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REPORTAGEM DA UGANDA
Extraído do número 11 - 2008

As rosas de Campala


Nos bairros pobres da capital ugandense, a esperança volta a florescer entre um grupo de mulheres portadoras do vírus da Aids. A história de Rose e de suas amigas


de Gianni Valente



A colina de Kireka não é como as outras. Ao longo das sete colinas do centro de Campala, as residências dos ricos e os condomínios blindados dos estrangeiros e dos políticos ocupam firmemente os pontos mais altos. Parecem ilhas suspensas, a flutuar sobre o mar de lama, homens, chapas de metal e miséria que fervilha lá embaixo, nos slum encravados entre uma colina e outra, como se fossem amontoados de detritos acumulados no fundo do vale depois de algum temporal africano. Em Kireka, ao contrário, os barracos dos pobres, que cresceram em número inchados por ondas de refugiados de guerras esquecidas, tomaram também as áreas mais altas, deitando suas raízes até os limites irregulares da pedreira que, lá de cima, parece aberta como uma imensa ferida.
Nessa pedreira encontramos também Agnes, com seus filhos. Ela bate com a pequena marreta as grandes pedras que seu marido arrancou do paredão rochoso, para reduzi-las a calhaus e saibro que serão vendidos aos caminhões das empresas de construção. Normalmente, de manhã até a noite, o silêncio dessa charneca desolada é rompido apenas pelo som das batidas de marreta de mulheres e crianças acocoradas no chão, quebrando pedras por uns poucos trocados por dia, o mínimo suficiente para continuar a viver. Se você lhes pergunta como vai a vida, elas dizem com um fio de voz que as coisas têm piorado, que o preço dos alimentos aumenta todos os dias, mas o das pedras, não. Mas hoje, da trilha que sobe para o povoado, ouvimos vir um som diferente: coros e gritos, um crepitar de risadas, canções ritmadas. Até que, no anfiteatro rochoso, aparece um pequeno cortejo falante e festivo. Dezenas de mulheres com tambores de cabaça improvisados põem-se a dançar e a cantar bem ali, no meio desse formigueiro humano torrado pelo sol do Equador. A certa altura, até Agnes se deixa levar pela energia contagiosa: põe a marreta de lado, levanta a cabeça de seus pensamentos e começa a dançar. Quando Massimo a fotografa, ela começa a rir na sua cara, ao lembrar do dente que lhe está faltando bem na frente.
A pequena chusma de dançarinas canoras poderia parecer uma miragem originada de não sei onde. Mas, aqui, todos as conhecem: são Alali, Janet, Agnes e todas as outras mulheres do Meeting Point International. Elas também moram ali, nos barracos de argila, tijolos e telhas espalhados pela colina. Além da miséria de todo o mundo, elas têm em comum também o fato de terem sido contagiadas por essa peste que é a Aids. Grande parte delas acabou como pobres farrapos de gente, com trinta quilos, fantasmas que perambulavam entre as ruas e os montes de lixo, procurando comida, corpos dilacerados por infecções que esperavam morrer em silêncio, dobradas sobre si mesmas em algum canto pútrido. Quem expulsou a noite que já tinha envolvido suas vidas – como elas todas dizem – foi “Auntie Rose”. Mas ela, a “tia” Rose, diz que não, que isso não é coisa sua.


