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RESENHA
Extraído do número 05 - 2010

A grande concepção pelagiana: o cristianismo é uma educação


“É evidente que Jonas simpatiza com a concepção de Pelágio, pois sente-o mais próximo do estoicismo e de um certo tipo de judaísmo. De fato, depois de ter dito que para Pelágio a graça de Cristo consiste em ‘estímulos para a vontade, não em auxílio ativo’ e que ‘não são uma transformação do homem, mas uma educação do homem’, exclama admirado: ‘Essa é a grande concepção pelagiana’. Esse é o ponto crucial do livro e do pensamento de Jonas”. Resenha do texto inédito de Hans Jonas, Problemas de liberdade, escrita por Nello Cipriani


de Nello Cipriani


Hans Jonas, <I>Problemi di libertà</I>, organizado por Emidio Spinelli, Turim, Nino Aragno Editore, 2010, 466 pp.

Hans Jonas, Problemi di libertà, organizado por Emidio Spinelli, Turim, Nino Aragno Editore, 2010, 466 pp.

No início do ano, a editora italiana Aragno publicou uma obra até então inédita do filósofo de origem judaica Hans Jonas (1903-1993), em edição organizada por Emidio Spinelli, com texto original em inglês no apêndice e tradução para o italiano de Angela Michelis. O livro, intitulado Problemi di libertà (Problemas de liberdade), reúne uma série de conferências proferidas por Jonas na “New School for Social Research”, de Nova York, no primeiro trimestre de 1970. Nessas conferências, o filósofo faz uma análise aguda do modo como a ideia de liberdade se desenvolveu, primeiramente na filosofia grega, sobretudo aristotélica e estoica, e em seguida no cristianismo, passando pelo judaísmo. As seis primeiras conferências são dedicadas a aprofundar e explicar o conceito de liberdade dos filósofos gregos; a sétima salienta as novidades introduzidas pelo judaísmo; as sete conferências seguintes analisam o pensamento de São Paulo contido no capítulo 7 da Carta aos Romanos e, sobretudo, o pensamento de Santo Agostinho.
São particularmente interessantes as páginas em que Jonas, partindo da doutrina da criação, aprofunda a diferença entre “a concepção judaico-cristã do homem e a concepção grega clássica, que tinha os estoicos como representantes”. Na filosofia estoica, que vê o mundo dominado pelo fatalismo, “o problema da liberdade se traduz em alcançar o máximo possível de independência interior, com uma espécie de recusa da relevância do engajamento exterior do homem” (p. 92). O mundo é visto como um ser vivo absolutamente autossuficiente, capaz, pela ação do logos imanente, de reconduzir à ordem todos os conflitos que nele acontecem em consequência do devir ininterrupto das coisas. O homem é algo como uma síntese do mundo em que vive: pelo uso da razão, ele também pode dominar todas as tensões exteriores que ameaçam sua tranquilidade interior. Logo, para os estoicos “a verdadeira liberdade do homem consiste no que eles chamam seu completo poder de assentir ou dissentir ante tudo o que se apresenta” (ibid.). Depende unicamente de mim “dizer sim ou não, aceitar ou recusar”, e esse poder “é alcançado mediante um processo de autoeducação interior e autodisciplina” (ibid.). Enfim, a moralidade dos estoicos, segundo Jonas, é “muito corajosa, e afirma a liberdade humana diante do Fado, ao mesmo tempo em que insere a dimensão da relevância no ego racional do homem” (p. 93).
