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ISRAEL
Extraído do número 10 - 2010

“Da época de Jesus até hoje, nunca tivemos melhores relações”


Entrevista com Shimon Peres, presidente de Israel


Entrevista com Shimon Peres de Giovanni Cubeddu


Jerusalém, 21 de outubro

Papa Bento XVI e o presidente israelense Shimon Peres durante a recepção na residência presidencial em Jerusalém, a 11 de maio de 2009 [© Avi Hoaion/Gpo]

Papa Bento XVI e o presidente israelense Shimon Peres durante a recepção na residência presidencial em Jerusalém, a 11 de maio de 2009 [© Avi Hoaion/Gpo]

Senhor presidente, no ano passado o senhor recebeu Bento XVI em Jerusalém e, em setembro, visitou Castel Gandolfo para encontrá-lo novamente. Isso é um indício de seu julgamento positivo sobre o estado das relações entre Israel e a Santa Sé?
SHIMON PERES: Como sempre repito, as relações são as melhores possíveis nos últimos dois mil anos. Da época de Jesus até hoje, nunca tivemos relações melhores...
Antes de encontrar o Papa, o senhor afirmou que finalmente as duas partes têm a postura adequada em termos de liberdade e de compromisso mútuo.
Sim. Deixem-me em primeiro lugar dizer que o atual Papa é uma grande personalidade, profundo, um homem de pensamento. Deu uma nova densidade às nossas relações.
A religião é considerada um fato do céu, mas poderia também ser concebida como algo extremamente profundo, que não tem limites nem em altura nem em profundidade. Considero, porém, que hoje alguns princípios se estejam tornando muito claros: o fim do antissemitismo, que é uma doença, não uma ideologia e nem uma religião; a relação entre as religiões encabeçada pelo Papa, as suas visitas às sinagogas... Ele não é julgado pelo passado, será avaliado pelo futuro. Ele compreende bem, como todos nós, que hoje em dia igualdade não significa que cada um é idêntico ao outro; igualdade significa que cada um tem o direito de ser igual aos outros, mas também o igual direito de ser diferente. Assim, na medida em que a santidade da fé é preservada, as diferenças que nos dividem são entendidas. Essa é a atitude correta.
Nem a Santa Sé nem nós consideramos que um povo ou uma religião sejam um inimigo. Mas acreditamos que os fanáticos, sejam eles religiosos ou políticos, são um perigo. E isso, creio, interessa também à minoria cristã no Oriente Médio, treze milhões e meio de pessoas. Por outro lado, nós nos sentimos livres e gostaríamos de levar os cristãos a sentirem-se iguais e livres, a poder conservar seu livro de orações. Eu disse ao Papa que gostaríamos de fazer de Nazaré um lugar vivo que todos os cristãos possam visitar e aproveitar. Disse-lhe também que gostaríamos de ajudar a transformar em universidade o Colégio Cristão de Nazaré.
Em relação às questões relevantes que são objeto de negociação entre Israel e a Santa Sé, estas aos poucos vão-se resolvendo... É preciso mais tempo do que eu gostaria. Existem necessidades às quais não podemos responder segundo as expectativas da Santa Sé sem levar em conta que devemos fazer o mesmo em relação às outras denominações religiosas interessadas, e que o maior obstáculo é a existência de grupos religiosos que não se mostram tão amigáveis como a Igreja Católica. Creio, porém, que estejamos perto da conclusão [das negociações, ndr] e que a maioria dos problemas tenha ficado para trás.
Em Israel, há um debate em torno da obrigação de que os estrangeiros que pedem a cidadania prestem um juramento de lealdade a Israel, definido Estado judaico e democrático. Independentemente das diferentes argumentações, o conceito é garantir a coexistência entre a tradição religiosa de Israel e o impulso para a modernidade e a democracia. É isso mesmo?
Antes de mais nada, a meu ver Estado judaico significa que existe um estado em que os judeus são a maioria. Não podemos ter um Estado judaico sem essa condição. E isso é uma combinação entre o que é judaico e o que é democrático. Portanto, mais uma vez, devemos respeitar todas as outras religiões e todas as outras etnias. Isso está escrito em nossa Declaração de Independência, foi aprovado e está na nossa Carta Magna. Já o juramento... ainda não foi aprovado, está em discussão no Parlamento, há quem seja a favor e quem seja contra, e o próprio primeiro-ministro mudou um pouco a sua posição inicial sobre esse ponto. Não sei, tenho lido nos jornais que não haveria uma maioria favorável no Parlamento... Estamos falando de sensações. O fato principal é que ser um homem de fé é uma escolha do indivíduo, ser um Estado judaico exige a deliberação da maioria.
Quando Bento XVI visitou a sinagoga de Roma, em janeiro, o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, salientou que a expressão Terra Santa ou Terra prometida, em sua forma original, em hebraico, não significa de modo algum que a terra seja santa por si mesma, mas que é Eretz Hakodesh, ou seja, a terra d’Aquele que é Santo. O Papa citou Simeão, o Justo, que diz: “O mundo se fundamenta sobre três coisas: a Torá, o culto divino e os atos de misericórdia”. É possível traduzir isso em gestos políticos?
Acredito que esta seja uma questão existencial. Essa é a realidade. Certa vez, Karl Marx disse que, se quisermos conhecer o segredo dos judeus, não é preciso olhar para a sua fé, mas, se quisermos conhecer o segredo da sua fé, então será preciso olhar para os judeus. Isso significa que nós temos a fé como fundamento, e, sem ela, a nossa vida perde o seu principal significado. Nós não somos uma estrutura, uma organização. Somos um povo de fiéis que afirmou explicitamente, quando o mundo ainda era pagão, que existe um só Deus no céu e que a nossa escolha Suprema foi a de agir moralmente, como está explicado e escrito no mais extraordinário documento da história: os Dez Mandamentos, um texto de apenas 162 palavras que se tornou a base de toda a civilização ocidental, não apenas da judaica. Somos apegados a uma língua, a nossa língua hebraica, e somos apegados a uma terra, cujas fronteiras exatas não são designadas na Bíblia; e Sião, que é o coração de Jerusalém, é o nome do nosso movimento. Não podemos trancafiar o espírito numa prisão de definições. Devemos ter ar e céus abertos, mas também um compromisso. Há algum tempo, recebi um ex-primeiro-ministro russo; começamos a conversar sobre o que tinha acontecido no tempo dos bolcheviques e sobre o que ocorre hoje no Irã. Eu lhe disse que a “diferença é que os bolcheviques queriam criar um mundo sem deus, os iranianos um mundo sem homem, e essas duas coisas vão contra o que o senhor e eu afirmamos”. Já nós entendemos que existem duas diferentes categorias: a do divino e a do humano.
Shimon Peres com o xeque Mohammed Kiwan, por ocasião da ceia do Iftar, em conclusão do mês de Ramadã, na residência presidencial em Jerusalém, a 17 de agosto de 2010 [© Emil Salman/Jini]

