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PIO XII
Extraído do número 09 - 2008

A CINQÜENTA ANOS DA MORTE DO PAPA PIO XII

O Papa mais citado pelo Concílio Vaticano II


No salão sinodal do Vaticano, na presença de João Paulo II, a 8 de outubro de 1983, o cardeal Siri afirmou: “Se estudarmos os índices do Vaticano II, constataremos facilmente que, depois das citações extraídas da Sagrada Escritura, as mais numerosas vêm dos escritos de Pio XII”


do cardeal Fiorenzo Angelini


O tema sobre o qual fui convidado a compartilhar algumas reflexões pode ser enfrentado em relação a diferentes aspectos: tantos quantos foram os temas e os problemas que o Concílio examinou e sobre os quais se pronunciou. Todavia, vou me limitar a chamar a atenção para apenas dois desses aspectos: um, que eu chamaria histórico; o outro, que eu denominaria teológico-espiritual.
O aspecto histórico diz respeito à relação muito próxima entre o evento do Concílio Vaticano II e a contribuição dada por Pio XII a sua preparação; já o aspecto teológico-espiritual, a meu ver, esclarece o quanto Pio XII, em seu esforço pela celebração do Concílio, ofereceu mais uma prova de ter sido não apenas um grande pontífice, mas também um homem de Deus, um pontífice santo.
A relação muito próxima entre os dois aspectos é confirmada, ainda, pelo fato de o próprio Paulo VI, estando o Concílio ainda aberto, ter dado início à causa de beatificação e canonização de Pio XII.

Eugenio Pacelli, nascido em Roma a 2 
de março de 1876, eleito Papa em 2 de março de 1939, com o nome de Pio XII, e morto em Castel Gandolfo em 9 de outubro de 1958

Eugenio Pacelli, nascido em Roma a 2 de março de 1876, eleito Papa em 2 de março de 1939, com o nome de Pio XII, e morto em Castel Gandolfo em 9 de outubro de 1958