Com a crença na criação, ensinada pela Bíblia judaica, o mundo e o homem perdem a autonomia e a autossuficiência: todas as criaturas devem sua existência ao Deus criador. Todavia, o homem, segundo o Gênesis, foi criado à imagem de Deus e, dessa forma, tornou-se capaz de governar as outras criaturas e de discernir entre o bem e o mal. O fato de ser feito à imagem, observa Jonas, “significa que o homem pode ‘vir a ser’ um certo tipo de homem, pode ‘transformar-se’, desde que faça uso apropriado desse poder, já que a faculdade de discernir entre o bem e o mal não é simplesmente o poder intelectual de reconhecer o bem e o mal, mas um poder de escolha, uma capacidade de escolha” (p. 113). “Assim, a liberdade da vontade moral do homem representa o pressuposto fundamental da possibilidade de conformação do homem ao seu original divino” (p. 114). No judaísmo, portanto, “o homem é um ser extremamente problemático” (ibid.): tem a capacidade de ser filho de Deus, mas, também, de ser o oposto disso. O fato de ter sido criado à imagem de Deus implica ter de ser santo como Deus é santo. Foi com essa finalidade que a lei foi dada ao povo judeu, lei esta que foi “imposta ao homem como uma obrigação e um fardo, e ao mesmo tempo como uma grande concessão à sua estatura limitada” (p. 116). Com a lei, porém, surge um outro grande problema para quem crê: “Como posso enfrentar o exame de Deus, a cujos olhos nada está oculto? Essa é a origem de uma concepção que terá tremendas consequências na história da autocompreensão humana: a concepção da existência de um Ente diante do qual nada é oculto, de forma que o que me pode agradar quando penso em mim mesmo ou aquilo que me pode fazer satisfeito comigo mesmo pode não ser verdadeiro aos olhos desse Ente que a tudo vê e por nada é corrompido ou enganado [...]. Os profetas judaicos foram os primeiros a descobrir que não existe apenas o lado objetivo da lei, podendo ser acompanhado de uma indiferença para com Deus ou de um espírito afastado da verdadeira vontade de Deus [...]. É a partir desse ponto que o problema cristão do ‘si mesmo’ do homem e da liberdade humana vieram a ser formulados, primeiramente por Paulo e mais tarde por Agostinho” (pp. 117-118).
Segundo Jonas, o apóstolo Paulo teria diminuído o valor salvífico da lei, para exaltar a cruz de Cristo. Para tanto, ele teria acentuado o orgulho inerente ao homem, que leva até mesmo aquele que busca ser justo diante de Deus a arrogar-se o mérito de sua justiça, numa forma de autocomplacência. E esse orgulho inato se originaria da corrupção de nossa natureza, produzida pelo pecado de Adão, o primeiro homem. “Assim”, observa Jonas, “o problema cristão da liberdade repousa nesta doutrina de base não empírica, não filosófica, inverificável, em certo sentido atroz, mas ao mesmo tempo grandiosa, da impossibilidade de que a natureza humana seja ajudada diante do Mandamento moral” (p. 120). Se fôssemos capazes de cumprir a lei, não somente na letra, mas no espírito, poderíamos obter sozinhos a nossa salvação, mas Cristo, assim, teria morrido em vão. “No credo judaico”, continua, “a lei, com todas as ciladas que pode ter, oferece todavia os meios para satisfazer o que Deus exige do homem, que não está além das capacidades do próprio homem. O cristianismo é que abre aí um abismo. Cada ser humano carrega de certa forma um abismo em si mesmo, o abismo do pecado original, que sempre envenena tudo o que procuramos fazer, se contarmos apenas com nossas forças [...]. Só a graça dá a possibilidade de uma anistia” (pp. 120-121). Jonas reconhece que alguns rabinos também especularam sobre a “queda” de Adão. E admite que “com certeza já não estamos no paraíso, e a humanidade labuta e sofre, e tudo isso é consequência da ‘queda’”. Todavia, “essa consequência nunca foi entendida no sentido extremo de que com a ‘queda’ de Adão todos tenhamos perdido nossa capacidade moral. O modo de ser humano continua essencialmente o mesmo, e, por mais que já não seja inocente, o homem conservou o poder da livre escolha” (p. 121).
