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CAPA
Extraído do número 03 - 2004

EUA E SANTA SÉ. O longo caminho


A apresentação da segunda edição do livro em italiano* de Jim Nicholson, embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé, na Pontifícia Universidade Lateranense, em 31 de março de 2004. Os discursos do senador Giulio Andreotti, do cardeal Jean-Louis Tauran e do autor


Giulio Andreotti


A mesa dos conferecistas: a partir da esquerda, o senador Giulio Andreotti, o organizador do livro Giovanni Cubeddu, o cardeal Jean-Louis Tauran e o embaixador americano junto à Santa Sé, Jim Nicholson

A mesa dos conferecistas: a partir da esquerda, o senador Giulio Andreotti, o organizador do livro Giovanni Cubeddu, o cardeal Jean-Louis Tauran e o embaixador americano junto à Santa Sé, Jim Nicholson

GIULIO ANDREOTTI:
Nossa revista, 30Dias na Igreja e no mundo, ficou muito satisfeita por poder publicar, no vigésimo aniversário da instauração das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Santa Sé, a reconstrução histórica da longa vigília, tanto mais difícil de se compreender na medida em que as nunciaturas e relativas embaixadas, que, em 1939, eram 38, passaram de 108 a 172 ao longo do pontificado de João Paulo II.
Sua missão entrará para a história, senhor embaixador Nicholson, pelo fato de o senhor ter apresentado suas credenciais ao Sumo Pontífice poucas horas depois daquele 11 de setembro de 2001 que, com o massacre de Nova York, dava início a uma angustiante problemática global, no enfrentamento da qual ninguém pode se eximir de profundas reflexões e sacrifícios. Com sábio imediatismo, o presidente Bush declarou que Bin Laden é um traidor de sua religião, removendo, dessa forma, a tentação de uma cruzada antiislâmica, que talvez tenha sido o objetivo divisado pelos neoterroristas e buscado até agora.
Ao lado da análise histórica e de informações sobre aspectos precisos de grande atualidade, a segunda edição dessa monografia sai enriquecida por dois prefácios: o do cardeal Jean-Louis Tauran (um extraordinário urdidor da diplomacia pontifícia) e o do Secretário de Estado Colin Powell, a respeito do qual eu disse espontaneamente, há alguns anos, durante uma reunião da qual participava como chefe de Estado Maior, que parecia mais um diplomata que um militar.
Nossa revista, 30Dias, ficou muito satisfeita por poder publicar, no vigésimo aniversário da instauração das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Santa Sé, a reconstrução histórica da longa vigília, tanto mais difícil de se compreender na medida em que as nunciaturas e relativas embaixadas, que, em 1939, eram 38, passaram de 108 a 172 ao longo do pontificado de João Paulo II
Nas páginas de crônica do ensaio aparece uma avaliação singular sobre Pio IX. As grandes aberturas do início de seu pontificado foram comentadas com muito favor nos EUA, mas não a ponto de fazer com que fosse aprovado o comandante do navio Constitution, que, no porto de Gaeta, acolhera o Pontífice, que estava lá em exílio, para uma visita a bordo. O oficial foi preso e morreu durante o processo. Deve-se notar, talvez - e eu mesmo achei pistas disso, estudando Pio IX - que o povo americano, culturalmente, estava mais inclinado a compreender a República romana do que o Estado Pontifício e o autoritarismo das monarquias.
De resto, os refugiados que saíram do restaurado Estado do Papa tiveram ampla acolhida. Quem visita o prédio do Congresso, em Washington, admira o teto do grande auditório central: é obra do pintor Costantino Brumidi, que, com a volta de Pio IX, tomou seu rumo, como se costuma dizer, e encontrou do outro lado do oceano hospitalidade e encomendas de trabalho.
O temor sempre presente nos EUA, no que diz respeito ao relacionamento com Roma, é de que não se preserve com todo o cuidado a Constituição de qualquer discriminação ou infiltração religiosa. Atenção: esta não é de modo algum uma acusação de agnosticismo.
Quero lembrar aqui o presidente De Gasperi, que, quando voltou de sua viagem aos Estados Unidos, mesmo tomado pelos problemas de uma autêntica angústia quanto à sobrevivência na Itália, disse, extremamente comovido, que o que mais o impressionara na viagem fora uma inscrição no cemitério de Arlington, onde o Soldado Desconhecido é “desconhecido de todos, mas não de Deus”.
Na monografia do embaixador Nicholson, páginas de grande relevo são dedicadas à complexa construção da relação de que estamos falando. Assim, lá está a longa missão nos EUA do enviado pontifício, cardeal Satolli, no final do século XIX, com a sua dificuldade, que não foi pequena, para tecer a relação com o episcopado; lá está a reação completamente desequilibrada entre os que eram favoráveis e os que eram contrários ao envio do general Clark como representante americano estável em Roma (1069 cartas contrárias e apenas 186 favoráveis); lá se desvendam os procedimentos sutis utilizados para resolver ou impedir a solução dessa questão, apresentando-a como um problema de despesa pública, portanto domínio do Senado.
A história entrelaçada de dois grandes personagens - o presidente Roosevelt e Pio XII (que, aliás, começa ainda antes, quando o então cardeal Pacelli atravessa o Atlântico por desejo de Pio XI) - representa um momento de encontro, marcado pela busca de raízes comuns na política social de Roosevelt e na doutrina social da Igreja.
O governo americano foi um grande encorajador da não beligerância da Itália, aprovando os esforços do Vaticano nesse sentido, inclusive a visita do Papa ao Palácio Quirinal em dezembro de 1939, que pareceu, por um momento, ter obtido sucesso. Os historiadores não deram até hoje uma explicação unívoca e documentada das razões pelas quais Mussolini se decidiu pela guerra. O que está documentado, de qualquer forma, é o modo como se subestimou o potencial bélico americano. Nos arquivos do então Ministério da Guerra italiano existe um relatório muito detalhado do adido militar em Washington, general Marras, falando dessas gigantescas potencialidades. Lá se encontra a singular anotação de que era preciso enviar o relatório ao ministro (que - sublinho - era o próprio Mussolini).
Jean-Louis Tauran com  Jim Nicholson