A contribuição de Pio XII à preparação do Concílio Vaticano II
Eu poderia iniciar e concluir este meu depoimento sobre o tema “Pio XII e o Concílio Vaticano II” limitando-me a transcrever uma afirmação do cardeal Giuseppe Siri, pronunciada no salão sinodal do Vaticano, na presença de João Paulo II, a 8 de outubro de 1983, aniversário de vinte e cinco anos da morte do papa Pacelli. Disse então o arcebispo de Gênova: “Se estudarmos os índices do Vaticano II, constataremos facilmente que, depois das citações extraídas da Sagrada Escritura, as mais numerosas vêm dos escritos deste pontífice”1.
Se com justiça a convocação e a celebração do Concílio Ecumênico Vaticano II são consideradas uma iniciativa de João XXIII, feliz e extraordinária, no sentido da renovação da vida da Igreja de nosso tempo, ao mesmo tempo, na realidade, ignoramos muitas vezes ou deixamos de sublinhar que o Vaticano II foi preparado com atenção e diligência por Pio XII, já a partir do dia seguinte de sua eleição. É por isso que os documentos definitivos do Concílio contêm 201 citações ou referências a 92 atos do magistério de seu pontificado2. Só na constituição dogmática Lumen gentium, contamos 58 citações que nos remetem ao magistério de Pio XII.
O saudoso e caríssimo amigo padre Giovanni Caprile, jesuíta, em sua monumental obra dedicada ao Concílio Vaticano II, escreve que “sob o pontificado de Pio XII apareceu mais uma vez a idéia de convocar um concílio, e vários passos foram dados para prepará-lo”3. Padre Caprile cita documentos que comprovam esses passos, alguns, até aquele momento, totalmente inéditos4.
Para mim, que participei de todas as sessões do Concílio Vaticano II, depois de ter tido a honra e a responsabilidade, sob o pontificado de Pio XII, de desempenhar funções que me levaram a ter vários contatos com esse pontífice, a ligação entre o magistério de Pio XII e os documentos aprovados pelo Concílio Vaticano II sempre pareceu algo fora de discussão, como a confirmação de uma nítida continuidade magisterial.
João Paulo II também o frisou, no quadragésimo aniversário da eleição de Pio XII. No Ângelus de 18 de março de 1979, lembrando seu predecessor, disse: “Neste quadragésimo aniversário do início daquele significativo pontificado, não podemos esquecer o quanto Pio XII contribuiu para a preparação teológica do Concílio Vaticano II, sobretudo no que diz respeito à doutrina sobre a Igreja, às primeiras reformas litúrgicas, ao novo impulso dado aos estudos bíblicos e à grande atenção aos problemas do mundo contemporâneo”5.
Realmente, além das referências já citadas que encontramos na Lumen gentium, há exemplos abundantes dessa contribuição, que pode ser estendida a muitos outros documentos conciliares.
É bastante comum, por exemplo, falar da constituição pastoral Gaudium et spes como o documento conciliar mais aberto ao diálogo com o mundo contemporâneo. Mas a maioria das pessoas ignora ou esquece que em 1950 já estava pronto o texto de uma Concilii oecumenici declaratio authentica, que devemos considerar precursor dos conteúdos do futuro “esquema 13”, aprovado para a Gaudium et spes6.
É suficiente ler o documento de Pio XII para perceber isso7. Além do mais, no que diz respeito à atenção a temas e problemas da sociedade contemporânea, Pio XII, com iniciativas peculiares, valorizou a Pontifícia Academia para as Ciências, fundada por Pio XI em 28 de outubro de 1936. Como única academia de ciências de caráter supranacional, ela é de um tipo sem precedentes no mundo. Os acadêmicos pontifícios são escolhidos de maneira indiscriminada entre os mais insignes estudiosos de ciências matemáticas e experimentais de cada país. E no meio deles, também na época de Pio XII, havia ilustres estudiosos judeus.
Em seu magistério, Pio XII quis eliminar afirmações de incompatibilidade entre a fé e a ciência. Não houve congresso científico de alto ou altíssimo nível ao qual esse papa não tenha dedicado um discurso perfeitamente informado, e tão esclarecedor a ponto de maravilhar os mais ilustres expoentes da ciência. Pio XII os escrevia pessoalmente, e em alguns casos, como no dos discursos para o Santo Natal, começava a prepará-los meses antes, depois de solicitar uma bibliografia específica e todas as informações mais atualizadas sobre a matéria de que iria tratar. Às vezes, quando tinha de enfrentar, por exemplo, temas relacionados à medicina, à física, à astronomia e a outras pan class="text21226933957022">, todos puderam reconhecer como o Papa havia enfrentado com escrupulosa diligência, grande sabedoria e um senso aguçado de antecipação dos tempos os mais graves problemas relacionados à medicina e à moral.
Os Discursos aos médicos de Pio XII são um verdadeiro manual, que foi fundamental, para mim e para meus colaboradores, quando tivemos de redigir, trinta e três anos mais tarde, a primeira Carta aos agentes da saúde9.
A Basílica de São Pedro, durante o Concílio Ecumênico Vaticano II