Com Paulo, acaba essa certeza, e o desenvolvimento da questão a que ele dá início conclui-se com Agostinho. Estaria aqui, para Jonas, o ponto de ruptura do cristianismo paulino e agostiniano com o estoicismo e o judaísmo: a negação do poder da livre escolha. Em mais de um momento, Jonas reprova a atitude do bispo de Hipona de forçar o pensamento de Paulo, levando-o a dizer algo que não diz. Na polêmica antipelagiana, levado por sua experiência maniqueísta anterior, Agostinho teria acentuado o pessimismo paulino, levando-o às últimas consequências. Mas a tese que Jonas propõe em diversos momentos do texto é que esse tipo de cristianismo encontrou resistências mesmo dentro da Igreja, sendo, aliás, desconhecido até mesmo de Cristo: “Os sermões e as célebres palavras do Senhor não formam, em si, a doutrina da Igreja. A doutrina da Igreja diz respeito ao papel desse Jesus, concebido como o Cristo que veio para a salvação do homem” (pp. 130-131).

O rei Davi e a Apresentação de Jesus no Templo, portal maior da Catedral de Fidenza (Parma) [© Foto Scala, Firenze]

O rei Davi e a Apresentação de Jesus no Templo, portal maior da Catedral de Fidenza (Parma) [© Foto Scala, Firenze]

Que dizer de tudo isso? A primeira coisa que devemos observar é que a leitura que Jonas fez de Agostinho é inexata em muitos pontos. Ele considera que Agostinho, num primeiro momento, no período antimaniqueísta, teria reconhecido no homem sob a lei, no judeu, uma vontade boa, entendida como amor à justiça, mas que depois, sob pressão dos pelagianos, teria negado tal vontade ao homem, depositando-a na graça; assim, ficaria explicado por que, nas palavras de São Paulo: “A lei é espiritual; eu, porém, sou carnal” (Rm 7, 14), Agostinho já não vê apenas o homem sob a lei, o judeu, mas também o homem sob a graça, o cristão e o próprio apóstolo. Contudo, como eu dizia, há muitas inexatidões nessas afirmações.
Em primeiro lugar, é preciso deixar bem claro que o homem sob a lei, tomado em consideração por Agostinho, não é propriamente o judeu, em contraposição ao cristão, que seria o homem sob a graça. Para Agostinho, todo homem carnal está sob a lei, e o cristão, ainda que tenha sido tornado um ser espiritual no batismo, pelo dom do Espírito, permanece “sob a lei quando se abstém da obra do pecado por temor ao castigo com que a lei o ameaça, e não por amor à justiça, não estando ainda livre e desapegado da vontade de pecar” (De natura et gratia contra Pelagium 57, 67). Agostinho dá uma confirmação desse seu modo de pensar na exortação feita aos monges de seu mosteiro a que observem a regra “não como servos sob a lei, mas como homens livres, sob a graça” (Regula ad servos Dei 8, 48). Portanto, os cristãos também podem estar sob a lei, mesmo tendo sido chamados a passar para o regime da graça, a crescer no amor e na liberdade interior, com a ajuda da graça de Deus e o esforço pessoal. Além do mais, Agostinho sempre reconheceu a existência de homens espirituais no antigo Israel, como “os patriarcas, os profetas e todos aqueles israelitas por obra dos quais o Espírito Santo nos concedeu o auxílio e o conforto das Escrituras” ( De doctrina christiana III, 9, 13). Sendo assim, no pensamento de Agostinho, não é possível identificar o homem sob a lei com o judeu e o homem sob a graça com o cristão.
Em segundo lugar, a vontade boa, que no período do presbiterato Agostinho reconhecia como faculdade do homem sob a lei, do homem carnal, não consiste no amor a Deus e à justiça, como Jonas procura mostrar várias vezes, forçando o pensamento do autor cristão (cf. pp. 171-173 e p. 182); consiste, isto sim, em querer evitar o pecado ou observar a lei por temor ao castigo, atitude que não suprime a vontade de pecar. Isso fica claro, ainda, quando constatamos que já no período antimaniqueísta, antes de se tornar bispo, Agostinho atribuía à graça o amor a Deus e à justiça. De fato, escrevia ele no comentário a Rm 5,3: o Apóstolo “diz que essa caridade [o amor a Deus], nós a temos por dádiva do Espírito, e demonstra que todos os bens que poderíamos atribuir a nós mesmos, nós os devemos atribuir a Deus, que mediante o Espírito Santo dignou-se conceder-nos a graça” ( Expositio quarumdam propositionum ex Epistola ad Romanos 20). Na revisão de suas obras, Agostinho observa que mesmo “nos livros Sobre o livre-arbítrio, que não foram escritos contra os pelagianos, que ainda nem existiam, mas contra os maniqueístas, não me calei totalmente a respeito da graça de Deus, que os pelagianos procuram eliminar com execrável impiedade” (Retractationes I, 9, 4).