Jean-Louis Tauran com Jim Nicholson

A beligerância italiana levou o corpo diplomático a passar por graves incômodos, obrigando-o a refugiar-se nas dependências do Vaticano. Lá viveu o número dois da Representação Diplomática, o senhor Tittman, mas o senhor Myron Taylor também pôde estar na Itália durante duas semanas (a partir de 17 de setembro de 1942), mediante acordos prévios com o governo italiano - que cuidou de sua viagem, via Lisboa; ele foi recebido pelo Santo Padre duas vezes, além de ter tido amplas conversas com a Secretaria de Estado.
Segundo um despacho do embaixador italiano Guariglia, endereçado ao ministro Ciano (que transcrevo), “Taylor, em nome do presidente Roosevelt, teria dito a Sua Santidade que a aliança e a colaboração dos Estados Unidos e da Inglaterra com a Rússia se fundamentavam em bases sólidas, totalmente livres de equívocos ou mal-entendidos. Existia uma solidariedade com a Rússia não apenas na guerra, mas também na ação política: os Estados Unidos estavam plenamente decididos a fazer com que a Rússia bolchevique participasse também das negociações e da organização da paz futura.
“O Santo Padre teria respondido a esse comunicado perguntando como era possível que os Estados Unidos e a Inglaterra concordassem com a Rússia, sede do comunismo, nos planos moral, social e econômico. Taylor teria respondido que essas objeções já não correspondiam à evolução pela qual o comunismo passara tanto como partido quanto como prática de Estado.
“A doutrina e a organização soviética sofrera muitos redimensionamentos; os princípios do comunismo já se haviam difundido e, de certa forma, permeavam a consciência e os conceitos do mundo moderno; era, portanto, apenas uma questão de forma e de adaptação às condições individuais dos vários países e dos vários aglomerados sociais, condições que naturalmente deveriam ser levadas em conta, mas que necessariamente poriam em andamento a nova ordem internacional, nos campos social, econômico e político, adaptando e conciliando os ve­lhos princípios aos novos derivados da doutrina comunista”.
No Vaticano, ao mesmo tempo, havia começado a atuar uma rede muito densa de informações, tanto para dar às famílias americanas notícias de seus fi­lhos que combatiam na Europa, quanto para poder fazer contato com os italianos prisioneiros de guerra. Durante o Concílio Vaticano II, por meio de uma solene manifestação de agradecimento, as Forças Armadas italianas expressaram sua gratidão aos cardeais e bispos que, em todos os continentes, haviam oferecido aos nossos soldados solidariedade e notícias dos familiares. Em meio às autoridades militares estava um personagem para com o qual havia eno­rmes motivos de reconhecimento: o arcebispo de Nova York, cardeal Francis Spellman, que fora o primeiro, quando a Itália não tinha mais amigos em Washington, a tomar a defesa de nosso país, permitindo-nos começar a dificílima retomada.
Da esquerda para a direita, os cardeais Agostino Cacciavillan, Darío Castrillón Hoyos e Pio Laghi

Da esquerda para a direita, os cardeais Agostino Cacciavillan, Darío Castrillón Hoyos e Pio Laghi

Tenho a obrigação também moral de lembrar aqui a grandiosa atividade de assistência que o povo italiano recebeu do povo americano depois da guerra, com uma intensidade de auxílios autenticamente providencial.
A essa lembrança deve ser acrescentada também a criação da Cidade dos Jovens por parte de um sacerdote admirável, monsenhor John Patrick Carroll-Abbing, ao qual foi conferida em 1987 a cidadania honorária de Roma, numa grande solenidade.
Mas há ainda outro personagem a ser lembrado, que trabalhou extraordinariamente durante muito tempo pelo interesse da Igreja, nos Estados Unidos e na Itália: o general Anthony Vernon Walters, que lutou ao lado da armada brasileira na Toscana, foi adido militar junto à embaixada norte-americana em Roma, embaixador em Bonn e nas Nações Unidas e vice-diretor da CIA no governo de George Bush.
Extraordinário poliglota, ele foi encarregado pelo presidente Eisenhower e por outros presidentes dos Estados Unidos de missões delicadíssimas, inclusive visitas periódicas ao Vaticano para fazer referência àquele que, com respeito filial, chamava de “número um”. Papas e presidentes se sucediam, mas Vernon Walters mantinha seu papel oficioso, dedicando sempre em suas visitas a Roma um bom tempo à oração na igreja americana de Santa Susana.
Lembrei, na introdução ao nosso livro, que durante a visita do presidente John Kennedy a Roma, num café da manhã oferecido pelo embaixador americano, tive a oportunidade de perguntar ao presidente quando poderia haver a abertura de uma segunda embaixada aqui. O fato de ele ser católico favorecia essa hipótese ou a afastava? Ele respondeu com muita precisão que poderia se dedicar a esse assunto depois da reeleição. Infelizmente, John Kennedy, assassinado, nem chegou a completar o primeiro mandato.
Seria o presidente Reagan a poder dar vida à embaixada no Vaticano, com seu amigo William Wilson, que há alguns meses reencontrei com prazer quando veio visitar Roma. O embaixador Nicholson sublinha com muita exatidão que o ponto de encontro entre a Casa Branca e o Papa polonês foi a tomada de consciência, de ambas as partes, do papel que poderiam ter ao iniciar, por meio de Solidarnosc, o ocaso dos soviéticos. Reagan, confiando nos propósitos de Gorbatchov, realizou a obra-prima da redução dos armamentos nucleares pela metade.
É com grande ternura que dirigimos nosso pensamento ao adoentado presidente Reagan, que, já há muitos anos, no silêncio da sua Califórnia, está às portas da morte anunciada, que tarda quase despeitosamente.
Um momento da apresentação do livro

