Depois da Carta do Papa
As estradas abertas do Império Celeste
Viagem às Igrejas de Pequim e Xangai, em que os cristãos também se vêem às voltas com os novos cenários de um país voltado para o futuro obrigado a lidar com a recessão mundial. Em meio às incertezas, aparecem novas oportunidades e aproximações inesperadas
de Gianni Valente
Uma mulher com seu filho, em oração numa igreja católica [© Reuters/Contrasto]
Padre Giovanni mora bem perto do primeiro-ministro. A igreja de São Miguel, da qual é pároco, fica a poucos números do compound que hospeda o vizinho importante. Ele também é obrigado a driblar bicicletas e vigilantes, quando volta para casa, como tanta gente, arrastado no vai-e-vém anônimo da noite. No entanto, um dia, há alguns meses, todos os olhos da China, por alguns instantes, teoricamente estiveram apontados para ele. A tocha olímpica havia chegado à capital do Império, e ele era uma das últimas pessoas encarregadas de levar a chama olímpica por umas poucas dezenas de metros, pelas ruas de Pequim. Quando chegou a sua vez, sem pensar muito, ele aproveitou a oportunidade. Levantou a tocha diante da cidade em festa e, com aquele instrumento-símbolo da nova grandiosidade chinesa, sem estardalhaço, traçou velozmente no ar o sinal-da-cruz. Foi o gesto mais simples que lhe veio à mente para expressar toda a sua simpatia por aquele pedaço imenso do mundo que se apinhava dos lados do trajeto de sua breve corrida.
Há quatrocentos anos, o grande jesuíta Mateus Ricci já tinha ficado impressionado com a grandeza humana do projeto político que sustentava o Império Celeste. Olhando para a China de seu tempo, ele também procurava um ponto de encaixe, uma afinidade mínima, uma ressonância familiar mesmo distante, da qual pudesse partir para que a semente cristã fosse espalhada por aquela terra, sem logo ser repelida como um corpo estranho.
Como naquela época, hoje também, em meios às grandes mudanças que a China vem vivendo, a aventura dos cristãos no grande país passa também por aproximações ocasionais. Espirais de simpatia gratuita que o bom Deus pode despertar entre os camponeses de Xi-xuan e os homens de negócios de Xangai, os estudantes universitários com roupas de grife e os pescadores de Fuzou. E também entre aqueles que detêm o poder.
Uma procissão diante da imagem de Mateus Ricci, em Pequim [© Associated Press/LaPresse]
No Seminário Nacional de Pequim, o pergaminho com a bênção de Bento XVI está pregado na parede, numa posição um pouco fora da vista, mas estratégica. A gente só o vê quando desce as escadas que levam da igreja para a cripta. Mas todo o mundo passa por ali, pelo menos uma vez por dia. Os quase oitenta seminaristas, quarenta sacerdotes e quinze religiosas levam uma vida ritmada pelos horários e pela disciplina de seminário-modelo: despertar às cinco e meia, uma hora de oração, missa, café da manhã, manhã de estudos, ginástica, leituras espirituais durante as refeições, culminando com a meditação da noite sobre o Evangelho e os Padres da Igreja, feita em silêncio, todos juntos, na igreja. A vida do seminário é um concentrado de todos os paradoxos que marcam a trajetória anômala da catolicidade chinesa. Os folders de informação repetem que o seminário é financiado pelo governo, sob a responsabilidade da Associação Patriótica dos Católicos Chineses, instrumento com o qual o regime quer-se assegurar do pleno alinhamento da Igreja a sua liderança política, interferindo até na escolha dos bispos. No entanto, ali os padres e seminaristas estudam sem censuras o Código de Direito Canônico, inclusive os cânones em que está escrito que só o Papa “nomeia livremente os bispos, ou confirma aqueles que foram legitimamente eleitos”. E se algum dos poucos bispos chineses consagrados sem mandato pontifício é levado para visitar o seminário, um vazio se abre em torno dele e nenhum dos padres desce à capela para concelebrar a missa.