Em terceiro lugar, a mudança no pensamento agostiniano acerca da origem da vontade boa movida pelo temor aos castigos, contrariamente ao que Jonas afirma, não ocorre em meio à polêmica com Pelágio e sob pressão dela, mas muitos anos antes. Já no início do episcopado (396-397), respondendo a certas questões que lhe foram dirigidas por Simpliciano, mestre de Ambrósio e sucessor dele na cátedra de Milão, Agostinho, após retomar as palavras de São Paulo: “Realizai a vossa salvação, com temor e tremor. Na verdade, é Deus que produz em vós tanto o querer como o fazer, conforme o seu agrado” ( Fl 2, 12-13), comenta: “Paulo, aqui, mostra claramente que a própria boa vontade também é suscitada em nós por Deus”, e pouco depois acrescenta: “Se perguntarmos se a boa vontade é dom de Deus, acharemos estranho que alguém ouse negá-lo” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum, I, 2, 12). Na realidade, bem antes do advento de Pelágio, Agostinho já se convencera de que a boa vontade é ao mesmo tempo obra de Deus e obra do homem, pois “de um modo Deus concede o querer, de outro aquilo que pedimos. Quis Deus que o querer fosse obra sua e nossa: sua, chamando; nossa, seguindo o chamado” (ibid. I, 2, 10).
Enfim, é verdade que só durante a polêmica com os pelagianos Agostinho admitiu que no ‘eu’ de Rm 7, 14 é possível entender também o homem sob a graça, portanto o próprio São Paulo, mas, como ele mesmo afirma, deu esse passo não porque obrigado pelos argumentos pelagianos, mas porque achou que outros respeitados comentaristas da Escritura, em particular Cipriano e Ambrósio, já tinham feito essa exegese (Retractationes, I, 23, 1). Por outro lado, repito, a mudança em seu pensamento não consistiu em tirar a boa vontade do homem sob a lei, boa vontade que, já havia tempo, reivindicara à graça de Deus. Agostinho simplesmente se deu conta de que todos os homens, até os mais espirituais, como certamente era São Paulo, enquanto ainda vivem no corpo mortal não chegaram à paz perfeita, e necessariamente estão sujeitos à tentação. O próprio Apóstolo dá testemunho disso quando escreve que ainda não chegou à perfeição e que avança para o que está adiante ( Fl 3, 12-13), mas sobretudo quanto confessa que “para que a grandeza das revelações não me enchesse de orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, para me esbofetear, a fim de que eu não me torne orgulhoso. A esse respeito, roguei três vezes ao Senhor que ficasse longe de mim. Mas o Senhor disse-me: ‘Basta-te a minha graça; pois é na fraqueza que a força se realiza plenamente’” (2Cor 12, 7-9).