Um momento da apresentação do livro

Desde aquela época, as circunstâncias internacionais não apenas não permitiram outros passos no caminho do desarmamento equilibrado de Reagan, mas também - mesmo registrando a queda do império soviético - viram surgir novos fronts de ofensiva, marcados por um terrorismo impiedoso.
Na segunda parte do ensaio, o embaixador analisa alguns aspectos atuais da relação dos Estados Unidos com a Santa Sé.
A natureza e as perspectivas das duas entidades internacionais são muito diferentes. A própria abordagem aos grandes temas da paz e do desenvolvimento só pode coincidir em parte. É preciso, porém - especialmente numa fase de grandes preocupações, de busca de esquemas, de tensões de vários tipos - pôr em ação um esforço de convergência, superando os preconceitos e as barreiras rígidas. Na própria elaboração de um modelo mais válido de reestruturação da ONU, é preciso procurar pontos de encontro objetivos.
Certamente, quando teses fundamentais como a defesa da vida entram em rota de colisão - como aconteceu na Conferência do Cairo - não há negociação possível. Mas os campos em que pode haver compreensão e apoio recíprocos não são marginais. Num movimento de retomada histórica, a Igreja educadora pode ajudar a superar incompreensões e conflitos de interesse. O tema dos alimentos transgênicos, que aqui se trata, por exemplo, lembra a polêmica gerada pela introdução dos fertilizantes químicos em outras épocas. Num mundo que cresce e que a nossa visão teológica não permite ver fatalmente contrariado pela falta de pão, temos de saudar as inovações; mais ainda, devemos estimulá-las, abandonando estados de espírito de desconfiança e vários tipos de protecionismo.
Particularmente no espinhoso problema do Iraque, houve uma sucessão de momentos em que o diálogo não foi fácil.
No plano histórico, Saddam Hussein autoproclamou-se defensor da ordem, partindo para a guerra - até mesmo para a terrível guerra química - contra a revolução iraniana. A Itália, naquele momento, foi muito sábia. Os exageros do “líder” de Teerã certamente não podiam deixar de suscitar temores, mas não era uma posição séria considerar Saddam o restaurador do modelo imperial que, especialmente na última fase, ultrapassava todos os limites possíveis. Saddam, que continuou a receber apoio maciço do Ocidente e de alguns países árabes (vide o caso do Egito), sentiu-se encorajado a invadir o Kuwait, convencido de que, como de hábito, a ONU se limitaria a redigir documentos solenes de reprovação. E ponto final.
Até se pode dizer, partindo de uma preocupação histórico-moral, que, se Saddam não tivesse invadido o Kuwait, provavelmente estaria até hoje em seu posto de comando, continuando a perseguir os curdos e outras partes da população sem ser perturbado; isso desde que não acentuasse a temida hostilidade prática que tinha a Israel.
De resto, no pé em que estão as coisas, não é tão importante - especialmente aqui, no Latrão - confirmar se existiam e quantas eram as armas de destruição em massa de que o ditador dispunha. O problema é identificar de que forma se pode colaborar hoje para que condições de vida mutuamente profícuas tomem o lugar da ex-ditadura, num contexto mais que heterogêneo. Seria injusto dizer que algumas posições políticas - americanas e de outros países - se apóiem exclusivamente no interesse pelo petróleo. Mas ainda mais injusto é não entender que, na defesa indômita da paz, a Igreja não está minimamente sujeita a preocupações mercantis.
Se permanecermos em óticas meramente materiais, depararemos também com fortíssimas contradições.
Uma nota final, voltando a Pio IX. Se, pessoal e institucionalmente, não tivesse sido insuperável a hostilidade que ele tinha à guerra contra a Áustria, talvez - e eu digo talvez - o Estado Pontifício tivesse sido preservado, num modelo de confederação e somente com a Itália do norte libertada e unificada. Garibaldi e Mazzini se uniriam a Gioberti para aplaudir.
O apego implacável à paz - mesmo prescindindo das sábias citações de Santo Agostinho - é uma linha que não pode ser transgredida, da qual os papas modernos, livres como são de todas as implicações temporalistas, nunca poderão se afastar.


