos trilhos, com famílias despedaçadas e o fracasso experimentado por tantos que já desistiram. Entre estes estão as pessoas que a crise econômica de 2001 lançou nas ruas, depois que os bancos, com suas taxas de juros, roubaram sua casa.
Muita gente precisando de cuidados. Mas, ao lado de tudo isso, existe também uma corrente de vida boa, uma linha portadora de saúde que, com o tempo, vai-se expandindo, no dia-a-dia complicado e cheio de cansaço dos villeros.
“Foi padre Pepe”, dizem todos. Uma das coisas que dizem é que, desde que padre José “Pepe” di Paola chegou a Caacupé com seus amigos – padre Facundo, padre Charly, o diácono Juan e todos os outros –, as pessoas já não se matam pelas ruas. Os paraguaios já não saem na faca com os bolivianos. Mas, se você toca no assunto, padre Pepe logo procura driblá-lo com sua risada alta e contagiosa: “Nós não inventamos nada; fomos apenas seguindo os guaranis que moram hoje em dia em Villa 21, e os santos que eles trouxeram de suas cidades de origem, quando chegaram aqui”. Padre Pepe aprendeu também com eles que uma pessoa consegue bem pouco, se não cai no agrado da Virgem e dos santos. Antes dele, padre Daniel também aprendeu o mesmo.

Padre Charly e padre Pepe durante a misa de sanación dedicada a São Pantaleão, médico e mártir. O bispo Oscar Ojea dá a unção dos enfermos

Padre Charly e padre Pepe durante a misa de sanación dedicada a São Pantaleão, médico e mártir. O bispo Oscar Ojea dá a unção dos enfermos

Amigos no Paraíso
As canções populares do bairro falam de padre Daniel como “el angel de la bicicleta”, a mesma em que ele, no início da década de 1990, morreria, atropelado por um ônibus. Mas os murais espalhados por Villa 21 mostram-no de braços abertos, barrando o caminho para as escavadeiras que vinham derrubar os barracos dos villeros. Era o ano de 1978, e o regime havia decidido limpar a cidade antes da Copa do Mundo. O nome disso era plan de erradicación. Daniel de la Sierra, padre claretiano, que construiu a igreja de Nuestra Señora de Caacupé em Villa 21, punha-se no meio do caminho, usando o corpo indefeso como resistência passiva à violência das topadoras. Com ele, faziam o mesmo os outros sacerdotes do equipo de los curas de la villa. Eram padres que, já durante o Concílio, haviam decidido instalar-se nas favelas de Buenos Aires, lugares que se enchiam de imigrantes provenientes sobretudo do Paraguai, da Bolívia e das províncias pobres do norte da Argentina (Tucumán, Santiago del Estero, Jujuy, Salta, Missiones, Corrientes). Os padres iam para lá confessar o amor a Cristo em meio a los cabecitas negras, compartilhando em tudo a vida daqueles que o resto da cidade considerava gente mala, vagabundos perigosos, ambientes desonestos dos quais era melhor tomar distância.
Os curas villeros eram padres do Terceiro Mundo, isso ninguém discute. Iam à villa para testemunhar que Cristo estava com os pobres. Queriam envolver-se com generosidade nas lutas populares daqueles anos. Mas, assim chegavam e as pessoas percebiam que eram padres, começavam os pedidos: “Ei, padre, tenho dois chicos para batizar”; “quando é que começa o catecismo?”; “domingo que vem tem missa?” “A surpresa”, escreveu Jorge Vernazza, um dos pioneiros, que faleceu em 1997, no livro que conta a história desses homens, “só se comparava à nossa ignorância a respeito dos verdadeiros anseios das pessoas. [...] Às vezes, conversando entre nós, falávamos sobre estarmos à procura de uma ‘fé autêntica’, mas a esperávamos mais dos ‘grupos de reflexão evangélica’ que dos tradicionais métodos de difusão da fé. [...] A realidade do povo das villas, com que nos envolvíamos com generosidade e sem preconceitos, acabou por abrir nossos olhos para a riqueza da devoção própria do povo”. Assim, os curas villeros começaram a construir capelas, com nomes que não deixam nenhuma dúvida (Santa María Madre del Pueblo, em Bajo Flores; Cristo Obrero, em Villa de Retiro; Cristo Libertador, em Villa 30), nas quais pudessem celebrar batismos, casamentos e funerais, desfiar rosários, organizar procissões, ao mesmo tempo em que trabalhavam diariamente fêmero, retorno ao poder, viajavam também o padre Vernazza e Carlos Mugica, o sacerdote-mártir de Villa de Retiro, morto pelas balas dos paramilitares em 11 de maio de 1974, quando voltava para casa depois de celebrar a missa (vide box). Mas o mergulho na vida real das villas os expunha também a incompreensões. Havia quem os considerasse subversivos de batina, padres contaminados pela propaganda marxista; mas havia, também, os intelectuais da esquerda xenófila, inclusive os de matriz eclesial, que não continham seu desprezo iluminado pelos villeros, a quem consideravam pessoas tão ocupadas com suas necessidades primárias que não encontravam tempo para a insurreição, com seus padres ainda atrasados por rosários e Nossas Senhoras, missas e confissões. “Eles pensam que fazem a revolução peregrinando a Nossa Senhora de Luján”, ironizavam quando, no final da década de 1970, os curas villeros – por sugestão de uma mãe de família da capela de Bajo Flores – organizaram a primeira peregrinação anual das villas ao santuário mariano nacional, a cinqüenta quilômetros da capital. Pepe declara: “Naqueles anos, esse foi o ponto de maior incompreensão entre os curas de Buenos Aires e o progressismo mal compreendido de alguns eclesiásticos que vinham da Europa, às vezes, com uma certa mentalidade ilustrada, iluminada. De um lado, estavam aqueles que tinham visto e acompanhado a fé do povo, sua maneira de vivê-la e de expressá-la. De outro, estava a soberba de quem vinha de fora para dar lições”.