“Agostinho sempre reconheceu a existência de homens espirituais no antigo Israel, como ‘os patriarcas, os profetas e todos aqueles israelitas por obra dos quais o Espírito Santo nos concedeu o auxílio e o conforto das Escrituras’ (De doctrina christiana III, 9, 13). Sendo assim, no pensamento de Agostinho, não é possível identificar o homem sob a lei com o judeu e o homem sob a graça com o cristão”
Como podemos constatar, a reconstrução do pensamento agostiniano feita por Jonas deixa muito a desejar. Há diversas imprecisões, sobre pontos que não são de pouca importância. Seja como for, suas conferências suscitam algumas questões, às quais vale a pena dar uma resposta. Em primeiro lugar: por que Santo Agostinho chegou a defender a tese de que os primeiros passos na fé (o initium fidei) e a boa vontade são também obra da misericórdia de Deus, além de esforço do homem, se, anteriormente, acompanhando outros autores eclesiásticos, assinalara esses fatores como dependentes apenas da vontade do homem? Jonas, como eu já disse, repete mais de uma vez que a mudança no pensamento do bispo de Hipona se deve à pressão pelagiana (p. 180), chegando a falar mesmo de “uma armadilha pelagiana”, em que Agostinho teria caído (p. 182). Ao contrário, vimos que a mudança ocorrera muito tempo antes que Pelágio aparecesse em cena. Na realidade, a razão da mudança é indicada pelo próprio Agostinho na resposta a Simpliciano. Na exegese da Carta aos Romanos, escreve: “O que mantém a intenção do Apóstolo e de todos os justificados, por intermédio dos quais nos foi mostrado o significado da graça, é o fato de que ‘quem se gloria, glorie-se no Senhor’ ( 1Cor 1, 31)” (De diversis quaestionibus ad Simplicianum I, 2, 21). Comentando essas palavras do Apóstolo, explica Agostinho numa de suas últimas obras, São Cipriano, bispo de Cartago e mártir, entendeu-as no sentido de que “não nos devemos gloriar de nada, pois nada é nosso” (De dono perseverantiae 14, 36). Foi sobretudo essa exegese de Cipriano das palavras de São Paulo, portanto, que iluminou e levou Agostinho a negar a autonomia da vontade humana em relação ao bem. Ele compreendeu que todos os bens que o homem possui e todo o bem que o homem realiza vêm de Deus, ainda que de maneiras diferentes. Enquanto Pelágio exortava a jovem e nobre Demetríade a sentir-se orgulhosa de suas virtudes, pois estas são bens que pertencem apenas ao homem, Agostinho repetia com São Paulo: “Quem se gloria, glorie-se no Senhor” ( 1Cor 1, 31). O homem não se pode gloriar de nada, não pode alegar nenhum mérito diante de Deus; deve ser sempre grato a Deus, “doador de todo bem” (Regula ad servos Dei 8, 49). Isso não significa que o homem nada faça: sem sua vontade, não pode crer, não pode amar nem muito menos realizar nenhuma boa obra. Mas a vontade humana não se dirige ao bem, se não “é preparada pelo Senhor” (Pr 8, 35, segundo a Setenta).
Jonas reconhece que a questão de que trata Agostinho pertence à fé e não à filosofia. Aliás, avança demais nessa linha, quando afirma categoricamente que “a atitude do filósofo deve ser a de não crer” (p. 198). Ora, não compreendemos por que o filósofo não deveria crer, como se a fé não tivesse suas razões. O filósofo também pode razoavelmente crer e buscar compreender, com a razão, o conteúdo da fé. Era justamente esse o princípio da reflexão agostiniana: crê para compreenderes ( crede ut intellegas). Todavia, concordo com Jonas quando ele acrescenta que “não é possível dar [...] um significado fenomenológico à afirmação: ‘Meu estado presente é caracterizado pelo amor de Deus derramado em meu coração pelo Espírito Santo’” (ibid.). Todavia, justamente porque nos encontramos diante de problemas de fé, a meu ver ele deveria ter investigado mais a fundo o pensamento de Agostinho, tomando por base o ensinamento bíblico e a tradição cristã. É evidente, porém, que Jonas simpatiza com a concepção de Pelágio, pois sente-o mais próximo do estoicismo e de um certo tipo de judaísmo. De fato, depois de ter dito que para Pelágio a graça de Cristo consiste em “estímulos para a vontade, não em auxílio ativo” e que “não são uma transformação do homem, mas uma educação do homem” (p. 204), exclama admirado: “Essa é a grande concepção pelagiana” (ibid.).