O embaixador americano Jim Nicholson

O embaixador americano Jim Nicholson

JIM NICHOLSON:
Este ano assinala o vigésimo aniversário das relações diplomáticas formais entre os Estados Unidos e a Santa Sé. Muitas vezes, defini nossas relações como as que existem entre o maior poder temporal do mundo e o maior poder espiritual, ambos interessados em promover a dignidade humana. Quando me tornei embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé, entendi que a história dessas relações não era bem conhecida. E quando 30Dias se dirigiu a mim, pedindo-me que escrevesse sobre a questão, aceitei de bom grado a oportunidade de dizer algo mais sobre a história das relações diplomáticas entre meu país e a Santa Sé.
Quero agradecer ao senador Andreotti e a 30Dias por seu interesse pelos Estados Unidos e pela oportunidade de escrever a respeito de nossas relações com o Vaticano. (Eu gostaria de expressar também meu agradecimento especial ao vice-diretor de 30Dias, Giovanni Cubeddu, e a sua equipe, por sua eminente colaboração e profissionalismo em ambas as publicações de La lunga strada. Foi um prazer trabalhar com Giovanni. É um homem paciente quando se trata de prazos editoriais, ainda que eu saiba que nós pusemos sua paciência à prova uma ou duas vezes...). Tenho a honra de que sua eminência o cardeal Tauran e o secretário de Estado Powell tenham enriquecido este livro com dois prefácios nos quais tão eloqüentemente compartilham as perspectivas desse relacionamento. Enfim, desejo agradecer a sua excelência dom Rino Fisichella por seu interesse pelo tema e pela hospitalidade desta noite, aqui, no Latrão.
É um prazer ver tão grandes amigos aqui esta noite. Estou particularmente contente por ver um número tão elevado de colegas do Vaticano e dos corpos diplomáticos com os quais tive o privilégio de colaborar nestes mais de dois anos.
Tão logo comecei a trabalhar na primeira edição de USA e Santa Sede. La lunga strada, há dois anos, com um grupo de jovens assistentes pesquisadores, fiquei fascinado por descobrir que essa relação começou realmente nos primeiros anos da República americana. Seus primeiros protagonistas eram personalidades como George Washington, Benjamin Franklin, o jesuíta John Carroll e o papa Pio VI.
A segunda edição de La lunga strada conduz nossa história até este vigésimo aniversário. O tema central desse intervalo de tempo recente foi, naturalmente, a guerra no Iraque - tema que em nossas relações foi objeto de um mal-entendido mais que evidente
Durante cerca de duzentos anos, as relações diplomáticas entre os Estados Unidos e a Santa Sé tiveram fluxos e refluxos, seguindo a influência do clima geopolítico de cada período histórico. Os primeiros anos viram a nomeação de cônsules e ministros que residiam no que era então o Estado Pontifício, para assistir in loco os cidadãos americanos e servir de apoio aos interesses comerciais dos Estados Unidos. Com o fim do Estado Pontifício, em 1870, as relações entraram numa longa pausa, ainda que os Estados Unidos e a Santa Sé tenham continuado a manter compromissos mútuos, mas a uma distância diplomática.
Com o estouro da Segunda Guerra Mundial e o desafio que ela impôs à liberdade e à justiça, um compromisso tão limitado já não pôde ser tolerado. Reconhecendo o papel importante que a Santa Sé tinha em toda a Europa, o presidente Roosevelt nomeou Myron Taylor seu representante pessoal junto ao papa Pio XI. Taylor viria a se revelar um mediador crucial entre o presidente e o Papa quando os Estados Unidos tentaram sem sucesso impedir a Itália de entrar em guerra. Fiel ao rosto humanitário que Roosevelt havia dado a sua missão - missão que nós hoje continuamos a desempenhar -, Taylor trabalhou em estreita ligação com o Vaticano para alimentar os refugiados que atravessavam as fronteiras da Europa, para fornecer ajuda material às vítimas da Europa Oriental arrasada pela guerra, e para assistir os prisioneiros de guerra aliados.
Apesar dos esforços do presidente Truman para formalizar as relações, nomeando embaixador dos Estados Unidos um herói da Segunda Guerra Mundial, o general Mark Clark, a tentativa encalhou mais uma vez no Congresso americano, onde os sentimentos de preocupação no que diz respeito à separação entre Igreja e Estado continuavam a gerar oposição. Como resultado, existiram representantes ocasionais na década de 1970 e nos primeiros anos da década de 1980, mas foi apenas em 1984, quando o papa João Paulo II se destacava como voz crítica em favor da liberdade e da justiça, que o presidente Reagan decidiu que os Estados Unidos não podiam mais permitir-se continuar por muito tempo sem um embaixador junto à Santa Sé. Reconhecendo no Papa polonês e “viajante” um amigo e um aliado em seu ímpeto por “derrubar” a cortina de ferro, o presidente Reagan conseguiu, pela primeira vez, obter o necessário consenso do Congresso dos Estados Unidos e nomeou William Wilson primeiro embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé. Quando Wilson apresentou suas credenciais ao papa João Paulo II, em abril de 1984, o Papa lhe disse que a renovada colaboração entre os Estados Unidos e a Santa Sé devia significar “unir esforços para defender a dignidade e os direitos da pessoa humana”. As palavras do Papa viriam a traçar a direção para o futuro dessa relação vital entre as principais vozes mundiais pela liberdade, pela justiça e pela dignidade humana.
Vinte anos depois, posso confirmar que essa parceria deu provas de seu valor, aos Estados Unidos, à Santa Sé e à causa da dignidade humana. Trabalhando durante estes vinte anos, os Estados Unidos e a Santa Sé originaram ambos o colapso do comunismo por meio de nossas estreitas consultas sobre os desdobramentos na Polônia e, mais profundamente, por meio daquela que os conselheiros do presidente Reagan definiam “uma unidade de intenções espirituais e uma unidade de visões sobre o império soviético”, segundo a qual o direito, no final, prevaleceria. De modo semelhante, na América Central, os Estados Unidos e a Santa Sé se opuseram aos insurrectos comunistas e, enfim, restituíram a estabilidade à região. Nas Filipinas, os Estados Unidos e a Santa Sé estiveram juntos mais uma vez ao lado da liberdade, colaborando para guiar aquele país rumo a uma transição democrática pacífica. Nos foros internacionais, continuamos a promover ativamente os direitos humanos, a liberdade religiosa e a dignidade da vida humana em todos os continentes.
A primeira edição de La lunga strada trata dessa relação, desde o início até a minha chegada a Roma, que coincidiu com os trágicos ataques do 11 de Setembro. Ela conta o apoio da Santa Sé às ações dos Estados Unidos contra a ameaça do Al Qaeda - uma posição expressa com vigor, à época, por sua eminência o cardeal Tauran. A segunda edição de La lunga strada conduz nossa história até este vigésimo aniversário. O tema central desse intervalo de tempo recente foi, naturalmente, a guerra no Iraque - tema que em nossas relações foi objeto de um mal-entendido mais que evidente. Fiquei contente, portanto, com a oportunidade oferecida por 30Dias para pôr minhas mãos na segunda edição de La lunga strada com a finalidade de trazer um pouco de clareza a esses mal-entendidos.
Antes de mais nada, deixem-me dizer que o verdadeiro teste de uma sólida relação entre Estados-nação é se ela resiste à tensão e ao desacordo. A guerra no Iraque forneceu esse teste aos Estados Unidos e à Santa Sé, ainda que isso se tenha devido ao desacordo quanto aos meios, mais do que quanto os fins. Passamos nesse teste pela razão fundamental de que os Estados Unidos e a Santa Sé nunca cessaram de fixar, ambos, sua atenção no povo iraquiano e na maneira como poderiam trabalhar juntos para ajudar a construir um futuro próspero e democrático para os iraquianos que sofrem há tanto tempo. De fato, a Cáritas, organização de socorro da Santa Sé, teve uma presença ativa no Iraque antes, durante e depois da guerra, e está trabalhando em estreito contato com os Estados Unidos no esforço por reconstruir as infra-estruturas de saúde.
CONSTITUIÇÃO IRAQUIANA.
O presidente do Conselho de Governo iraquiano, Mohammed Bahr al-Ulloum, assina a Constituição provisória, em 8 de março de 2004