A Basílica de São Pedro, durante o Concílio Ecumênico Vaticano II

Embora temas como a anestesiologia, a cirurgia de transplantes, os limites do controle de natalidade, a eutanásia e a própria engenharia genética não tivessem, nas décadas de 1940 a 1960, a ressonância de hoje, os princípios morais ditados por Pio XII em relação a esses temas continuam insuperados10.
Assim, com justiça, todos reconhecem que, com a Humani generis11, Pio XII lançou uma ponte de extraordinária eficácia para o encontro entre a ciência e a fé. Essa encíclica não somente se posicionou contra graves erros, mas representou uma forte afirmação de respeito pleno não apenas à luz que a verdade extrai da Revelação, mas também à contribuição insubstituível da razão humana12. Como escreveu o cardeal Siri, “a encíclica Humani generis representa uma ‘Suma’ que deve ser levada em consideração: uma ‘Suma’ que fez João XXIII dizer que ‘Pio XII elaborou, em seu pontificado, uma enciclopédia teológica’”.
A sensibilidade da Gaudium et spes e a maneira como enfrenta as problemáticas sociais também encontram uma correspondência precisa no magistério e no ministério de Pio XII.
Já desde o início de seu pontificado, Pio XII falou do dever dos cristãos de se empenharem pela solução da questão social, a começar da Radiomensagem de 1º de junho de 1941, em comemoração pelos cinqüenta anos da publicação da Rerum novarum, de Leão XIII13.
Não vou falar aqui das Associações Cristãs de Trabalhadores Italianos (Acli), que, do primeiro encontro que tiveram com Pio XII, em 11 de março de 1945, até o inesquecível 1º de maio de 1955, na praça de São Pedro, tiveram no Papa um guia forte e vigilante, que insistia sobretudo na necessidade de uma sólida formação do operário católico14.
Em vez disso, e continuando no tema da sensibilidade de Pio XII perante os problemas sociais, limito-me a lembrar dois pormenores15.
Durante a construção da igreja e do edifício paroquial de São Leão Magno, em Roma, em 1952, recebemos a comunicação de que o Papa desejava encontrar os operários que trabalhavam na obra. Ele nos quis receber no Vaticano em 12 de março de 1952, aniversário de sua coroação como pontífice, e a confirmação da audiência nos pegou despreparados. Chegamos quase afoitos à Sala do Trono: os operários usavam suas vestimentas de trabalho, cobertas de poeira e remendadas, e ainda tinham na cabeça os chapéus feitos de jornal. O Papa foi de uma extraordinária afabilidade, misturando-se com os operários e conversando com todos16.
Mas quero lembrar outro pequeno episódio, a propósito da sensibilidade social de Pio XII. A carta pastoral coletiva O dever social e político no momento presente, publicada em 1962 pelo episcopado chileno, trazia como texto-base estas palavras de Pio XII: “A paz nada tem em comum com o apego duro e obstinado, feito da mais tenaz e infantil teimosia, às coisas que não existem mais. [...] Para um cristão consciente da responsabilidade que tem até pelo menor de seus irmãos, não existem nem a tranqüilidade indolente nem a fuga, mas, sim, a luta, o trabalho contra qualquer tipo de inatividade e deserção, em meio à grande luta espiritual em que vemos em perigo a construção, ou melhor, a própria alma, da sociedade do futuro”17.
Não há quem não enxergue aí a previdente intuição de Pio XII a respeito dos graves problemas que começavam a aparecer no Hemisfério Sul. Suas declarações sobre temas sociais ocupam ainda um grande espaço nas coletâneas de documentos sociais dos papas de nosso tempo18.
Quando, em 1943, foi publicada a encíclica Divino afflante Spiritu19, sobre a renovação dos estudos bíblicos, as diretrizes pontifícias pareceram audaciosas. Sendo que, poucos meses antes, em 29 de junho, o Papa havia publicado a encíclica Mystici Corporis, não faltou quem se mostrasse espantado com o fato de, bem no meio do segundo conflito mundial, o Papa dar tanto destaque a problemas que poderiam parecer abstratos. Na realidade, essas duas encíclicas foram proféticas, e serviram de referência, mais tarde, com uma freqüência toda especial, para os documentos do Concílio Vaticano II.
No que diz respeito ao ecumenismo, como chegou a dizer o cardeal Agostino Bea, falando tanto da encíclica Mystici Corporis20 quanto de outros documentos de Pio XII, “haveria muitas coisas boas a dizer, que talvez muita gente nem suspeite”21.
Quero reservar uma última observação à preocupação que Pio XII tinha com a estrutura interna da Igreja.
A desatenção nada louvável aos méritos de Pio XII deu origem ao hábito muito comum de ignorar, entre outras coisas, que foi ele, justamente, dez anos antes do início do Concílio, quem desejou a constituição de uma conferência episcopal na Itália. O atraso da Itália nessa questão tinha vários motivos, mas quase todos poderiam ser resumidos nas conseqüências do fim do Estado pontifício e das relações difíceis entre a Santa Sé e o Estado italiano, antes da Conciliação.
Em 20 de maio de 2002, numa iniciativa louvável, o L’Osservatore Romano publicou, como suplemento, o texto da conferência proferida pelo professor Andrea Riccardi no Instituto Patrístico Augustinianum sobre os cinqüenta anos da Conferência Episcopal Italiana22. Essa reconstrução esclarece o que acabo de afirmar sobre a vontade de Pio XII de que a CEI fosse constituída23.
Entre as maiores inovações do Vaticano II, é comum relacionar a reforma litúrgica. Hoje reconhecemos que seus fundamentos também foram lançados por Pio XII, em 1947, com a encíclica Mediator Dei24. O mesmo devemos dizer acerca da internacionalização da Cúria Romana e do Colégio Cardinalício, e da simplificação das vestimentas dos vários graus de prelados.
Pio XII; ao fundo, as primeiras páginas das edições do <I>L’Osservatore Romano</I> dedicadas às encíclicas <I>Mystici Corporis</I>, assinada em 29 de junho de 1943, e <I>Divino afflante Spiritu</I>, assinada em 30 de setembro de 1943

Pio XII; ao fundo, as primeiras páginas das edições do L’Osservatore Romano dedicadas às encíclicas Mystici Corporis, assinada em 29 de junho de 1943, e Divino afflante Spiritu, assinada em 30 de setembro de 1943