“Pelágio não apenas negligenciava um aspecto essencial do cristianismo, mas não reconhecia também certos elementos essenciais da experiência religiosa do antigo Israel, pois, já nos livros do Antigo Testamento, Deus é visto não apenas como o educador de seu povo, mas também como aquele que ajuda, renova e transforma os corações dos homens”
Esse é ponto crucial do livro e do pensamento de Jonas. Ele não tem dificuldade alguma em admitir que Deus possa ajudar ao homem mediante um ensinamento moral e o perdão dos pecados, mas, ao lado dos pelagianos, opõe-se fortemente à ideia de que Deus possa agir sobre a vontade para transformá-la (cf. p. 176). “Para Agostinho”, escreve, “o amor divino se torna uma espécie de poder mágico no próprio homem [...]. O amor divino é um poder transfigurador ou transformador sem o qual o homem estaria ainda perdido, apesar da revelação dos Evangelhos e do chamado à fé” (pp. 195-196). O que Jonas mostra não ter entendido, como Pelágio e seus seguidores, é que a experiência cristã não consiste na observância, radical o quanto quisermos, de uma moral imposta de fora e observada sempre sob a ameaça de um castigo ou pela promessa de um prêmio. A experiência cristã consiste num encontro pessoal com Deus, numa relação filial com Ele, pela qual a pessoa que crê faz tudo em Seu louvor. Pelágio, além dos dons concedidos por Deus à natureza humana ( gratia creationis) e do dom da lei mosaica, admitia uma graça de Cristo, que consistia no ensinamento e no exemplo da perfeita justiça, ou seja, no amor aos inimigos. Santo Agostinho também reconhece esses tipos de graça. Mas não os considera suficientes. Jesus Cristo, para ele, não é apenas o maior mestre e o mais perfeito modelo de justiça: é o amigo e o irmão que deu a vida por nós e nos chama a viver com Ele, por Ele e n’Ele, para a glória do Pai. Crer em Cristo, dizia, é amá-Lo, unir-se a Ele e fazer-se membro de Seu corpo, que é a Igreja (cf. Sermones 144, 2, 2). Para viver uma experiência tão elevada e envolvente, não bastam a obediência e a imitação, é necessária a comunhão pessoal, que nasce e é alimentada pelo amor, dom do próprio Cristo. Em outras palavras, em Cristo se revela o desígnio do Pai de n’Ele reunir os homens mediante o dom de seu Espírito, que derrama Seu amor nos corações (cf. De Spiritu et littera 29, 50). Não podemos compreender a doutrina agostiniana da graça sem a considerar à luz dessa revelação, completamente negligenciada por Pelágio.
Jonas admite que “Agostinho não errava ao sentir que [na posição de Pelágio] há alguma coisa não [...] totalmente cristã” (p. 181). A meu ver, porém, poderia e deveria ter dito mais. Pelágio não apenas negligenciava um aspecto essencial do cristianismo, mas não reconhecia também certos elementos essenciais da experiência religiosa do antigo Israel, pois, já nos livros do Antigo Testamento, Deus é visto não apenas como o educador de seu povo, mas também como aquele que ajuda, renova e transforma os corações dos homens. Basta lembrar a oração do salmista: “Cria em mim, ó Deus, um coração puro, renova em mim um espírito resoluto” ( Sl 51, 12), ou a outra: “Firma meus passos segundo tua promessa e não deixes que me domine maldade alguma” (Sl 118, 133). Aqui e em outros textos semelhantes o salmista não roga ser instruído no caminho que deve percorrer, mas pede a Deus que renove seu coração, para que não ceda ao mal. Não é só Agostinho quem recorre frequentemente à oração dos salmos para afirmar a necessidade da graça, mas a esta apela também o papa Inocêncio, para denunciar o erro dos pelagianos. Escreve Inocêncio numa carta aos bispos africanos: “Ora, os heréticos que afirmam a inutilidade da graça devem necessariamente condenar as orações do salmista. Afinal, Davi deveria ser acusado de não saber como se deve rezar e até de não conhecer a própria natureza, pois, admitindo que soubesse que a natureza conserva em si mesma a capacidade de fazer o bem, por que se prostra diante de Deus em oração e lhe roga não só que o ajude, mas também que o ajude constantemente? Por que lhe pede que não volte seu olhar para longe dele, e em todo o saltério exalta e invoca a ajuda de Deus?” ( Epistolae 181, 6, no epistolário agostiniano).