Os cozinheiros do bairro preparam 
a tradicional sopa de carne e milho que será distribuída durante a festa paroquial de Nossa Senhora do Carmo, 
em Ciudad Oculta, a <I>villa miseria</I> do bairro de Mataderos. Com eles, está também o cardeal Bergoglio

Os cozinheiros do bairro preparam a tradicional sopa de carne e milho que será distribuída durante a festa paroquial de Nossa Senhora do Carmo, em Ciudad Oculta, a villa miseria do bairro de Mataderos. Com eles, está também o cardeal Bergoglio

Os novos amigos
Em meados da década de 1980, começavam a mudar também na América Latina os clichês de que é feita a carreira eclesiástica. Passavam a ser apreciadas as pessoas que polemizavam com a Teologia da Libertação. Nas análises dos conferencistas eclesiais repaginados, inclusive os que flertavam com o liberalismo que ia de vento em popa, os curas villeros eram considerados um reflexo local do terceiro-mundismo católico em via de extinção.
Mas as villas, em Buenos Aires e em todas as metrópoles argentinas, continuavam a existir. Passada a época selvagem da ditadura, esses bairros voltavam a inchar, recebendo as massas de novos pobres, inclusive os que foram produzidos nos últimos anos da ilusão liberal do final do século XX. Os curas villeros continuavam e continuam a compartilhar a vida e as dificuldades diárias do povo que escolheram acompanhar. Em seus bairros off-limits, em que os taxistas não entram e nem a polícia se aventura, eles continuam fiéis aos gestos mais simples da fé de sua gente: continuam a rezar rosários, a construir capelas, a celebrar todas as festas da Virgem. Quase sem querer, conservam tesouros de devoção que outros parecem ter perdido, em meio a um projeto de conscientização ou a uma estratégia de hegemonia cultural.
“Um ícone em cada casa, uma capelinha em cada cruzamento”: era o que desejava para sua villa um dos fundadores do movimento dos sacerdotes para o Terceiro Mundo, Rodolfo Ricciardelli, também um dos primeiros membros do equipo de los curas villeros, que faleceu em 14 de julho passado, depois de dois anos de doença. O cardeal Bergoglio o lembrou, ao celebrar seu funeral na igreja de Bajo Flores, diante do povo do bairro – crianças, velhinhas, operários, antigos e novos colegas, um batalhão de jovens padres, de trinta a quarenta anos, que hoje trabalham nas villas. Esses padres continuam a trilhar o caminho iniciado por Mugica, Vernazza, Ricciardelli, padre Daniel de la Sierra. Parecem tudo, menos imitadores nostálgicos de uma época eclesial que já passou. “O tempo torna as coisas mais claras”, explica Guglielmo, pároco da igreja de Cristo Obrero, em Villa Retiro, onde hoje está sepultado Mugica. “Agora vemos melhor que para os primeiros, também, o único critério era o Evangelho. Amar os pobres vivendo no meio deles, como fez Jesus. Para alguns, naquela época difícil, isso significava ter de se envolver nas lutas políticas. Mas isso estava ligado às circunstâncias da época.” Hoje, decantados os resíduos de ideologia, caem os equívocos e mal-entendidos em torno do trabalho dos curas villeros. E pessoas vão-se aproximando providencialmente. “Trabalhamos com o mesmo espírito de nossos antecessores”, explica padre Gustavo, pároco em Villa Fatima; “as situações e os problemas são diferentes, mas o que nos une é a coisa mais importante: a admiração e a solicitude perante a fé do povo e suas devoções”. Depois de tanta incompreensão, até por parte de setores da Igreja, o bispo está ao lado deles. “Padre Bergoglio”, conta Gustavo, “manifesta, com seu estilo, a opção preferencial pelos pobres. Ele criou várias paróquias novas nos bairros operários. Ele mesmo me propôs que eu exercesse meu sacerdócio numa villa, e pediu a mesma coisa a outros padres que tinham acabado de sair do seminário”. Há três anos, havia menos de dez sacerdotes no equipo das villas miserias; hoje, são vinte, quase todos jovens. De vez em quando, o arcebispo deixa a cúria da Plaza de Mayo e pega o metrô, depois um ônibus, e aparece nesta ou naquela villa, para abençoar um novo restaurante popular, celebrar batismos e crismas, inaugurar uma nova capela, participar da festa de algum santo ou da Virgem a que é dedicada a paróquia. Às vezes pára para comer com eles el locro, a sopa de carne e milho cozinhada ao ar livre em caldeirões enormes. E nisso se anima, como um pai que vê seus filhos brincarem, pois “faz bem à alma ver o que o Senhor sabe fazer em meio a seus filhos prediletos”.