Alguém escreveu que Pio XII, num período em que as vocações eram abundantes, chegou também a prever a crise de vocações sacerdotais e religiosas que se daria a partir do pós-Concílio. E isso é verdade. Há mais de trinta anos, a Igreja, sobretudo nos países com vários séculos de tradição cristã, sofre uma grave crise de vocações ao sacerdócio e à vida consagrada. Eu gostaria de lembrar que Pio XII, já em 1950, com a exortação apostólica Menti nostrae, mesmo não falando da iminente crise de vocações, chegou até o coração do problema, dizendo, sem meios termos, que não poderíamos garantir o florescimento de vocações recorrendo à oração. Num período em que os seminários menores e maiores e os colégios religiosos tinham abundância de candidatos, o Papa – com grande realismo e espírito aberto – insistia na necessidade “de cuidar de modo particular da formação do caráter do jovem, desenvolvendo nele o sentimento de responsabilidade, a capacidade de juízo, o espírito de iniciativa”. Convidava os responsáveis pela formação a “recorrer com moderação aos meios coercitivos, aliviando, à medida que os jovens vão ficando mais velhos, o sistema de rigorosa vigilância e de restrições, ajudando os próprios jovens a se guiarem por si mesmos e a se sentirem responsáveis por suas ações”. Enfim, dispunha que os candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa obtivessem títulos de estudo regulares, para que não viesse a acontecer que sua perseverança no seminário fosse decorrente do medo de que, abandonando-o, por não serem vocacionados, se vissem na condição lembrada pelo Evangelho: “Fodere non valeo, mendicare erubesco”, “Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha” (Lc 16, 3)25.
Essas diretrizes, infelizmente, foram amplamente negligenciadas; se tivessem sido levadas em conta devidamente, talvez tivesse sido evitada a dolorosa hemorragia que se verificou em seguida26. Eu gostaria de notar, também, que esse documento – que teria a honra de constituir um quarto das 48 citações contidas no decreto conciliar Optatum totius, sobre a formação sacerdotal – saía num ano que não seria lembrado apenas pelo Jubileu e pela definição dogmática da Assunção corporal de Maria ao céu, mas também por alguns eventos gravíssimos que feriam o coração da Igreja no Leste Europeu, em via de sovietização: começava a era da “Igreja do silêncio”; ocorria a supressão dos seminários e dos institutos religiosos e o confisco de seus bens; ficava cada vez mais dura a perseguição contra os pastores; o tratamento dado ao primaz da Hungria, cardeal József Mindszenty, preso desde 27 de dezembro de 1948, era cada vez mais impiedoso; um destino idêntico, e ainda mais cruel, esperava pelo arcebispo de Zagábria, cardeal Alojzije Stepinac.
No Ocidente, prevalecia o otimismo do período de reconstrução do pós-Guerra, mas Pio XII, em 1952, lançava – infelizmente mais uma vez insuficientemente ouvido – uma missão de renovação que devia atingir, partindo do centro da cristandade, a toda a Igreja.
O grande Pontífice pressentia que a onda de laicismo, de secularização, de exasperado individualismo e de crescente hedonismo e consumismo que invadia o Ocidente atingiria por também o interior da Igreja.
Não devemos esquecer ainda que Pio XII compreendeu e valorizou ao máximo, em seu tempo, os meios de comunicação de massa. Se, da prudência manifestada por Pio XI na encíclica Vigilanti cura (29 de junho de 1936), passamos à posição inteiramente favorável e construtiva da encíclica Miranda prorsus (8 de setembro de 1957), preparando o decreto conciliar Inter mirifica, isso se deve sobretudo à importância dada por Pio XII à utilização dos meios de comunicação de massa – visando a evangelização.
As radiomensagens de Pio XII, que já desde sua eleição se tornaram o principal instrumento de seu magistério universal, constituíram, nos anos da Guerra, o mais incansável apelo à paz e, nos anos seguintes, uma orientação decisiva para a formação das democracias modernas. Isso sem falar de sua relevância para a orientação da Igreja e a serviço de sua unidade. Devemos levar em conta que não existiam ainda as conferências episcopais, nem eram celebradas as assembléias dos sínodos dos bispos.