Shimon Peres com o xeque Mohammed Kiwan, por ocasião da ceia do Iftar, em conclusão do mês de Ramadã, na residência presidencial em Jerusalém, a 17 de agosto de 2010 [© Emil Salman/Jini]

Nesse sentido, se olharmos para a história do pensamento judaico, veremos que não faltam personalidades que podem ser classificadas ou como messiânicas ou como realistas.
Na nossa história, foi Rambam, ou seja, Moisés Maimônides, o primeiro a mostrar que não existe contradição em sermos grandes na Torá e grandes na ciência médica. Uma pessoa pode ser cientista e autoridade religiosa sendo o mesmo homem. Ele disse algo que continua válido até hoje: a postura que temos diante da saúde é a mesma que temos diante da vida. A medicina é uma propensão à vida, ao valor da vida.
Em Israel, temos muitas pessoas para citar...
Do lado religioso, uma delas é o rabino Kook, que foi um grande líder religioso, extremamente respeitado e amado, e se tornou rabino-chefe de Israel. Ele ia a toda parte, tinha contato com as pessoas dos kibutzim, com os não religiosos e com aqueles que não tinham fé. E sempre repetia que o Senhor é um Senhor de misericórdia, não um deus cruel, e que cada um de nós é feito à Sua imagem. Que significa isso? Que cada um nasce à imagem de Deus, mas ninguém pode tornar-se Deus... Temos de lembrar disso! E o fato de cada um de nós ser feito à Sua imagem implica que cada qual deve caminhar com as próprias pernas, não esperar que Deus aja em seu lugar. O Senhor deu oportunidades iguais a cada um e espera que o homem aja corretamente, devidamente. A religião judaica ficaria sem significado se a opção moral deixasse de ser a coisa que mais importa.
Na lado leigo, eu citaria David Ben-Gurion. Ele costumava dizer que o judaísmo não é dat – (dat, em hebraico, significa religião), pois dat significa também juízo –, mas emunah, ou seja, . Ele fazia essa distinção. O rabino Kook e Ben-Gurion pertencem mais ou menos à mesma geração, a uma época de retomada, de renascimento. O que faltava a eles? É que, embora fossem admirados, não necessariamente todos concordavam com eles.
Eu responderia assim à sua pergunta, citando esses três personagens. Mas poderia também mencionar grandes pensadores cristãos, católicos e protestantes...
O senhor esperava que o presidente Obama recebesse o Nobel da Paz? No discurso de aceitação do prêmio, na Casa Branca, Obama falou da guerra “justa”. O senhor acredita que exista uma guerra “justa”?
O pensamento judaico sobre as guerras justas é muito simples. Se alguém vem para matar você, tente matá-lo antes que ele o mate. Essa é a posição dos nossos sábios no Talmude babilônico, e eles repetem essa regra quatro vezes em passagens diferentes. Fora esse caso, nenhum de nós tem o direito de matar. Esse é um dos Mandamentos, o sexto [segundo a tradição judaica, ndr]. E na obediência a essa norma não pode haver nenhuma negociação.
Pelo que diz respeito ao Nobel, creio que as pessoas tenham-se perguntado: o prêmio é um reconhecimento por resultados alcançados ou um convite a obtê-los, um encorajamento? Era cedo demais para dizer que Obama já tivesse alcançado alguma coisa, mas o que ele queria alcançar parecia realmente merecedor de apoio. Esse, para mim, é o verdadeiro significado da premiação. E considero também que com seus discursos ele tenha dado uma nova energia à Europa, à comunidade internacional e ao próprio mundo islâmico. Isso também é uma mudança. Assim, creio que ele tenha merecido o prêmio.
Depois das eleições legislativas nos Estados Unidos, o que Israel pode fazer para ajudar o presidente americano em seu esforço pela paz, e o que Obama pode fazer por Israel?