A barba de Deus
É claro que ela, em seu coração, gostaria de cuidar de todas. Foi por isso que estudou para ser enfermeira e obstetra: para cuidar de quem sofre e trazer as crianças à luz sãs e salvas. Mas, depois, as coisas escaparam para longe de suas intenções generosas. “Os doentes sumiam, não queriam tomar os remédios que eu lhes dava. As crianças que eu queria salvar, mandando-as para a escola, ficavam melancólicas; parecia que preferiam rolar no lixo. No primeiro dia de hospital, quando vi o sangue, desmaiei.” Que figura. Tinha ido para lá cuidar dos doentes e dos moribundos, mas foram justamente eles que se curvaram sobre ela, que a reanimaram e lhe deram uma nova esperança. Foi ela quem gozou de uma inesperada rajada de ternura. Exatamente como lhe acontecia quando ia encontrar Dom Giussani, seu grande amigo. “Quando o encontrava”, lembra Rose, “parecia mesmo que ele me esperava sabe lá desde quando. Eu chegava com a intenção de lhe falar de todos os meus problemas, mas, quando o via, o emaranhado dos meus pensamentos se desfazia já na porta de entrada, e eu não dizia nada. ‘Pense só’, me disse Dom Giussani uma vez, ‘mesmo que você fosse o único homem do universo, Deus teria vindo do mesmo jeito, para morrer por você! Só por você!’ Para mim, importava muito pouco saber o que era Comunhão e Libertação. Mas saber que Deus toma uma coisa que não é nada e a salva, que Deus viria ao mundo mesmo que fosse apenas por mim, é uma coisa que me comove sempre que eu penso. Quando saía da sala em que havia encontrado Dom Giussani, saía voando. Repetia comigo mesma: se um homem, um ser humano, limitado como eu, me quer tão bem assim, imagine Deus! Imagine Deus! Quando eu pensava em Deus, imaginava poder brincar, dizer gracinhas a ele, como com um avô, fazer trancinhas em sua longa barba. Mas os outros me diziam: você é imatura. Uma vez eu, encontrei Dom Giussani e lhe disse: Gius, meus amigos dizem que eu tenho uma fé imatura. Ele se levantou de repente, como se quisesse ir correndo bater em alguém: ‘Diga-me quem é! Diga-me quem é que diz isso! Se alguém diz que você é imatura, isso significa que ele é que é complicado!’”
O fato é que, depois daquela vez no hospital, começou para Rose também uma outra história. Imprevisível como uma graça nova. Como o céu de Campala, onde a chuva chega quando você menos espera.


A casa das crianças
Hoje, a casa de Kitintare também recebeu os boletins de fim de ano dos mais crescidinhos, que cursam o ensino básico. Todos passaram de ano. Rose vê um por um, semeando olhares de contentamento entre os pequenos heróis, que, um de cada vez, vão inchando o peito com um tímido orgulho. Quando seus pacientes começavam a morrer (“no início, era um desastre; perdíamos quatro ou cinco por semana”), seus filhos, inclusive os recém-nascidos, ficavam lá, abandonados, e Rose não sabia o que fazer. “No começo, eu ficava brava até com Jesus. ‘Você se esconde demais’, lhe dizia; ‘é por isso que depois as pessoas não creem em você. Além do mais, você me manda todos estes meninos, e eu não consigo nem lhes dar de comer; o que é que eu faço com eles?’” Hoje, a casa de dois andares é novinha em folha, os dormitórios vão-se enchendo aos poucos de beliches. Tudo pago pela verba para o desenvolvimento fornecida pelo governo Zapatero, imagine só! Em Kireka, a terra para construir uma pequena creche e uma escolinha, na qual os filhos dos pacientes de Rose poderão ser educados, foi doada por um politiqueiro do bairro. “Ele viu todo o trabalho que nós fazíamos aqui. Você pode fazer um projeto até em cima do nome de Jesus. Até o mal você pode fazer, usando o nome de Jesus. No entanto, pode fazer uma coisa grande, ingenuamente, sem pensar, seguindo instintivamente os movimentos do coração, e isso é abraçado pelo Senhor e se torna algo grandioso, mesmo que você o tenha feito sem um motivo bem claro.” Agora, em Kitintare, as crianças a abraçam. As mais novas, incluindo a recém-nascida que acabou de chegar, somam trinta. Entre elas