CONSTITUIÇÃO IRAQUIANA. O presidente do Conselho de Governo iraquiano, Mohammed Bahr al-Ulloum, assina a Constituição provisória, em 8 de março de 2004

Da mesma forma, a Igreja caldéia, com mais de meio milhão de católicos no Iraque, ofereceu-se como uma voz de moderação e tolerância religiosa, tão necessária. O patriarca caldeu mantém um diálogo regular com o administrador americano, o embaixador Bremer, a propósito do socorro, da reconstrução e da liberdade religiosa. Minha esposa, Suzanne, e eu tivemos o privilégio de encontrar o patriarca de Roma pouco depois de sua eleição, e ele me cumprimentou dizendo: “Obrigado por ter libertado o meu povo!”.
Apesar da nossa cooperação no Iraque, não há dúvidas de que o período antes da guerra foi particularmente intenso em nosso diálogo bilateral. A Santa Sé surgiu como um espaço crucial para a atividade diplomática de países que se encontravam em posições opostas sobre a questão Iraque. Reconhecendo a importância da voz da Santa Sé, minha embaixada trabalhou duramente para levar ao conhecimento dos funcionários vaticanos as preocupações dos Estados Unidos sobre o Iraque, sublinhando os doze anos em que Iraque desafiava as resoluções das Nações Unidas, seu uso de armas de destruição em massa contra seu próprio povo, sua contínua repressão interna e os abusos contra os direitos humanos. Descobrimos que os funcionários vaticanos compartilhavam nossas angústias a respeito do regime de Saddam e nosso desejo de prevenir a difusão de armas nucleares, químicas e bacteriológicas. De fato, altas personalidades vaticanas se dedicaram a combater a impressão pública equivocada de que a Santa Sé tivesse simpatia pelo Iraque.
Isso não significa que a Santa Sé apoiasse a guerra. O Papa não era favorável à guerra. Ele é contra todas as guerras, pois é um homem de paz. Mas não é um pacifista! Ele afirmou, com coerência, o que a Igreja ensina a propósito da guerra, ou seja, que ela às vezes é necessária como último recurso, e que cabe aos líderes do poder civil tomar decisões ponderadas sobre quando a ação militar deve ser empreendida para proteger seus cidadãos. A Santa Sé nos forneceu o quadro moral e ético que usou para avaliar a situação no Iraque. O cardeal Laghi, representando o Papa, fez um bom trabalho explicando a posição do Vaticano. O presidente americano ouviu atentamente, eu estava lá. E depois tomou sua decisão baseando-se nas informações que tinha sobre a ameaça iraquiana, assumindo suas responsabilidades para com o povo americano.
Como resultado, o povo do Iraque tem hoje uma possibilidade de viver em liberdade e de ultrapassar a época das fossas comuns, da tortura e da repressão. Essa transição não é isenta de custos e não será simples, mas o mundo será melhor com um Iraque pacífico, estável e democrático. À luz dessa nova oportunidade, em janeiro o secretário de Estado vaticano, cardeal Angelo Sodano, disse ao vice-presidente Cheney que a Santa Sé lamentava as vítimas americanas e de outros países no Iraque, sublinhando que a Santa Sé via esses valorosos soldados como “operadores da paz”.
Nossos esforços em favor da dignidade e dos direitos humanos no Iraque são parte integrante da mais ampla estratégia dos Estados Unidos de elevar sua voz contra as violações das exigências não negociáveis da dignidade humana, e de trabalhar ativamente para favorecer a liberdade. De fato, a Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos esclarece que a primeira finalidade do nosso esforço internacional hoje é “apoiar com firmeza as reivindicações não negociáveis pela dignidade humana, o Estado de direito, os limites ao poder absoluto do Estado, a liberdade de expressão, a liberdade de culto, uma justiça justa, o respeito pelas mulheres, a tolerância religiosa e étnica e o respeito pela propriedade privada” (Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos, setembro de 2002). Tal finalidade está também no centro do vigoroso esforço internacional da Santa Sé.
Esse desejo comum de defender a dignidade humana faz nascer um diálogo ativo a respeito dos direitos humanos. No ano passado, os Estados Unidos pediram à voz moral da Santa Sé que se erguesse para condenar as execuções e detenções sumárias em Cuba. A Santa Sé se pronunciou realmente, conosco e com as outras nações que apóiam a liberdade e os valores democráticos, contra as ações arbitrárias do governo cubano. De maneira análoga, a Santa Sé foi solícita ao levar à nossa atenção sua perturbação com a ameaça aos direitos humanos no Sudão, em Uganda, no Zimbábue e na Arábia Saudita, e ao exortar os Estados Unidos a se esforçarem para enfrentar esses problemas.
No mundo de hoje, os crime do tráfico de pessoas é uma das maiores ofensas à dignidade humana, e é uma outra circunstância na qual os Estados Unidos estão na primeira linha de defesa dessa dignidade. O presidente Bush surpreendeu a muitos quando, em setembro passado, dedicou quase um terço de seu discurso na Assembléia Geral das Nações Unidas ao que definiu “uma crise humanitária que se expande, ainda oculta ao o­lhar”, uma crise que envolve quase um milhão de seres humanos comprados, vendidos ou levados à força a atravessar as fronteiras do mundo. Entre essas vítimas, há centenas de milhares de mulheres e moças, que caem vítimas do comércio sexual. Para ajudar a combater esse mal, minha embaixada trabalha ativamente em colaboração com a Santa Sé, em particular para desenvolver estratégias de prevenção e reabilitação para as vítimas desse tráfico. Em maio de 2002, procuramos tornar essa escravidão dos nossos dias mais conhecida, organizando com a Santa Sé uma conferência internacional com 400 participantes de 35 países. Ficamos contentes por ter tido nesse evento o cardeal Tauran como representante da Santa Sé e por ter confirmado o compromisso do Papa com o combate a esse mal.
TRÁFICO DE SERES HUMANOS.
O secretário de Estado Colin Powell durante a apresentação do relatório anual sobre o tráfico de seres humanos; Washington, junho de 2003