Paulo VI com o Evangeliário, durante o Concílio Ecumênico Vaticano II

Paulo VI com o Evangeliário, durante o Concílio Ecumênico Vaticano II

O pontificado de um homem de Deus
Há um dado que serve de ligação entre toda a atividade, todo o magistério e todo o ministério de Pio XII, e que explica sua firmeza perante o erro, sua caridade desmedida ante os fracos, os perseguidos e os necessitados e sua atenção a todos os problemas da sociedade moderna. Esse elemento unificador era a consciência forte e, ao mesmo tempo, carregada de sofrimento que o Papa tinha da dimensão espiritual de seu pontificado.
A santidade de Pio XII é algo que não precisa ser defendido, mas, sim, conhecido.
A figura hierática de Pio XII era o espelho de seu perfil interior e espiritual. Não apenas foi um grande homem; foi um grande homem de Deus.
A condenação que fazia dos erros que provocavam desgraças no plano político e social vinha de seu desejo irresistível de alertar contra os perigos do ateísmo, pela convicção que tinha de que, sem Deus, não podemos ter nem liberdade, nem justiça, nem paz. O que o feria e era motivo de indizível sofrimento na perseguição que a Igreja padecia na União Soviética e nos países da Europa Oriental era, em primeiro lugar e acima de tudo, o ateísmo que a inspirava. Suas referências ao materialismo e ao comunismo são sempre acompanhadas da qualificação ateu.
Limito-me a um pormenor que considero emblemático. Quando as pessoas falam de João XXIII, sobretudo a grande imprensa, destacam como uma novidade nele a distinção que sempre repetia entre o erro e a pessoa que erra; o erro deve ser condenado, a pessoa que erra deve ser trazida para mais perto, entendida, perdoada. Obviamente, trata-se de um posicionamento incontestável. No entanto, já em 1952, num momento em que o conflito com o comunismo ateu era duríssimo, Pio XII publicou uma carta apostólica dirigida aos “caríssimos povos da Rússia”, na qual, falando justamente do comunismo ateu, frisava a distinção a que acabo de me referir, e o fazia, como lhe era peculiar, com uma clareza extraordinária. Diz o documento: “Como exige a consciência dos deveres de nosso ofício, certamente condenamos e repelimos os erros afirmados pelos promotores do comunismo ateu, e que eles tentam de todas as formas difundir, para enorme prejuízo dos cidadãos e criação de máxima divisão; quanto àqueles que erram, ao contrário, não apenas não os repelimos, mas desejamos ardentemente que retornem à verdade e à reta conduta”27.
Homem de Deus, ele se alimentava da oração. Quando rezava, às vezes ficava tão absorto que não ouvia qualquer pessoa que o chamasse, nem percebia o canário que costumava pousar e piar sobre suas mãos juntas. A oração foi uma característica que o distinguiu desde jovem, como atesta o testemunho insuspeito de Ernesto Buonaiuti28.
Pio XII, além disso, foi um grande asceta. Homem de agudíssima inteligência, de severa preparação, amadurecida nos anos em que exerceu responsabilidades extremamente delicadas, ele alcançou um equilíbrio interior que certamente foi fruto de longo aprendizado.
Trabalhador incansável, Pio XII se submetia a uma disciplina rigorosa. Ocupava-se à mesa de trabalho até altas horas da noite. Suas pausas eram sempre de oração. Seu ascetismo se transferia para sua maneira de falar, de gesticular, para a atenção que sabia dar a tudo e a todos e para a forma como reconhecia, em cada evento e situação, a verdade que precisava ser defendida e o erro que deveria ser combatido.
A disciplina interior amadureceu nele com a formação de uma consciência incorruptível, que se refletia na seriedade e propriedade de sua linguagem, que detestava qualquer forma de ambigüidade.
Foi asceta porque amante da penitência, no significado espiritual e místico do termo.
Enfim, Pio XII foi um verdadeiro e grande pastor. O padre jesuíta Agostino Bea, que foi seu confessor e foi criado cardeal por João XXIII, escreveu: “Talvez sejam necessárias décadas, provavelmente séculos, para medir a grandeza de Pio XII e sua influência sobre a Igreja e, digamos mesmo, sobre a história da humanidade”29. A afirmação certamente é hiperbólica, no que se refere ao tempo, mas clara o bastante para expressar a grandeza incomum desse pontífice que foi realmente sumo, e indicativa o suficiente para afirmar que a figura e a obra de Pio XII são uma mina muito rica, pelos tesouros naturais e sobrenaturais que contém.
Como grande pastor, Pio XII, ao mesmo tempo em que se abriu às instâncias da cultura moderna com grandes encíclicas, como a Humani generis, encerrou, de fato, a fase tempestuosa do movimento modernista.
Com a definição do dogma da Assunção corporal de Maria e com o impulso que deu à piedade mariana, o Papa restabeleceu a honra devida à mariologia e ao culto mariano.
Grandes personalidades que estiveram próximas de Pio XII o compararam a Leão Magno, a Gregório VII ou a Leão XIII. Sem dúvida, ele contribuiu, como poucos, para dar à Igreja um prestígio moral que desde a época da Revolução Francesa e da afirmação dos sistemas liberais do século XIX estava fortemente desgastado.
Não vou falar de Pio XII como homem da caridade, entendida enquanto alma e alicerce da justiça. Limito-me a indicar um livro, certamente não dos mais conhecidos, de padre Primo Mazzolari, sacerdote que alguns insistem em considerar alvo de incompreensão e hostilidades por parte do próprio Pontífice30.
Em 1956, padre Mazzolari – que já havia sido repreendido em 1934 pelo Santo Ofício, por seu comentário à parábola do Filho Pródigo, no livro La grande avventura – aceitou o convite que lhe foi feito por dom Ferdinando Baldelli, presidente da Pontifícia Obra de Assistência, a descrever o ministério de caridade de Pio XII.
Pio XII proclama o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao céu em corpo e alma, em 1º de novembro de 1950

