PODER ÚNICO. As diferenças entre a pax romana e a pax americana
Roma e os limites de seu império
Entrevista com Luciano Canfora, professor ordinário de Filologia Clássica da Universidade de Bári, historiador e editorialista do Corriere della Sera. O ponto de partida é a nova edição de um livro seu que acaba de ser publicada pela editora italiana Rizzoli: Nós e os antigos. Por que o estudo dos Gregos e dos Romanos é útil à inteligência dos modernos
de Pina Baglioni
Batalha entre romanos e germanos, sarcófago Ludovisi, Museu Nacional Romano, Palazzo Altemps, Roma
Um dos juízos fundamentais de seu livro é que o cami-nho que se deve percorrer para “utilizar” de maneira inteligente a história antiga é procurar conhecer per differentiam. Na sua opinião, quais são as diferenças entre a atual tentativa de impor a pax americana e a antiga pax romana?
LUCIANO CANFORA: Uma diferença, que não é pequena, está na atual força destrutiva das armas. Na sua época, os Romanos sabiam (mesmo que apresentassem seu Império como universal) que eram limitados, externamente, pelos Partos (império com o qual tinham fronteiras e do qual eram rivais) e pelos Germanos (ou seja, pelas populações que os Romanos consideravam “inferiores” mas que não tinham sido capazes de dominar). Hoje, o “império” chinês é também rival e confinante (como os antigos Partos), ao mesmo tempo em que os povos que se reconhecem no “fundamentalismo islâmico” são também apresentados como menos civilizados (ou não civilizados) e escapam ao domínio do império americano (como os antigos Germanos). Hoje, porém, o império americano poderia levar o mundo inteiro à catástrofe (uma guerra nuclear contra a China, que, segundo alguns, já é até projetada para 2016). Os Romanos, por sua vez, não dispunham de uma tecnologia militar tão superior a ponto de serem tentados a usá-la quaisquer que fossem as conseqüências. Portanto, a nossa situação atual, desse ponto de vista, é muito pior.
A propósito de um poder único e de suas conseqüências, nosso diretor, o senador Giulio Andreotti, recentemente lembrou que “a África é o continente esquecido, e que o fim da guerra fria interrompeu grande parte da ajuda que lhe era destinada por russos, americanos e até chineses com finalidades políticas”.
CANFORA: Concordo totalmente com o diagnóstico de Andreotti. Eu acrescentaria uma reflexão extraída de um livro escrito há mais de uma década pelo matemático ex-soviético Aleksandr Zinov’ev, A queda do “Império do mal” (La caduta dell’“Impero del male”, Turim, Bollati Boringhieri). O Ocidente - escrevia Zinov’ev - não apenas não quer, mas também não pode “exportar” seu modelo e seus padrões de vida para o resto do mundo. O Ocidente, em seu conjunto, mesmo com bolsões de desespero em seu interior, vive bem demais, e não quer perder nada desse bem-estar material. Os recursos do planeta jamais permitiriam a extensão de um estilo e padrão de vida tão “descaradamente opulento” a toda a humanidade. Daí o caráter mentiroso da pretendida “exportação de democracia” de que tanto se fala. A estrutura bipolar e a “competição de sistemas” das décadas de 1960 a 1980 obrigaram as superpotências a ajudarem os outros. E isso era um bem, além de uma forma tendencial de distribuição de renda (mesmo que não espontânea).
Bagdá, 9 de abril de 2003. As tropas americanas derrubam a estátua de Saddam Hussein
CANFORA: A Igreja Católica é evidentemente a mais durável instituição existente no planeta. As causas políticas (deixo de lado as razões de outro gênero, mesmo que sejam importantes) que lhe permitiram isso foram pelo menos duas: a) saber se adaptar às mudanças políticas de cada época, mas de uma forma que não é nem precipitada nem meramente “oportunista” (um exemplo disso é a capacidade de suportar o período de 1789 a 1815, inclusive a concordata de Bonaparte; outro exemplo é também a obra de um Casaroli com relação à Polônia e à Europa Oriental); b) nunca se alinhar totalmente a apenas um dos lados diante das lutas pelo poder (mesmo quando recobertas de ideologia). Eliminar um desses dois pilares seria um erro da cúpula da Igreja. Deve-se torcer para que esse erro nunca seja cometido.
Num artigo recente, o senhor escreveu: “A vitalidade do catolicismo em mundos imensos, e distantes da continuidade curial-romana, nada deve à remota herança espiritual do poder temporal”.
CANFORA: Em poucas palavras, e de uma forma esquemática, poderíamos dizer que a prova de vitalidade extraordinária que o catolicismo deu na era da descolonização consistiu em sua capacidade de arraigar-se em mundos (como, por exemplo, o Brasil) para os quais a tradição do “poder temporal”, a “questão romana”, etc., não tinham nenhum significado. Na realidade, com o fim do poder temporal a história do catolicismo recomeçou, sobre bases muito mais amplas. Um fenômeno de extraordinário interesse.