TRÁFICO DE SERES HUMANOS. O secretário de Estado Colin Powell durante a apresentação do relatório anual sobre o tráfico de seres humanos; Washington, junho de 2003

Tendo crescido a atenção a esse problema, nós nos dedicamos às maneiras de combatê-lo ativamente. Trabalhando com a International Organization for Migration, financiamos e desenvolvemos recentemente um programa de treinamento especificamente destinado aos religiosos presentes no mundo do trabalho, para fornecer a eles estratégias e capacidade para combater esse tráfico. O curso está reforçando o esforço e a competência de pessoas de boa vontade, capazes de combater essa odiosa versão da escravidão do século XXI. Para continuar a construir em cima dessas iniciativas, levei ao conhecimento dos núncios vaticanos do mundo inteiro os resultados da nossa conferência e do programa de treinamento, encorajando-os - com bons resultados - a trabalharem com as respectivas conferências episcopais e embaixadas norte-americanas locais para desenvolver iniciativas próprias de combate ao tráfico.
A fome mata uma criança a cada seis segundos. Para preservar milhões de pessoas da fome no futuro, os Estados Unidos estão determinados a ajudar as nações em dificuldade a evitarem carestias, compartilhando com elas os mais modernos métodos de produção agrícola. Graças às novas descobertas da biotecnologia, muitos agricultores nas nações tecnologicamente avançadas são capazes de fazer colheitas crescerem resistentes à seca, aos insetos nocivos e às doenças, capazes de se adaptar ao ambiente, com maior rendimento por acre. Também nessa empreitada, estamos trabalhando em estreito contato com a Santa Sé, a qual reconheceu o imperativo moral de alimentar o mundo que tem fome e manteve uma abertura ao potencial da biotecnologia para limitar a fome e a desnutrição. Creio que esse seja um tema no qual a Santa Sé deva investir sua autoridade moral com energia ainda maior, já que ele não é apenas um tema político e econômico; é um tema moral vital - é o tema da vida -, pois uma criança que morre de fome morreu exatamente como alguém que morre por aborto. Nós queremos que o Vaticano esteja conosco em primeira linha para fazer com que o alimento biotecnológico seja compartilhado com aqueles que passam por maiores necessidades.
A Aids mata oito mil pessoas todos os dias. É uma afronta à dignidade humana. O presidente Bush a definiu um “desafio à nossa consciência”. A Aids mata mais de três milhões de pessoas todos os anos. Temos de agir com decisão para enfrentar essa crise humanitária. Aqui também, os Estados Unidos mostrarão uma liderança global sem precedentes, tão logo comecemos a executar o Plano de Emergência para o Socorro contra a Aids instituído pelo presidente, um plano cuja finalidade é a prevenção da Aids em grande escala, cuidando de milhões de pessoas que já têm a doença. Para demonstrar a firmeza de seu compromisso, os Estados Unidos garantiram quinze bilhões de dólares nos próximos cinco anos ao combate da Aids no mundo. Nossa embaixada está contribuindo também com essa iniciativa, agilizando o apoio financeiro do Fundo Presidencial ao eficaz programa de tratamento anti-retroviral da Comunidade de Santo Egídio, em Moçambique e em outros países da África. Por meio das agências de Catholic Relief, os americanos apóiam também as obras excepcionais do mundo católico em todo o mundo, provendo tratamento e assistência a 25% das vítimas dessa terrível catástrofe da saúde.
Dado que agimos juntos para progredir nesse e em outros campos, creio que esta relação diplomática ainda jovem, mas em via de amadurecimento, entre os Estados Unidos e a Santa Sé - relação que se baseia justamente no primado da pessoa humana e de sua liberdade - virá a se demonstrar cada vez mais determinante no enfrentamento dos muitos desafios do nosso tempo.
Os desafios de hoje são desafios morais, e devem ser resolvidos com clareza moral e habilidade para traduzir essa clareza em ação. Trabalhando juntos, os Estados Unidos e a Santa Sé podem ajudar a construir um mundo de liberdade, esperança e paz. Já fizemos muito para melhorar as condições de vida do homem, mas muito ainda há por fazer. Com fé e com determinação, continuaremos a promover a causa da dignidade humana. Esta segunda edição de La lunga strada celebra os nossos sucessos passados e olha para um futuro ainda mais luminoso. Mais uma vez, agradeço ao senador Andreotti e a 30Dias por seu interesse, sua iniciativa e seu apoio a compartilhar esta história da nossa importante parceria pela dignidade humana.
Obrigado por terem vindo.