Pio XII proclama o dogma da Assunção de Maria Santíssima ao céu em corpo e alma, em 1º de novembro de 1950

O livro La carità del Papa talvez seja o mais belo retrato de Pio XII, Papa da caridade. Faço apenas uma citação desse escrito de padre Mazzolari: “Nossa geração teve uma existência muito atribulada, mas ninguém, como nós, teve a graça de ver, acima de tanto mal, erguer-se a piedade maternal da Igreja, de forma que, narrando-a, sentimos poder repetir com São João: ‘O que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos tocaram da Palavra da caridade, nós vos anunciamos’”31.
Encontrei Pio XII pela última vez em 6 de outubro de 1958, três dias antes de sua morte. Apesar da saúde instável, ele quis falar aos participantes do X Congresso Nacional da Sociedade Italiana de Cirurgiões Plásticos. Naquela circunstância, com uma intuição extremamente moderna, o Papa definiu a cirurgia plástica “uma ciência e uma arte, voltadas, de per si, para o benefício da humanidade; no que concerne à pessoa do cirurgião, trata-se de uma profissão em que se encontram empenhados importantes valores éticos e psicológicos”32. E não é que naquela época as pessoas recorressem, como hoje, à cirurgia plástica!
Em 1957, com o professor Luigi Gedda, consegui que o Papa escrevesse, de próprio punho, a “Oração do Médico”. Ele quis que ela fosse distribuída como cópia fac-similar. Nela, o Papa funde de maneira admirável a ética hipocrática e a visão cristã da vida. A oração foi lida pela primeira vez por padre Pio de Pietrelcina, na igreja de São João Redondo, ao final do VII Congresso Nacional dos Médicos Católicos Italianos, celebrado em Bári no mês de maio de 1957.
Várias vezes, em particular nos últimos cinco anos de seu pontificado, Pio XII esteve gravemente doente, e as pessoas temeram por sua vida.
Há abundantes testemunhos sobre sua preparação para o encontro com o Senhor e a coragem exemplar com que aceitou e viveu seu sofrimento.

Conclusão
Redescobrir Pio XII é redescobrir não apenas um grande pontífice, uma figura que marcou a história do século XX, mas também redescobrir um santo.
Padre Burkhart Schneider, jesuíta que foi co-diretor da obra Actes et Documents du Saint Siège relatifs à la seconde guerre mondiale, concluindo seu perfil aguçado de Pio XII, escrevia: “Sobre a vida e o pontificado de Pio XII paira uma fatalidade trágica: acima de tudo, não ter podido impedir nem abreviar a Segunda Guerra Mundial, com todos os horrores a ela ligados. Mas quem examinar e pesar sem preconceitos as fontes diretas, hoje conhecidas, terá de admitir que Pio XII quis o melhor e empregou tudo o que estava em seu poder e todas as suas forças, integralmente, a serviço da Igreja de Cristo e da humanidade”33.