Padre Gustavo Carrara abre a pequena capela de Santa Teresita del Niño Jesus, em Villa 3

Padre Gustavo Carrara abre a pequena capela de Santa Teresita del Niño Jesus, em Villa 3

Peçam a São Caetano
Na última festa de São Caetano, durante a homilia, padre Bergoglio fez uma pergunta a todas as pessoas que tinha a sua frente; eram apenas uma parte das centenas de milhares de argentinos que, como todos os anos, tinham vindo abarrotar o bairro periférico em que se situa o santuário de São Caetano, para pedir uma graça ao santo do pão e do trabalho, ou agradecer as graças recebidas. “Eu lhes pergunto: a Igreja é um lugar aberto apenas aos bons?”; e todos, em coro: “Nããoo!” O cardeal: “Existe lugar para os maus, também?”; e as pessoas, mais uma vez todas juntas: “Siiim!!!” “Alguém aqui é expulso porque é mau? Não, pelo contrário; a pessoa é acolhida com mais afeição ainda. E quem foi que nos ensinou isso? Quem nos ensinou isso foi Jesus. Imaginem, então, como o coração de Deus é paciente com cada um de nós.”
Na paróquia de padre Pepe, os padres enxergam do mesmo jeito. A única coisa que precisam fazer é manter as portas abertas, tornar as coisas mais fáceis. “Aqui, todos sabem que durante o ano inteiro as pessoas podem vir à paróquia e fazer a primeira comunhão ou a crisma depois de algumas aulas de catecismo. Para batizar as crianças, basta chegar quinze minutos antes da missa.” Na última vez, durante a festa de São João Batista, mais de cento e cinqüenta adultos foram crismados. “As pessoas trabalham, desde lunes hasta sábado. É preciso levar isso em conta: não devemos impor nenhum peso às pessoas. Nós confiamos no trabalho da graça, mais que na estratégia de estender os cursos preparatórios”.
É pela confiança na graça, e também pelo “conluio” constante com a Virgem e os santos, que uma trama de vida surpreendente se apinha e cresce em torno do trabalho de Pepe e dos outros jovens curas villeros; um redemoinho espumejante de fatos, iniciativas, coisas a fazer. Só em Villa 21, o catecismo é dado a mil crianças e adolescentes do “movimiento Exploradores” (uma espécie de grupo de escoteiros salesianos que se encontra nas casas); lá existem oito comedores, os restaurantes populares que servem todos os dias refeições a oitocentas pessoas; há também um reforço escolar diário para seiscentos e cinqüenta chicos, escolas de futebol, de música e de corte e costura, casas de recuperação de jovens drogados e de niños de rua; “para os chicos mais revoltados”, que não vão ao catecismo, há ainda a murga, uma “banda” de dançarinos e tambores (“mas eles começam sempre com uma ave-maria, e o uniforme é azul e branco, pois essas são as cores do manto da Virgem”); e há também os retiros espirituais para homens, mulheres, famílias... Uma rede de caridade transbordante e despreocupada, na qual sempre há tempo para tentar alguma coisa, e sempre há alguma coisa para tentar, de modo a ajudar alguém a não se perder, de modo a pedir que se reacenda a esperança em alguém que já parecia perdido. Uma rede em que as pessoas se deixam guiar por aquilo que acontece.
Em 2001, por exemplo, quando a economia argentina entrou em colapso, os efeitos sobre a população da villa foram devastadores. Mesmo quando as coisas começaram a melhorar, ninguém mais conseguia encontrar emprego, nem mesmo uma changa nas casas dos ricos, “pois ninguém contrata o povo das villas”. Pepe e seus amigos entenderam que era preciso fazer alguma coisa. Assim, com a ajuda da diocese italiana de Como, nasceu a escola profissionalizante da Avenida Pepiri, onde quinhentos jovens da Villa 21 estão aprendendo os ofícios de eletricista, marmorista, mecânico, serralheiro. E de padeiro, preparando durante a semana inteira o pão que será servido nos comedores da Villa. Agora todas as energias estão concentradas no projeto de recuperação dos drogacitos: todo fim de semana, um grupo de homens da paróquia sai da cidade para construir, entre uma missa e um asado, a fazenda em que os jovens drogados que quiserem poderão se desintoxicar. “Fica na estrada para Luján, perto do santuário”, diz Pepe, piscando um olho; “assim, a Virgem também arregaça as mangas...”
O circuito de vida boa que envolve a villa é todo tecido em torno de oito capelas, com murais coloridos, e de dezenas de oratórios que Pepe e seus amigos espalharam pelas vielas e quintais: uma rede de dezenas de lugares em que as pessoas podem rezar, celebrar a missa, desfiar o rosário. Nesses lugares, qualquer oportunidade é boa para consagrar alguém – crianças, homens, mulheres, idosos – à Virgem paraguaia de Caacupé, ou à boliviana de Copacabana, ou à argentina de Luján, ou a São Caetano, São Biágio, São João ou São Pantaleão. Da última vez, foram trinta casais de villeros, que Pepe convidou para um retiro espiritual de dois dias na Santa Casa da Avenida Independencia: “O bispo Oscar participou também. Rezamos, celebramos a missa, falamos das dores e das alegrias, e depois todos os casais se consagraram à Virgem de Luján. Alguns ficaram comovidos. No final, alguns casais vieram me pedir que celebrasse seu casamento na Igreja”. Pois “na Villa há muitas pessoas que já vivem juntas há anos sem serem casadas, e seus filhos estão crescendo...”