O cardeal Jean-Louis Tauran

O cardeal Jean-Louis Tauran

JEAN-LOUIS TAURAN:
Perdoem-me se começo citando o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger. Nas duas últimas frases de seu livro Diplomacy, ele escreve: “The Wilsonian goals of America’s past – peace, stability, progress, and freedom for mankind – will have to be sought in a journey that has no end. Traveller, says a Spanish proverb, there are no roads. Roads are made by walking” (“Os objetivos wilsonianos da América no passado - paz, estabilidade, progresso e liberdade para a humanidade - deveriam ser buscados numa viagem que não tem fim. Oh, viajante, diz um provérbio espanhol, não existem estradas. As estradas se fazem caminhando”).
É justamente isso que demonstra, de maneira muito eloqüente, o livro que temos nas mãos: USA e Santa Sede. La lunga strada. Na primeira parte de sua obra, o embaixador Jim Nicholson nos permite descobrir - e digo “descobrir”, pois os fatos a que se faz referência só eram conhecidos pelos especialistas até hoje - que os desdobramentos históricos e as iniciativas de cada época não se devem somente a circunstâncias históricas, mas, também, a personalidades de destaque, as quais, com suas intuições, seu senso do dever, a capacidade de captar os sinais dos tempos, abrem, precisamente, novos caminhos, e permitem aos homens construir, de mãos dadas, os caminhos da história.
De Giovanni Sartori, que, em 1797, foi o primeiro cônsul americano no Estado Pontifício, até o embaixador Jim Nicholson de hoje, sucederam-se representantes americanos creditados junto à Santa Sé, os quais souberam - muitas vezes em condições nada fáceis - manter e alimentar uma relação feita de lealdade e respeito. Cada um desses representantes, com sua história pessoal - humana e política - permitiu o reatamento das relações diplomáticas em 1984. Neste mês de abril celebraremos, justamente, o 20º aniversário da apresentação das credenciais ao papa João Paulo II por parte do embaixador William Wilson.
Lendo essa história, entende-se o que a arte da diplomacia pressupõe: abertura aos problemas alheios; consideração do que constitui a diferença e a especificidade do outro; aceitação do fato de que cada um é parceiro responsável; busca insistente de meios pacíficos para resolver as dificuldades; busca do que é comum às duas partes.
Tudo isso sob o signo da cortesia, da discrição e da sinceridade.
A título pessoal, permitam-me acrescentar uma situação que não foi mencionada e que foi objeto de constantes consultas entre Washington e a Cidade do Vaticano: eu me refiro à Terra Santa. [...] A Santa Sé está convencida de que a crise israelense-palestina ainda sem solução é a “mãe” de todas as crises no Oriente Médio
No caso dos Estados Unidos, esse exercício foi facilitado porque, como bem põe em relevo o autor, “se algumas vezes os Estados Unidos e a Santa Sé podem estar em desacordo sobre os meios, estão completamente de acordo sobre os objetivos finais: liberdade, paz e criação de oportunidades” (p. 14).
Muito convenientemente, Jim Nicholson sublinha a contribuição insubstituível da Igreja Católica nos Estados Unidos para a criação do clima que permitiu alcançar a meta de 1984. Os católicos norte-americanos souberam demonstrar que sua fidelidade ao Papa não os tornava menos fiéis à pátria. A contribuição do cardeal Francis Spellman, arcebispo de Nova York, foi determinante também.
Na segunda parte do livro, o embaixador Nicholson fornece avaliações sobre a maneira como informou suas autoridades a respeito das reações da Santa Sé ao cruel atentado de 11 de setembro de 2001 e à operação militar no Iraque, no ano passado.
Oportunamente, ele afirma que, se as posições nem sempre coincidiram, isso se deveu “mais ao desacordo quanto aos meios do que quanto aos fins”, graças aos valores que as duas partes compartilham: a tutela da dignidade humana, que não é negociável; a defesa do direito, que impõe limites ao poder absoluto do Estado; a promoção das liberdades fundamentais; o desejo da justiça e da paz.
Acenando para a questão dos alimentos biotecnológicos, ele expõe um campo de colaboração bilateral original, para favorecer não apenas a sobrevivência das pessoas pobres, mas, ainda mais, a sua dignidade.
A título pessoal, permitam-me acrescentar uma situação que não foi mencionada e que foi objeto de constantes consultas entre Washington e a Cidade do Vaticano: eu me refiro à Terra Santa. Posso testemunhar que o tema esteve no centro de todas as conversas que o papa João Paulo II, seus secretários de Estado e seus colaboradores tiveram com as autoridades americanas nestes últimos anos, com especial referência à conhecida questão dos Lugares Santos das três religiões.
De fato, a Santa Sé está convencida de que a crise israelense-palestina ainda sem solução é a “mãe” de todas as crises no Oriente Médio, e que convém que as duas partes não tardem em retomar o diálogo e a negociação, com a ajuda da comunidade internacional.
A título pessoal, gostaria também de evocar o quanto a paz na Terra Santa poderia transformar toda a região: liberaria energias e recursos para o desenvolvimento econômico; reforçaria a sociedade civil e a democratização dessas sociedades; tiraria dos extremistas que se alimentam do desespero dos deserdados qualquer motivo para a ação violenta; favoreceria o diálogo pacífico entre as religiões, evitando assim a migração dos cristãos.
Só posso agradecer ao embaixador Nicholson, que, por meio destas páginas, nos permite descobrir, mediante a vida de um diplomata e a ação de um governo, o tipo de contribuição que a Santa Sé, poder moral desarmado, pode exercer na comunidade das nações: promover a confiança; lembrar a necessidade urgente do diálogo; respeitar o direito; negociar soluções eqüânimes; superar as paixões e os preconceitos; ajudar na adoção de medidas precisas que pavimentem o caminho para a solução dos problemas mais difíceis; desfrutar do potencial de paz das religiões.
Essas são algumas prioridades que a Santa Sé considera seu dever promover. O livro que apresentamos esta noite parece-me mostrar o resultado dessa estratégia, que apenas ilustrei.
Na precariedade do mundo de hoje, é mais do que nunca necessário unir nossos esforços para buscar as condições para um mundo mais humano, e sem dúvida a fé dá uma visão do homem e da sociedade renovada, com motivações particulares que podem reforçar a convivência entre os povos.
Concluindo, não posso deixar de repetir esta noite as palavras que o papa João Paulo II pronunciou em janeiro de 2002, em Assis: “Nunca mais a violência! Nunca mais a guerra! Nunca mais o terrorismo! Em nome de Deus, cada religião traga à terra justiça e paz, perdão e vida, amor!”.