Notas
1 Siri, G., Pio XII a 25 anni dalla sua morte, Roma, 1983, p. 10.
2 Cf. “Indice del magistero pontificio”, in: Concilio Ecumenico Vaticano II, Costituzioni, decreti, dichiarazioni, Alba, Edizioni Domenicane, 1996, pp. 608-609.
3 Caprile, G. (org.), Il Concilio Vaticano II. Cronache del Concilio Vaticano II edite da “La Civiltà Cattolica”. L’annuncio e la preparazione, 1959-1962, vol. I, parte I, 1959-1960, p. 15.
4 Id., ibid., p. 15, nota 1: “Obtidas as devidas licenças, pudemos consultar em primeira mão muitos documentos guardados no arquivo da Congregação para a Doutrina da Fé”.
5 L’Osservatore Romano, 19 de março de 1979, p. 1.
6 Ibid., pp. 30-32.
7 Nas muitas notícias e comunicações lidas no encontro mundial “Gaudium et spes. Balanço de três décadas” (Loreto, 9-11 de novembro de 1995), depois objeto de uma edição inteira da revista do Pontifício Conselho para os Leigos, Laici Oggi (nº 29, 1996, pp. 1-289), não há vestígios desse documento, preparado durante o pontificado de Pio XII; o próprio Papa, em todo o volume, é mencionado de relance apenas uma vez (p. 228).
8 Pio XII, Discorsi ai medici, organizado por Fiorenzo Angelini, Roma, Orizzonte Medico, 1961.
9 Pontifício Conselho para a Pastoral no Campo da Saúde, Carta aos agentes da saúde, Roma, 1994.
10 Um exemplo, entre muitos. Em resposta a uma questão que lhe foi submetida pela Sociedade Italiana de Anestesiologia, o Papa, em 28 de fevereiro de 1957, expondo o pensamento da Igreja, declarou lícita a administração de anestésicos destinados a evitar que o paciente sofresse dores insuportáveis provocadas por tumores que não pudessem ser operados ou doenças incuráveis, ainda que esses anestésicos pudessem levar à abreviação da vida, desde que não houvesse nenhuma relação causal direta entre a narcose e a abreviação da vida. Com esse ensinamento, o grande Pontífice vislumbrou antecipadamente a concretização do problema da eutanásia (cf. Discorsi ai medici, cit., pp. 571-581).
11 Carta encíclica Humani generis (12 de agosto de 1950), in: Acta Apostolicae Sedis 42 (1950).
12 Siri, G., op. cit., p. 10.
13 Cf. Storchi, F., I documenti di Pio XII sull’ordine sociale, Roma, Ave, 1944, p. 142.
14 “Não é raro o caso em que o operário católico, por falta de uma sólida formação religiosa, se encontra indefeso quando lhe são propostas falsas idéias sobre o homem e o mundo, sobre a história e a estrutura da sociedade e da economia. Não é capaz de responder, e às vezes até se deixa contaminar pelo veneno do erro. As Acli, portanto, devem melhorar essa formação cada vez mais, com a certeza de que dessa forma exercem o apostolado do trabalhador entre os trabalhadores que Nosso Predecessor Pio XI, de feliz memória, desejava em sua encíclica Quadragesimo anno” (in: Giordani, I. [org.], Le encicliche sociali dei papi, Roma, Studium, 1956, p. 1041).
15 Cf. Angelini, F., La mia strada, Milão, Rizzoli, 2004, pp. 159-160.
16 Cf. Bozuffi, A., Gli uomini hanno trent’anni, Roma, Editrice Domani, 1952, pp. 243-244.
17 Citado por Visión cristiana de la Revolución en América Latina, Centro Bellarmino, Santiago de Chile, 1963, edição especial da revista Mensaje, 115, 1963, p. 29.
18 Cf. Giordani, I., op. cit.
19 Carta encíclica Divino afflante Spiritu (30 de setembro de 1943), in: Acta Apostolicae Sedis 35 (1943).
20 Carta encíclica Mystici Corporis (29 de junho de 1943), in: Acta Apostolicae Sedis 35 (1943).
21 Bea, A., L’unione dei cristiani, Roma, 1962, p. 203.
22 Cf. L’Osservatore Romano, 22 de maio de 2002, suplemento.