A Carta do Papa aos católicos chineses também levanta reações ambivalentes e paradoxais, mais de um ano depois de sua publicação. “Para todos nós”, diz padre Joseph Jinde Lin, um dos assistentes espirituais do seminário, “o Papa disse a palavra definitiva sobre muitas questões que eram controversas havia décadas. A Carta nos diz que não precisamos nos contrapor àqueles que nos governam: agora ninguém pode dizer que, pelo fato de dialogar com o governo, uma pessoa não é um bom cristão”. Pelo menos dez seminaristas provenientes de comunidades não registradas nos organismos governamentais já pediram para continuar sua formação no Seminário Nacional de Pequim, saindo da condição de clandestinidade mais ou menos tolerada em que amadureceu sua vocação sacerdotal – e pedidos como esses não param de aumentar. É um dos muitos sinais da reconciliação silenciosa dentro da catolicidade chinesa, que lentamente vai curando as feridas e dissipando os rancores entre aqueles que já haviam aceitado colaborar com a política religiosa do regime e os que rejeitavam seu controle sobre a vida da Igreja. As reações menos entusiasmadas às indicações e sugestões da Carta do Papa se registram – mais um paradoxo – entre elementos isolados da parcela clandestina, talvez justamente os mesmos que, por décadas, fizeram da obediência ao Papa a bandeira de sua fidelidade incondicional à Sé Apostólica. E esse endurecimento nem sempre é motivado por razões ideais. Alguns dos chamados padres “clandestinos” vive uma condição estranhamente privilegiada: administra de maneira independente as ofertas que recebe dos fiéis nas missas, usufrui de doações feitas por organizações americanas contrárias ao governo chinês, circula de diocese em diocese sem grandes obrigações perante seus superiores. Mas são poucas exceções – reiteram também no Seminário de Pequim –, indivíduos que fazem muito barulho com seus discursos desordenados nos blogs, nos quais chegam a escrever que o Papa errou ou que foi enganado. “A reconciliação dos corações, a que conta, já começou”, assegura padre John Tian, da igreja de São Pedro, em Xangai. “Os clandestinos também já reconhecem que existe plena comunhão de fé com os católicos que freqüentam as igrejas ‘abertas’. Geralmente, são pessoas idosas, que com certeza não freqüentam as salas de bate-papo da internet para criticar o Papa, de quem são tão devotos. Devemos ter compreensão e misericórdia com os clandestinos. As coisas vão se resolver,
O Seminário Nacional de Pequim
Os gurus do Fundo Monetário Internacional vão a Hong Kong e dizem que estão tranqüilos, pois a China, com suas robustas reservas monetárias, será uma âncora de estabilidade para o mundo inteiro, no furacão da recessão mundial que assolará os próximos dois anos. Mas, em Pequim, as pessoas não confiam muito nos alquimistas financeiros do além-mar. Em Guangdong, já no final de outubro, começou a temporada de falências das fábricas de brinquedos. Dezenas vão sendo fechadas, uma após outra, e os trabalhadores são mandados para casa. “Vão aumentar os fatores contrários à estabilidade social”, prognosticava o próprio Wen Jiabao, já no início de novembro.
A China é uma locomotiva correndo a todo o vapor para o futuro. Nos últimos anos, as taxas de crescimento econômico do país tinham sempre dois dígitos. Se esse trem descarrilasse agora, em plena corrida – como todos sabem –, as conseqüências seriam devastadoras em qualquer canto do planeta. A liderança chinesa vê à sua frente problemas de dimensões ciclópicas, e é melhor levá-los em conta, também ao olhar para a vida do pequeno rebanho dos católicos chineses – entre dez e treze milhões, uma gota perdida num mar de um bilhão e trezentas mil almas.
Nos dois últimos anos, com a gradualidade ritual que é sua marca registrada, os dirigentes chineses deram passos teóricos interessantes em relação à questão religiosa. Em 2007, no último congresso do Partido Comunista Chinês, a palavra “religião” foi inserida na constituição do PCC. Pela primeira vez, na história da China comunista, até no planejamento teórico das estratégias políticas os sujeitos religiosos praticantes eram reconhecidos como componente social compatível com o modelo de desenvolvimento do país, ao lado das minorias étnicas. No final de 2007, o próprio Hu Jintao abraçou ao máximo a idéia de que as religiões podem se tornar úteis para construir a sociedade harmoniosa, uma fórmula-chave do léxico recente do poder chinês: “Nós devemos unir bem os crentes e as figuras religiosas presentes nas massas em torno do partido e do governo, e lutar, em conjunto com eles, para construir ao nosso redor uma sociedade próspera, ao mesmo tempo em que apressamos o passo para a modernização do socialismo”, disse o presidente chinês na conclusão de uma sessão de estudos do Politburo dedicada à questão religiosa. Por isso, antes das Olimpíadas, parecia que o novo cenário teórico elaborado nas altas esferas da nomenklatura chinesa poderia, por um efeito-dominó, levar a alguns passos importantes na marcha extenuante para a normalização das relações complexas entre o governo comunista, a Igreja Católica chinesa e a Santa Sé. Passada, porém, a excitação olímpica, os sinais vindos do outro lado da Grande Muralha voltaram a ser raros e enigmáticos (vide box). Reapareceram os velhos problemas ainda não resolvidos, como a pretensão dos órgãos governamentais de estar à frente das nomeações dos bispos. Mas o contexto mudou, e é conveniente que todos levem isso em conta, para que consigam perceber realmente em que pé estão as coisas.