Fundamentalmente, nós estamos de pleno acordo... O que achamos que podemos fazer para ajudar Obama é chegar à paz, independentemente de todos os outros problemas, que são muitos. O problema central é a paz, pois, nas águas poluídas de um mundo sem paz, o terror e as ameaças podem nadar livremente. Queremos a paz verdadeira, especialmente porque, sem essa paz, não seremos capazes de alimentar as crianças. E, se você não as alimenta, sempre haverá uma nova guerra. Devemos fazê-lo pensando no nosso futuro. Em 1980, havia cento e cinquenta milhões de árabes no Oriente Médio. Trinta anos depois, são quatrocentos milhões. Nada aqui cresceu duas ou três vezes no mesmo intervalo de tempo: nem a produção de alimento, nem as possibilidades de trabalho e muito menos as carreiras... O que estamos fazendo? O que faremos? Nunca direi a ninguém que deixe de ter filhos, mas sempre digo a quem quer ter filhos: produzamos comida, pois as crianças desnutridas são um problema para vocês também. Em vez de gastar tanto dinheiro e recursos com mísseis, armas e aviões, façamos plantações em proveito dos pequenos. Israel é autossustentável e, como não temos terra nem água, a agricultura se baseia em tecnologia avançada e nossas colheitas são até oito vezes superiores às de qualquer outro território. Mas nós não acreditamos que possamos viver numa ilha de prosperidade em meio a um oceano de pobreza. O que acontecerá ao nosso redor terá efeitos sobre nós. Queremos olhar para a frente. Estou tentando organizar, da melhor maneira que posso, um movimento que será chamado “Food for Peace”, alimento pela paz. Estou realmente preocupado com quem tem fome e sou sensível ao fato de que hoje milhões de crianças podem morrer porque lhes falta o que comer e beber.
Sem entrar nos detalhes das negociações atuais entre Israel, Hamas e Fatah, faço uma pergunta simples: é possível ajudar a pobre população de Gaza? Isso não seria melhor também para Israel?
O que podemos fazer...? Eu já fiz a mim mesmo a mesma pergunta. Fui membro da Internacional Socialista, e era um de seus vice-presidentes. Éramos quinze membros, e catorze pediram que Yasser Arafat fosse admitido na Internacional. Eu representava uma minoria de um contra catorze. Os outros respeitavam a minha decisão, mas me tomaram de parte, reservadamente, e me disseram: “Ouça, estamos numa democracia: você é um e nós somos catorze. Por que se opõe?”. Respondi: “Não me oponho. Se me convencerem de que Arafat é um democrata e um socialista, estarei completamente ao lado de vocês. Mas, se querem aceitar um terrorista, então qual é o sentido da sua organização?”. E eles, o que fizeram? Deixaram-me sozinho e admitiram Arafat... Anos depois, eu, ele e Yitzhak Rabin recebemos o Prêmio Nobel da Paz.
Com o Hamas, hoje, é a mesma história. Eles tentam fazer pressão sobre nós. Mas nós não somos um problema. Deixamos Gaza e não queremos voltar para lá. Se o Hamas renunciar ao terrorismo e cessar o fogo, Gaza poderá ser reaberta. Não só reaberta... Por meio do Peres Center for Peace [Centro Peres pela Paz, organização não governamental fundada em 1996 por Shimon Peres, ndr], durante o período da retirada de Gaza, ajudamos a população, ensinando como cultivar a terra, construindo estufas para flores e morangos, investindo enormes recursos. Gostaríamos que prosperassem. No início era um refúgio. Depois do holocausto nazista, foi negada aos sobreviventes qualquer possibilidade de asilo. Havia impaciência para que houvesse um lugar em que os judeus pudessem entrar livremente. Os navios britânicos não permitiam que as pessoas chegassem até aqui. Ninguém queria os refugiados judeus. Hoje, porém, estamos começando a ser um Estado atraente, não apenas um refúgio. Mostramos que sabemos cultivar a nossa terra, defender o nosso país, e que podemos ser democráticos. Chegamos mesmo a absorver metade do povo judaico espalhado pelo mundo. Poucos dias depois do nascimento do Estado, éramos 650 mil; hoje somos sete milhões e meio, mas o componente judaico é dez vezes maior do que era naquela época. E creio que, se obtivermos a paz – como fizemos em relação ao Egito, à Jordânia e, provisoriamente, aos palestinos –, seremos o que realmente aspiramos ser: uma nação que dá uma contribuição ao mundo, não uma nação que precisa dessa contribuição.