23 Ibid.: “Em 1952, o Papa convocou os presidentes das conferências episcopais regionais italianas. Essa decisão de 1952 é um momento de virada. Esse é um ano particular. Em fevereiro de 1952, iniciava-se uma importante mobilização por ‘um mundo melhor’, guiada por padre Lombardi: o despertar dos católicos viria a ser acompanhado do esforço de tornar a Igreja mais compacta e presente. Padre Lombardi criticava a fragmentação das iniciativas e das instituições e, já em 1948, havia apresentado a idéia de uma reunião dos bispos italianos. Pio XII, sem acompanhar o jesuíta em todas as suas análises, estava preocupado com a resistência do catolicismo, sobretudo depois de 18 de abril de 1948, às esquerdas em todo o país e em Roma (1952 é o ano da chamada ‘Operação Sturzo’): o Papa era sensível à visão de padre Lombardi, que propunha também uma reforma da atividade dos bispos e das dioceses. Em 1952, ao lado do ‘mundo melhor’, Pio XII fazia votos de um ‘forte despertar’, mas também de um ‘sábio enquadramento’ e de um ‘emprego sensato’ das forças católicas. Nesse clima se deu a primeira reunião das presidências da CEI, em Florença, sob o comando do cardeal Schuster, o mais idoso dos purpurados. Em Florença, os bispos foram chamados a falar da ‘vida cristã’, do clero secular e regular e do laicado, segundo o que escreve dom Urbani, assistente da Ação Católica e secretário da reunião. A iniciativa do encontro deve ser atribuída ao cardeal E. Ruffini, de Palermo, que estava à frente de uma conferência regional muito operante. O cardeal falara disso ao Papa: ‘...e por que não? Tudo bem. Os outros países também o fazem’, teria dito Pio XII. O cardeal Siri apoiara a idéia. Ruffini explica a função da reunião: ‘Sentir os desejos de todos os bispos; chegar a um entendimento comum sobre algumas questões; apresentar conclusões ao Papa. Ele não poderá deixar de levá-las em conta. Prontos a obedecer. É uma boa ocasião para iniciativas, para reformas’. Essas foram as finalidades da primeira reunião e das seguintes. Havia uma certa hesitação por parte dos bispos, que não queriam ir além de uma função consultiva. Quando, um ano depois, foi discutida a eventualidade de uma carta coletiva do episcopado, o próprio Ruffini foi contrário: ‘Um documento do episcopado italiano sem a assinatura de seu Primaz representaria um ato incompleto...’ Na Itália – afirmava ele – a situação era particular. Ali, os bispos nunca tiveram uma atividade coletiva distinta da Santa Sé. Siri, como Lercaro e Roncalli, era favorável. Os anos da origem da CEI mostram uma realidade: foi a Santa Sé que sentiu a necessidade de uma maior responsabilização dos bispos. O aspecto que prevaleceu talvez tenha sido o da consulta interna do episcopado. O primeiro ato público foi a carta de 2 de fevereiro de 1954, por ocasião do Ano Mariano, assinada pelos presidentes das regiões conciliares. Nela não aparece a assinatura do Papa. Os firmatários afirmavam interpretar todos os bispos italianos”.
24 O documento foi publicado em 23 de setembro de 1950 (cf. Acta Apostolicae Sedis 42 [1950], pp. 617-702).
25 Ibid., “Normas práticas”.
26 Cf. Colagiovanni, E., Crisi vere e false nel ruolo del prete, Roma, Città Nuova, 1973, pp. 133ss.
27 “Utique errores – quod officii Nostri conscientia postulat – damnavimus atque reiecimus, quod athei comunismi fautores praedicant, ac summo cum civium damno summaque iactura propagare enituntur: sed errantes, nedum respuamus, ad veritatem ad frugemque bonam redire cupimus” (carta apostólica Carissimis Russiae populis [Sacro vergente anno], de 7 de julho de 1952, in: Acta Apostolicae Sedis 44 [1952], pp. 505-511).
28 Ernesto Buonaiuti, lembrando o dia de sua primeira missa na Igreja Nova, em Roma (19 de dezembro de 1903), escreve: “Sobre aquele mesmo altar de São Filipe, não muito tempo antes, havia celebrado sua primeira missa um sacerdote romano que morava também nos arredores da Igreja Nova, e que eu encontrava freqüentemente sob os arcos da igreja e admirava por sua piedade edificante: o sacerdote Eugenio Pacelli” (in: Pellegrino di Roma. La generazione dell’esodo, Bári, Laterza, 1964, p. 46).
29 Id., ibid., p. 395.
30 Mazzolari, P., La carità del Papa. Pio XII e la ricostruzione dell’Italia (1943-1953), Cinisello Balsamo, Edizioni Paoline, 1991.
31 Id., ibid., p. 134.
32 Pio XII, Discorsi ai medici, cit., p. 717.
33 B. Schneider, Pio XII. Pace, opera della giustizia, Edizioni Paoline, Roma 1984, pp. 104-105.


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