O cardeal Bergoglio cumprimenta os fiéis diante do santuário de São Caetano, no dia da festa do santo “do pão e do trabalho”

O cardeal Bergoglio cumprimenta os fiéis diante do santuário de São Caetano, no dia da festa do santo “do pão e do trabalho”

Por uma vida calma e tranqüila
“Gracias, San Expedito, por tu milagros”, está escrito numa faixa na entrada da villa, no barrio de Zavaleta. O soldado romano, santo das causas urgentes, a quem todos recorrem quando o tempo ficou curto e o túnel parece não ter saída, encontra sempre amigos novos, nas villas e em toda Buenos Aires. O milagre que elas pedem não é a revolução ou o mundo perfeito, mas uma vida tranqüila, a saúde da alma e do corpo, um trabalho pelo qual se levantar de manhã, e que os jovens não se percam no labirinto negro das drogas, em que tudo se torna escuridão. Por isso, como diz o slogan da paróquia, “Caacupé calla, reza y trabaja por su barrio”: Caacupé está em silêncio, reza e trabalha por seu bairro. Ora et labora. Tal como já acontecia mais de trezentos anos atrás, nas reducciones dos guaranis, aqui também o que dá cor aos dias não é a ilusão de um sonho difícil de alcançar, mas as gotas de caridade cotidiana que orvalham a rotina feita de gestos e momentos normais. Uma caridade silenciosa e sem medidas, como a que Chula, mãe de cinco filhos, sem nem perceber, espalha ao seu redor todos os dias, em sua casa transformada em capela, preparando a merenda e o jantar para quarenta crianças da villa, “porque prometi isso a São Caetano, se meu marido conseguisse um emprego”. Ou a caridade de Pablo Ramos, que veio do Paraguai depois de escapar às torturas dos militares (“mas foi uma confusão deles; nós éramos da juventude franciscana, não fazíamos mal a ninguém”), que queria ter estudado para ser arquiteto, mas não reclama, e dá graças a Deus porque, na villa, lhe deram uma oportunidade do mesmo jeito para construir a capela de São Blás; uma oportunidade também para seus dois “chicos flamantes”, seus filhos maravilhosos, “que, quando os vejo assim, me dão força e vida também”.
Enquanto isso, os missionários e missionárias da paróquia estão distribuindo uma nova imagem pelo bairro. Eles a chamam “el Cristo de la villa”. Ela foi desenhada pelos jovens marmoristas e escultores da escola do bairro de Pepiri, “depois que os seguidores da Igreja Universal”, conta Pepe, “saíram por aí nos caluniando, dizendo que pregamos um Cristo morto”. A imagem foi reproduzida também no mural da igreja. Nela, Jesus sorri, com um semblante vitorioso, que infunde confiança, enquanto esmaga com os pés a cabeça de uma serpente. A mão, em atitude de bênção, está elevada para o céu, com o braço estendido, como fazem os artilheiros, nos estádios, quando marcam um gol. “Se ele joga conosco”, diz Pepe, rindo, “vamos vencer o campeonato deste ano também”.


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