A relação entre a Igreja e o Império Celeste sempre teve suas complicações específicas. Bem antes de Mao, os dirigentes da China sempre tiveram dificuldade para reconhecer que o bispo de Roma não é uma espécie de monarca espiritual universal, e que os bispos espalhados pelo mundo não são seus mandarins. Hoje, como um fator a mais de complicação, a “questão católica” é encarada pelos funcionários chineses como mais um aspecto do revival religioso de múltiplas formas que atravessa o país; um fenômeno articulado, mantido sob controle pelo regime, que, sem deixar de lado o cuidado com as “áreas críticas” tradicionais – como a questão tibetana ou a dos uigures, a inquieta população muçulmana de Xinjiang –, tem voltado sua atenção nos últimos anos também para o impressionante crescimento da galáxia evangélico-protestante, com toda a sua fluidez. As comunidades evangélicas militantes, ligadas de maneira mais ou menos direta às Igrejas livres do tipo norte-americano, expandem, com seu miraculismo emocional, suas redes de “igrejas domésticas”, num ritmo e com o emprego de métodos difíceis de monitorar. Essa proliferação silenciosa com certeza já levou, de uma hora para outra, à superação dos 16 milhões de fiéis que as estatísticas do regime atribuem às comunidades protestantes “históricas” (luteranas, calvinistas, reformadas). O crescimento exponencial vem sendo celebrado como uma vitória pelas centrais de informação americanas, como a China Aid Association, que acredita numa cifra inverificável de 130 milhões de chineses que já se teriam tornado “cristãos renascidos” nas aguerridas house churches, e os apresenta como potenciais ativistas de batalhas antigovernamentais em nome da liberdade religiosa e dos direitos humanos.
Por ora, o retorno do “fator religioso” como fenômeno sociologicamente relevante é analisado com cautela pelas altas esferas do poder chinês. Os organismos culturais filogovernistas, como a Academia das Ciências Sociais, receberam do governo um impulso explícito a estudar o fenômeno. Se o critério de ação óbvio do governo é a estabilidade política e a coesão social, os espiões estão prontos a disparar um alerta diante de qualquer realidade religiosa que tenha como horizonte um impacto sociopolítico que não possa ser assimilado às novas palavras de ordem da “sociedade harmoniosa”, e que seja percebida como uma força antagonista. E o estado de alerta só tende a aumentar, com a recessão mundial ameaçando até mesmo o milagre econômico chinês.
Não foi por acaso que, nos últimos tempos, a rede evasiva das igrejas evangélicas domésticas passou a estar estavelmente na mira da vigilância policial. As incertezas do momento também poderiam explicar, em parte, a falta de sincronia temporária nas relações sino-vaticanas. Nessas relações, a questão mais controversa continua a ser a das nomeações dos bispos: os funcionários chineses vão ganhando tempo, evitando avaliar soluções de compromisso que a Santa Sé possa aceitar. “Se o governo não está afrouxando o laço”, explica a 30Dias um jovem padre chinês, “é também porque está acostumado a considerar o bispo como um homem de poder, capaz de ditar uma linha política aos outros batizados”. Assim, numa situação anômala e complexa como a chinesa, a atenção concentrada ao máximo no problema das nomeações episcopais produz, a longo prazo, efeitos deformadores. Assim, vários padres mais jovens vão sendo contagiados por um carreirismo paradoxal: “Eles passam o tempo fazendo acordos e procurando consolidar uma ‘tabelinha’ eclesial e até política para se tornarem bispos. E perdem de vista todo o resto”.