As coisas como vêm
Na Uganda, o HIV é apenas o último dos flagelos que vêm para espalhar morte e dor em meio a uma humanidade simples e cheia de vida, já martirizada por pobreza e doenças, guerras e massacres, políticos gananciosos e o medo dos maus espíritos. Em Campala, como em outras partes da África, muita gente aparece para oferecer sua solução ético-espiritual para os males do tempo. Há pouco chegaram também os atravessadores de milagres: as seitas pentecostais abriram entre os slum seus miracle centres e suas victory churches, em que pregadores importados dos EUA vendem bem suas receitas, como bruxos pós-modernos brincando com as expectativas e os medos dos pobres. Para eles o próprio paraíso é uma questão de sucesso, de método, é preciso adquirir a técnica, conhecer a fórmula mágica para extorquir milagres de Deus. Quem sabe se transformando em atletas do sofrimento, em recordistas do sacrifício.
Rose não vê as coisas assim. Não é a dor que produz o bem. “Para as pessoas cultas, devemos ser africanos primitivos. Mas não passa pelo coração humano querer a morte. O próprio Jesus teve medo. Ele disse: afaste-se de mim este cálice. Para alguém que sofre, o primeiro desejo é ser libertado do mal. Que alguém lhe dê um remédio que o cure. A dor e a morte são contrárias a nós.” Além disso, não é preciso muito esforço para encontrar as coisas de Deus. Elas aparecem sozinhas. Como o pôr-do-sol, que de vez em quando ela vai ver com suas amigas, de uma colina na estrada que leva para Entebbe: “Esses momentos duram pouco, mas são muito bonitos. O céu fica de todas as cores”. Ou como os cantos da região italiana dos Abruzos, que ela ouviu com seus amigos de lá, e dos quais gostou tanto que agora até os filhos de suas pacientes cantam em coro: So’ sajutu aju Gran Sassu, so’ remastu ammutulitu, me parea che passu passu se sajesse a j’infinitu... “Hoje”, conta Rose, “eles vão cantá-los até às mulheres que trabalham na pedreira. E elas deixam o martelo de lado e param para ouvir as belas canções dos Abruzos”. Como os guaranis das missões jesuíticas da América do Sul, que cantavam cantos latinos. E não é preciso explicar nada. “Porque as coisas bonitas tocam por si mesmas. Não precisam de tradutores. O Mistério fala uma língua que todos entendemos.”
O coral canta uma outra canção, desta vez em inglês: “Não posso caminhar”, cantam os jovens amigos de Rose, “se não me pegarem pela mão. A montanha é alta demais, o vale é muito profundo”. Quando William morreu, era ainda um garotinho. Foram seus pais que lhe transmitiram a doença. Em seus últimos dias, pedia apenas que quando chegasse a hora Rose o segurasse pela mão, pois não queria morrer sozinho, como havia acontecido com seu pai. “Sempre me impressionou”, diz Rose, “aquela vez em que Jesus, diante da mãe que estava sofrendo pela morte de seu filho único, soube dizer apenas: ‘Mulher, não chores!’ Aquela reação, naquele momento, parecia quase um limite da onipotência dele. Mas é que ele, em primeiro lugar, tinha-se comovido. Deus se comove conosco, se desmancha, mais que o maior dos pais”. Talvez seja por isso também que um dia as amigas de Rose quiseram mudar a imagem estampada na camiseta do Meeting Point. “Eu tinha escolhido o Ícaro de Matisse. Tinha explicado a elas quem ele era, e o que significava aquele pontinho vermelho que o artista havia desenhado no lugar do coração.” O desejo de infinito, de voar até o sol... “Mas meus pacientes me disseram que eles não eram como Ícaro. Não gritavam nem morriam no vazio, como ele. Eles tinham visto que uma criança órfã, mesmo quando brinca, brinca com maior timidez, com menos liberdade e imaginação que as crianças que têm pai e mãe. Eu respondi que era verdade. Perguntei que imagem nova eles sugeriam. E eles disseram: queremos aquela de Pedro e João correndo para o túmulo de Cristo ressuscitado.”


