Uganda. A guerra esquecida
Se terminasse a longa noite dos visionários sanguinários
A crise no norte de Uganda já foi definida a pior crise humanitária do mundo e também a mais esquecida. Dura vinte anos, sem que estejam em jogo grandes interesses econômicos e estratégicos. O artigo de um missionário comboniano explica a situação atual: os rebeldes de Kony, que diz receber ordens do Espírito Santo, hoje massacram até mesmo quem pertence a sua etnia. A esperança de um acordo de paz
de José Carlos Rodríguez
Diferentemente de outras regiões da África, o norte de Uganda é uma região onde nunca estiveram em jogo grandes interesses, nem econômicos nem estratégicos. Esse fato, ao lado da posição oficial do governo de Yoweri Museveni (até pouco tempo atrás considerado um modelo de progresso econômico no continente), que sempre minimizou o problema, definindo-o um simples “assunto interno de falta de segurança prestes a ser resolvido”, poderia explicar a pequena atenção internacional. Que pode ser explicada também pela própria irracionalidade da situação: os rebeldes do Exército de Resistência do Senhor (LRA, segundo a sigla inglesa) são acholi (a principal tribo do norte), mas sempre atacaram sistematicamente os membros dessa etnia. O LRA dispara nos carros para os quais faz emboscadas, ataca e destrói vilarejos, seqüestra as crianças para obrigá-las a lutar em seu exército, mata civis que têm a desgraça de encontrá-lo pela frente ou os mutila de maneira espantosa. Desde 1996, o exército regular obrigou a população a abandonar os vilarejos e a concentrar-se nos campos de refugiados, conhecidos oficialmente como “vilarejos protegidos”, onde milhares de pessoas se concentram em condições desumanas e recebem proteção a duras penas. Basta lembrar o caso recente do massacre de Barlonyo, no distrito de Lira, em 21 de fevereiro passado. Cerca de 300 pessoas foram cruelmente massacradas pelos rebeldes - a maior parte queimada viva em suas cabanas.
As conseqüências foram catastróficas: depois da escalada da violência, o número de refugiados internos passou, de meio milhão, em janeiro de 2002, a um milhão e meio. Só na região acholi, 90% da população é fugitiva. Os serviços basilares, como as escolas e os centros de saúde, foram destruídos ou não funcionam como deveriam porque construídos em regiões hoje desabitadas ou porque professores e enfermeiros se refugiaram em regiões mais seguras. O Programa Alimentar Mundial, responsável pela distribuição dos gêneros alimentícios nos campos, precisaria de pelo menos 127 milhões de dólares para enfrentar as necessidades da população. Até agora chegou a apenas 50. O fato de que o governo ugandense tenha-se recusado sistematicamente a declarar estado de calamidade pública na região em que a guerra se desenvolve não ajudou a intervenção internacional, que poderia ao menos amenizar os efeitos sobre a população civil.
Acima, uma mulher armada de facão no vilarejo dos refugiados de Otwal e, abaixo, uma garota armada de machado no vilarejo de Pagak. A população anda sempre com alguma ferramenta de trabalho para se defender dos ataques inesperados dos rebeldes do LRA. Muitas vezes, os rebeldes atacam os vilarejos com armas brancas (para não chamar a atenção do exército com o barulho dos tiros), matam, raptam as crianças e desaparecem
O aspecto mais dramático do conflito é o impacto sobre as crianças. Segundo dados da Unicef, desde 1994 ao menos 30 mil menores foram seqüestrados pelo LRA. Desses, 10 mil só nos últimos 18 meses. Pelo menos 80% do LRA é formado por crianças obrigadas a lutar e a realizar as maiores atrocidades, muitas vezes contra os próprios familiares, a fim de que se convençam de que não têm para onde ir caso consigam fugir. As meninas, além de ter de empunhar o fuzil, são obrigadas a se tornar escravas sexuais dos chefes. Quase todos os dias, aparecem na imprensa ugandense notícias que dizem que o exército afirma ter matado vinte ou trinta rebeldes, sobretudo durante bombardeios com os helicópteros: é um segredo que todos conhecem o fato de que a maior parte das vítimas são crianças, às vezes seqüestradas há alguns dias e utilizadas como escudos humanos. E, como se não bastasse, as crianças que conseguem escapar do LRA são muitas vezes recrutadas pelo UPDF, ou voltam a seus familiares, quase sempre nos campos de refugiados, onde correm o risco de serem novamente capturadas pelo LRA.