Nós sofremos, como na situação atual, pois somos obrigados a assistir com angústia a uma tal repetição de mortes, que ela já se torna uma fatalidade, uma rotina. or isso sentimos que deve haver a possibilidade de construir um relacionamento humano de um modo diferente. E essa construção é aquilo que se pode chamar - sendo que o embaixador citou Santo Agostinho, gostaria também de concluir com Santo Agostinho - uma concepção naturaliter christiana
GIULIO ANDREOTTI:
Antes de mais nada, creio que é preciso reconhecer o valor de que, numa fase do mundo tão agitada, tão cheia de problemas, nós tenhamos podido dedicar uma hora e meia a lembrar um fato positivo, o das relações diplomáticas plenas entre os EUA e a Santa Sé. Um fato que tinha tais dificuldades para chegar a uma solução que, como vimos, foi necessário um longo tempo e uma sucessão de acontecimentos. Eu não devo tirar conclusões. Acho importante poder dizer duas coisas que ficaram evidentes no que nos disse o embaixador Nicholson e nas palavras do cardeal Tauran.
Roma é uma cidade particularmente privilegiada, pois tem um duplo, aliás, um triplo corpo diplomático. De fato, os Estados estão representados junto à FAO, ao Estado italiano e à Santa Sé. Toda essa presença de nacionalidades diversas nos permite conhecer melhor os problemas. E permite aos representantes diplomáticos estrangeiros, mesmo àqueles que não têm contatos freqüentes com a cúpula do poder, entender o que acontece - e isso nem sempre é fácil - em nossa nação.
Gostaria de retomar apenas o último ponto que o cardeal Tauran mencionou, ou seja, a questão da Terra Santa: esse é hoje o ponto mais nevrálgico da situação internacional. Um ponto cheio de dificuldades. A Escritura nos diz que Jesus chorou sobre sua cidade. E continua a chorar.
O esforço de caráter político, tanto coletivo quanto bilateral ou multilateral, deve ser no sentido de procurar criar condições para que se possa passar da coexistência à convivência das duas populações. Provavelmente, os historiadores do âmbito internacional podem fazer hoje uma crítica às decisões de 1948. No sentido de que é muito provável que, sob a urgência de aliviar a Inglaterra de sua presença na região, foram criados o Estado de Israel e o Estado árabe. Se enfocarmos os trabalhos preparatórios daquelas decisões, veremos que houve uma certa superficialidade. Talvez, se tivesse havido maior reflexão, para entender melhor o que era o Estado árabe, e para garantir de alguma forma que as duas entidades nascessem ao mesmo tempo, muitas das complicações sucessivas poderiam ter sido evitadas. Mas isso hoje já não importa.
Parece-me importante frisar, e essa é a minha conclusão, o dado tão eloqüente do número de representantes do Papa espalhados pelo mundo e, portanto, o número de representantes do mundo aqui presentes, junto à Santa Sé. Houve um grande desenvolvimento das relações diplomáticas, marcado por alguns momentos significativos. Momentos importantes, nem sempre compartilhados por todos, pois, nas coisas humanas, existe sempre a possibilidade de que algo seja compartilhado ou não. Sem tirar méritos de ninguém, é preciso reconhecer ao cardeal Tauran uma grande atenção a alguns pontos sensíveis da situação internacional.
Vejamos, por exemplo, dois momentos: o primeiro, que gerou algumas críticas, foi o estabelecimento de relações diplomáticas da Santa Sé com a Autoridade Palestina, na expectativa do nascimento do Estado Palestino. Essa atitude não foi tomada de modo algum numa posição de antítese, mas com o objetivo de agilizar o desdobramento a que certamente se deverá chegar. Mas nem todos compreenderam isso. O segundo momento: o estabelecimento das relações diplomáticas entre a Santa Sé e a Líbia. Durante muito tempo, falar da Líbia era algo não apenas polêmico, mas impossível. Hoje, vemos que a situação está mudando, e esperamos - isso não é nenhum segredo de Estado - a retomada das relações diplomáticas entre os Estados Unidos e Trípoli.
Então, qual é a conclusão? Para mim, a conclusão parece ser esta: que, se nós observarmos o desenvolvimento da diplomacia pontifícia, constataremos que ela está sempre a serviço da busca de soluções positivas que enxerguem além do momento histórico e político particular que se está vivendo. Os momentos políticos de cada país podem mudar. A vida da Igreja, talvez, tenha a vantagem de não estar ligada a eleições, de não ter legislaturas que mudem, de não ter as preocupações que o mundo civil tem e que às vezes determinam algumas opções.
Mas a coisa importante, que fica evidente tanto no que disse o embaixador Nicholson quanto nas palavras do cardeal Tauran, é que nós devemos estar a serviço do homem, do homem doente, do homem que tem fome, do homem que não tem território suficiente, do homem que se sente oprimido pela falta de uma concepção, mesmo mínima, talvez até adaptada a cada parte do mundo, de liberdade. Creio que, justamente nessa direção, exista um trabalho comum a fazer. E sobre isso não há distinção de papéis entre as várias embaixadas em Roma. Nós estamos todos, acredito, a serviço da humanidade; e nós, numa crise, sofremos sem fazer distinções se se trata da morte de um homem ou de seu antagonista. Nós sofremos, como na situação atual, pois somos obrigados a assistir com angústia a uma tal repetição de mortes, que ela já se torna uma fatalidade, uma rotina. Por isso sentimos que deve haver a possibilidade de construir um relacionamento humano de um modo diferente. E essa construção é aquilo que se pode chamar - sendo que o embaixador citou Santo Agostinho, gostaria também de concluir com Santo Agostinho - uma concepção naturaliter christiana.

*O texto do livro foi publicado na nossa edição em português, como inserto, em duas partes. A primeira parte, na revista de outubro de 2002 e a segunda em fevereiro de 2004.


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