Nestes dias é celebrada a memória de Yitzhak Rabin, ao se completarem quinze anos do seu assassinato. Na imprensa israelense, parece que cada um dá uma interpretação diferente da sua herança política.
Yitzhak Rabin foi fruto do Partido Trabalhista. Os trabalhistas punham a paz acima de seus próprios desejos – a paz, a igualdade, a liberdade, a tradição. Considero que Yitzhak tenha sido fiel a tudo isso. Dentro do mesmo Partido Trabalhista podiam-se encontrar diferentes correntes, mas isso é normal. Na época, a diferença básica entre a direita e a esquerda dizia respeito à posse da terra: uma parte defendia que a terra toda fosse mantida, não importa quais fossem as consequências; a outra dizia que era preciso dividi-la para obter a paz. Ben-Gurion foi o primeiro a dizer: “Sim, renunciarei a parte da minha terra, mas não renunciarei ao meu direito sobre a terra. O meu direito vem da história, o meu compromisso serve para justificá-lo”.
Foi David Ben-Gurion quem disse que “em Israel quem não crê nos milagres não é realista”. Se estivesse vivo hoje, diria a mesma coisa?
Ele afirmou algo muito pragmático, ou seja, que todos os especialistas são o que são graças a algo que já aconteceu. Ninguém é especialista do que poderia acontecer. Assim, a expressão “milagre” significa que podem acontecer coisas que você não pensava que pudessem ocorrer. Isso depende de seus esforços, de sua prontidão a sacrificar-se: essa era a visão dele... Ele era essencialmente um filósofo – um homem com uma vontade forte, com um carisma e uma capacidade de direção excepcionais. É célebre seu pensamento sobre Israel: “Nosso futuro depende de estarmos na posição justa e da nossa força. Mas estar na posição justa vem antes”. Ele queria a paz, a igualdade, investiu muito no estabelecimento de uma relação entre Israel e seus vizinhos árabes: estava pronto a pagar o preço mais alto. Quando as Nações Unidas decidiram pela divisão de Israel, deram-nos um pequeno pedaço de terra que tinha mais fronteiras que espaço. Todos criticaram o fato, mas ele o aceitou.
Eu não o conhecia, li sobre ele, e quando tinha 16 ou 17 anos me convenci do que ele dizia. Ele se levantava contra o comunismo com uma força incrível; diante das tendências de extrema esquerda, ele dizia: “Não precisamos de Karl Marx, nem de Lenin, nem de Trotsky. Nós temos os nossos profetas”. Não queria que nos chamássemos Partido Socialista: “Se tivermos de ter um nome, deveria ser Partido da Bíblia”. Queria retornar aos conceitos fundamentais para os quais os profetas da tradição judaica tinham chamado a atenção, ressaltava o fato de que eles falavam o hebraico, a língua das origens, a língua que realmente importa.
A dedicatória gravada na menorah que o senhor levou pessoalmente de presente a Bento XVI em setembro parece um reconhecimento a este Papa: “O Pastor que busca conduzir-nos aos pastos das bênçãos e aos pastos da paz”. E reflete um desejo.
Os judeus são essencialmente um povo insatisfeito. Um bom judeu nunca está satisfeito...
Por quê? Porque ainda não temos a perfeição de uma Suprema escolha de moralidade. Assim, nós temos de lutar, lutar e rezar, rezar, rezar. E essa é la spécialité de la maison, a “especialidade de casa”, se posso dizer assim. Ou seja, o que quero dizer é que nós temos corrido atrás do poder, da saúde, do domínio ou mesmo de nós mesmos... e sempre desejamos uma escolha moral. Se não formos fiéis a isso, trairemos o nosso próprio esforço fundamental.


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