Crianças chinesas em oração [© Associated Press/LaPresse]
Joseph Xing deve estar mesmo cansado, senão não dormiria como uma criança durante o breve trajeto que o leva a Jiading, a quarenta quilômetros de Xangai. Está sentindo a troca de fuso horário: acaba de voltar de uma peregrinação à Terra Santa, em companhia dos funcionários do Departamento para Questões de Religião. Mas já o esperam na cidadezinha dos arredores de Xangai: ele tem de celebrar mais de cem crismas, e – como todos sabem – nunca faltaria a um compromisso como esse. Na fila para receber a unção, vemos idosas avós recurvadas pelos anos, cinqüentões alinhados em seus belos trajes, mães de família com os filhos no colo. E muitos rapazes e moças, que se aproximam do altar com um ar leve e o coração jovem, como o da China urbana e moderna de que são filhos.
Ninguém aqui leva a sério as teorias fantasiosas de alguns intelectuais norte-americanos que enxergam no horizonte a conversão acelerada de metade do povo chinês ao cristianismo pela via “cultural”. Mas é um fato que em Pequim, Xangai e em algumas outras megalópoles chinesas ocorrem milhares os batismos de jovens e adultos todos os anos nas igrejas católicas. Alguns deles dão as caras na vida cristã por acaso, algumas vezes atraídos pelos chamarizes mais fortuitos e superficiais: as luminárias que enfeitam as igrejas no Natal, a música do órgão e os cantos litúrgicos, que eles ouvem passando casualmente na frente de alguma paróquia; ou até mesmo a curiosidade por entender quem será esse tal de São Valentino que os apaixonados do mundo inteiro festejam em 14 de fevereiro.
Essas pessoas não fazem discursos, não conseguem explicar o que as atrai. Para muitas, o que está no início é apenas a emoção de terem ouvido palavras de promessa e esperança que tocaram seu coração, as mesmas palavras em que apostam os evangélicos importados. “Depois que entraram na igreja”, acrescenta padre John, “outras coisas trabalham misteriosamente: a liturgia, as histórias de Jesus que eles ouvem durante a missa, o fato de verem pessoas rezando em silêncio, com toda a calma”. Esses novos católicos não sabem nada da grande história de testemunho e martírio que preservou o dom da fé nas terras chinesas, levando-o até eles sem esforço e sem nenhuma tensão. Também por isso, para não escandalizar sua inconsciente simpatia de principiantes – repetem todos –, é hora de deixar de lado os resíduos tóxicos dos conflitos eclesiais do passado e o recente carreirismo que ainda os alimenta.
Os próprios padres e bispos na faixa dos quarenta anos que vão assumindo as responsabilidades na Igreja na China não sabem muito bem com que vão lidar. E os condicionamentos a que o laço de comunhão com o Papa é submetido ainda hoje são apenas uma parte do problema que têm pela frente. “Cedo ou tarde, de um modo ou de outro”, diz ainda padre John, “as relações entre Pequim e o Vaticano ainda vão se normalizar. Mas, enquanto isso, tudo aqui vem mudando rápido demais. As velhas testemunhas estão desaparecendo; nós temos à nossa frente um mundo em movimento constante. Não sabemos bem o que fazer”. Também na China, a assimilação da pós-modernidade global vai mudando todos os paradigmas sociais e culturais do passado. Coube a essa nova geração o destino de carregar o nome de Cristo em meio ao imenso canteiro de obras que é a China justamente no momento em que o grande Dragão está mudando de pele outra vez. Para todos eles, a tentação é estar à altura, elucubrar estratégias adequadas ao momento, correndo o risco de não perceberem que mais uma vez, como sempre, basta à Igreja ser ela mesma, para aproveitar as oportunidades que vão aparecendo.
A seu modo, é isso que o velho vigário-geral Ai Zuzhang gostaria de sugerir aos jovens padres de Xangai. Ele o faz com delicadeza, lembrando mais uma vez sua história, durante a celebração de uma missa para lembrar os quatrocentos anos da diocese de Xangai: “Eu era rico”, diz, “tão rico que minha família continuou a pagar os empregados domésticos que cuidavam de mim mesmo depois que me tornei padre. Eu tinha problemas de saúde, não sabia fazer nada, não sabia o que era o trabalho. Quando fui parar nos campos de reeducação, me perguntava: como vou conseguir resistir? No entanto, foi o dom de Deus que acabou fazendo tudo por mim. Até a saúde melhorou... Pode ser que o mesmo aconteça hoje a vocês, diante da tarefa que os espera. O futuro que vocês têm pela frente está nas mãos do Senhor”.