Um grupo de jovens no vilarejo de refugiados de Odek, poucos dias depois do massacre de 29 de abril de 2004. A presença de milicianos de autodefesa popular, muitas vezes, acaba por ser inútil
O governo, diante da incapacidade do UPDF de proteger adequadamente a população, tem apoiado cada vez mais a formação de milícias locais para reforçar a presença do exército. Diversos grupos da sociedade civil criticaram essa política, que, segundo eles, contribui para a proliferação de armas leves numa região que, já por si só, vive num depósito de explosivos. Há também temores fundados de que a criação desses grupos armados possa se transformar numa fonte de conflito inter-étnico de conseqüências desastrosas.
Desde o início do conflito, diversos protagonistas locais tentaram uma solução pacífica negociada. A última dessas tentativas foi realizada pela “Iniciativa Religiosa de Paz” (Arlpi, segundo a sigla inglesa), um grupo inter-religioso que reúne católicos, protestantes e muçulmanos guiados pelo arcebispo de Gulu, John Baptist Odama. De julho de 2002 a agosto de 2003, representantes desse grupo - que recentemente foi condecorado com o Prêmio Niwano da Paz - se encontraram cerca de vinte vezes com os chefes da guerrilha. Até agora, porém, o LRA e o UPDF nunca entraram em acordo sobre um cessar-fogo. Isso, unido ao fato de que o LRA não controla nenhuma parte do território ugandense, mas leva uma vida de nômade, com bandos que se deslocam através dos vastos bosques da região, fez com que esses encontros se desenvolvessem em circunstâncias de alto risco. Os religiosos lamentam o fato de que em mais de uma ocasião o exército tenha atacado as regiões de contato, arruinando até mesmo aquele pouco progresso que fora feito para pôr em ação o processo de paz. O recente anúncio, no final de janeiro deste ano, de que o Tribunal Penal Internacional investigaria o LRA para levar seus chefes aos bancos dos réus nada mais fez senão aumentar a desconfiança de um grupo rebelde já por si só relutante às negociações, fazendo com que diminuíssem ainda mais as possibilidades de uma solução negociada.
A entrada do hospital de Lacor
Parece que o LRA também está sob pressão. Seus chefes sabem que o acordo de paz no Sudão pode significar para eles o fim definitivo do fornecimento de armas e de apoio logístico. Quase todos os dias, soldados rebeldes - na maioria menores - fogem do LRA. Mas os desertores são rapidamente substituídos por outras crianças seqüestradas. Diante dessa situação tão desesperada, todos fazem votos de que o governo e os rebeldes entrem em acordo o quanto antes sobre onde e como reunir-se para negociar a paz. Será a única maneira para pôr fim a essa tragédia que, por ora, apenas despertou o interesse da comunidade internacional.
Genifex Nalumansi com seus netos. A senhora Nalumansi, mãe de 11 filhos, dos quais 9 mortos de Aids, manteve os netos consigo (um fato comum nas famílias ugandenses dizimadas pela doença), que cultivam a terra e extraem carvão, trabalhos que permitem aos jovens ir à escola
Aids. A epidemia aniquilou uma geração inteira de africanos. O drama das crianças órfãs
O drama das crianças que a Aids tornou órfãs é um problema de todo o continente africano. Em 2001, mais de 34 milhões de crianças da África Subsaariana eram órfãs, um terço das quais em conseqüência da Aids. O números de órfãos está aumentando dramaticamente e se prevê que, até 2010, será de mais de 42 milhões. Vinte milhões dessas crianças ficarão órfãs em razão da Aids. Em países como Uganda, onde a taxa da doença diminuiu, os pais que já estão doentes continuarão a morrer.
Desde 1981, quando foram registrados os primeiros casos de Aids, até 2001, só em Uganda houve 2.200.000 de contágios; 1.400.000 mortos; 950.000 órfãos em conseqüência da Aids. A taxa de contágio entre os adultos é de 8,3%: estão infectados 420 mil mulheres, 350 mil homens e 53 mil crianças.