Pérolas de papel
É possível intuir também que Deus se comoveu com essas pessoas pela maneira como as mulheres do Meeting Point se comovem com as crianças que já não têm pais. Rose diz que “em Kireka nunca ninguém diz: não temos comida nem para nós, não podemos ajudar os outros. Se uma criança pequena fica sozinha, elas disputam: eu fico com ela, eu fico com ela!” Em Naguru, na pradaria onde vemos o galpão de madeira ao lado da igreja de São Judas Tadeu, que abriga outras pacientes do Meeting Point, também não há uma montanha de discursos. Nenhuma dessas mulheres tenta dar lições de vida; nenhuma delas assume a postura de quem já viu de tudo e sabe de tudo. Por intermédio dos hóspedes que vêm de Roma (“foi meu grande amigo padre Giacomo os mandou”, diz Rose, apresentando-os às outras), todas – inclusive as muitas muçulmanas e animistas do grupo – mandam um abraço para o Papa, na volta para casa. Quando são obrigadas a falar, apenas agradecem a Rose por coisas elementares e muito concretas: os remédios antirretrovirais que ela lhes dá na enfermaria, a rede de adoções a distância que ela criou com os amigos da Avsi para que as crianças pudessem frequentar a escola, o microcrédito que permitiu a muitas delas abrir pequenas lojas e comprar utensílios e materiais para suas pequenas manufaturas. Algumas recolhem papel pelas ruas, cortam-no em tiras longas e finas, que enrolam ao redor de uma agulha, e, com um pouco de cola e de tinta, aparecem colares bonitos, que um amigo conseguiu levar até para as lojas ultraluxuosas de Milão. Agnes voltou a costurar roupas. Dorina, que fugiu da guerra no norte do país com seus três filhos, e ainda lembra quando apanhavam comida no lixo, hoje come bem, e como... E temos Vicky, a mais bonita, que diz de si mesma, sem raiva nem orgulho: “Se vocês nunca viram um milagre, aqui estou eu: porque eu estava morta e voltei à vida”. Por tudo isso, quando estão juntas, elas se soltam e cantam e dançam as danças das aldeias, riem, brincam umas com as outras como meninas um pouco sapecas. É seu modo extremamente africano de festejar e agradecer pelo contágio de vida boa, de vida curada, que as uniu e as fez florescer outra vez. Em seus teatros improvisados, brincam com a morte que quase já as havia apanhado. Disputam entre elas divertidas partidas de futebol, e têm até plateia. O galpão de ex-moribundas tornou-se um ponto de encontro também para as pessoas que querem se divertir e vêm tomar um gole de alegria, depois de um dia de cansaço, num lugar onde a vida é bela.
Já são mais de quatro mil os pacientes e as crianças atendidos por Rose e seus amigos do Meeting Point International. Todos agradecem a ela, mas Rose diz que “aqui não há chefes; se eu não estivesse aqui, eles continuariam do mesmo jeito”. Aliás, hoje ela é que ficaria a vida inteira ouvindo as histórias deles, vendo como se ajudam e se consolam nos barracos de Kireka, sem dar pena, com paz no coração. Hoje, enfim, são eles que continuam em frente, e ela se deixa levar, deixando-se tomar pela mão. Como diz outra canção que os jovens cantam sempre: “Olha para o céu, que nos promete. Embora o Traidor nos odeie, temos a esperança de chegar em casa. Olha para esta terra cheia de dor: choramos, mas somos fortes, pois Jesus ressuscitará e nos levará para sua casa”. “Eu”, diz Rose, falando de si mesma, “sigo adiante engatinhando, como as crianças pequenas. Hoje estou como estava ontem, ou melhor, estou pior. Mas saber que Deus vem do mesmo jeito, que me toma e me salva do mesmo jeito, que vem por mim, pelo meu nada, me dá vontade de chorar. Não tenho nada a dar a você. Mas, mesmo assim, leve o que eu tenho”.


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