Às orações do saltério acrescentam-se as profecias dos antigos profetas. No livro de Jeremias, ressoa o anúncio de uma nova aliança, graças à qual Deus porá suas leis nos corações e as escreverá na mente dos homens (cf. Jr 36, 32). O profeta Ezequiel é ainda mais preciso: nos tempos messiânicos, Deus dará aos israelitas um coração novo, tirará deles o coração de pedra e lhes dará um coração de carne, pois porá Seu espírito dentro deles, de modo que vivam segundo Seus estatutos e observem e ponham em prática Suas leis (cf. Ez 36, 26-27). Ora, são justamente esses textos proféticos que confirmam Agostinho em sua doutrina. Escreve no De Spiritu et littera: “O que são, portanto, as leis de Deus, escritas pelo próprio Deus no coração, senão a presença do Espírito Santo, que é o dedo de Deus, por cuja presença é derramado em nosso coração o amor que é a plenitude da lei e o cumprimento do preceito?” (De Spiritu et littera 21, 36). Evidenciando as diferenças entre o Antigo e o Novo Testamento, ele diz: “A lei ali é escrita nas tábuas, aqui nos corações, para que o que ali os atemorizava, de fora, produza aqui prazer por dentro; 1280764153956">Ainda menos feliz é a tentativa de opor o ensinamento da Igreja ao de Cristo, ou de ver no cristianismo uma corrente paulina e agostiniana contraposta aos Evangelhos ou a outros escritos do Novo Testamento. Jonas deposita na influência maniqueísta a razão pela qual Agostinho apresenta Cristo como médico, e a graça, como remédio que cura (cf. pp. 142-143). Mas, no Evangelho de Mateus, é o próprio Jesus quem diz: “Não são as pessoas com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Não é a justos que vim chamar, mas a pecadores” ( Mt 9, 12-13). Na sua reflexão sobre a graça, o bispo de Hipona dá um grande destaque às petições contidas na oração do Senhor, que encontramos nos Evangelhos sinóticos: “Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal”. Pelágio, observa Agostinho, “deposita a misericórdia e o socorro medicinal do Salvador unicamente no fato de Deus nos perdoar os pecados que cometemos no passado, e não no fato de nos ajudar a evitá-los no futuro. É aqui que ele erra gravemente: embora não perceba, ele nos afasta da vigília e da oração para que não caiamos em tentação, afirmando que está absolutamente em nosso poder impedir que isso aconteça” ( De natura et gratia contra Pelagium 34, 39). Afirmações ainda mais fortes sobre a ação de Deus no homem são lidas no Evangelho de João. Ali, Jesus diz: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrair” (Jo 6, 44), palavras que fazem Santo Agostinho exclamar: “Admirável exaltação da graça!” (In Evangelium Ioannis XXVI, 2). Ainda no mesmo Evangelho, Jesus diz: “Eu sou a videira e vós, os ramos. Aquele que permanece em mim, como eu nele, esse dá muito fruto; pois sem mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5).
São apenas alguns exemplos que mostram suficientemente, me parece, como não é possível, a respeito da doutrina da graça, opor, no interior do cristianismo, uma corrente paulino-agostiniana ao ensinamento de Jesus no Evangelho.
Para terminar, deixando de lado outras observações críticas que podem ser feitas, creio que é preciso reconhecer a Jonas o mérito de ter enfrentado o difícil tema da liberdade com coragem e paixão, chegando a algumas conclusões com as quais podemos concordar plenamente, como quando escreve que “o problema cristão da liberdade é na verdade o problema da subjetividade, que em sua pureza foi concebida apenas na filosofia do homem judaico-cristã, de um modo que não foi concebido na filosofia do homem greco-romana [...]. Segundo essa nova visão, o problema não se apresenta na relação do homem com a natureza ou com a sociedade exterior, mas na relação do homem consigo mesmo e com o absoluto. O problema, portanto, passa a ser o da vontade do homem, muito mais que o de suas ações. A problemática da vontade como lugar da liberdade do homem nasceu, portanto, com a guinada do paganismo para o cristianismo, e, na luta antipelagiana de Agostinho, alcança sua primeira grande forma determinante, que foi também, por alguns séculos, sua forma decisiva” (pp. 215-216).


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