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RÚSSIA
Extraído do número 12 - 2004

A análise do reitor da Universidade de Ciências Humanas de Moscou

Tradição e pragmatismo


Esta é a atual política do Kremlin, segundo o historiador Alexander Ciubarian: “Tenho certeza de que o presidente Putin quer um Estado democrático e, como ele mesmo disse, próximo à civilização européia”. Entrevista


de Giovanni Cubeddu


O coral do Exército russo exibe-se na Sala Paulo VI na presença de João Paulo II por ocasião do XXVI aniversário de pontificado, dia 15 de outubro de 2004

O coral do Exército russo exibe-se na Sala Paulo VI na presença de João Paulo II por ocasião do XXVI aniversário de pontificado, dia 15 de outubro de 2004

Filho de armênios, nascido em Moscou, Alexander Ciubarian é um historiador, membro da Academia Russa de Ciências, na qual dirige desde 1988 o Instituto de História Geral. Integra com facilidade pesquisa científica e didática e criou em Moscou – é o reitor – a Universidade de Ciências Humanas. Alexander Ciubarian é também membro da presidência do Conselho de Ciência e Educação, órgão dirigido pessoalmente pelo presidente Putin.
O cavalo de batalha de Ciubarian é a história européia e as relações internacionais no século XX, como testemunham as suas várias publicações sobre a política exterior de Moscou na década de Vinte, sobre a Guerra Fria e as suas origens.
Ciubarian é membro do Comitê editorial da Enciclopédia Ortodoxa (cujo primeiro volume foi apresentado em Roma em outubro passado) e do Comitê editorial da Enciclopédia Católica (apresentada em Moscou dois anos atrás). Isso deriva em parte do fato que um grande Centro de Estudos sobre a Igreja e as Religiões, ligado por uma relação especial com o patriarcado de Moscou, faz parte do Instituto de História Geral, daí a razão pela qual muitos professores do Centro de Estudos participam na redação da Enciclopédia Ortodoxa.
Encontramo-nos com este tranqüilo e afável intelectual que defende as razões do presidente Putin em Roma, na sala de um conhecido hotel de propriedade vaticana, na Via della Conciliazione, a poucos metros da Basílica de São Pedro. E depois do seu retorno a Moscou retomamos a nossa conversa nos dias mais agudos da contestação na Ucrânia. Iniciamos daqui.

O que o senhor pensa da crise em Kiev?
ALEXANDER CIUBARIAN: É o produto de várias tendências e fatores. Primeiro, a situação interna é complexa: uma consistente parte da população exprime descontentamento a propósito do poder e de como este pretende se transformar no sentido democrático; está ocorrendo um difícil processo de busca da identidade nacional e de definição das relações da Ucrânia com os outros países, para determinar o verdadeiro lugar da Ucrânia na comunidade internacional entre Europa, Rússia e Estados Unidos, potências das quais percebe a pressão política.
Obviamente a opinião sobre todos estes temas diferem, em particular nas regiões orientais em relação às ocidentais do país. O resultado de tudo isso é justamente a realidade complicada e muitas vezes dramática que estamos vendo. Mas, definitivamente, trata-se de escolhas que apenas o povo da Ucrânia deve fazer.
Uma recente pesquisa internacional mostrava que a maioria dos russos teria votado em Bush. Também o presidente Putin disse claramente que o preferia...
CIUBARIAN: Nisso há uma válida combinação entre tradição e pragmatismo. A relação entre a Rússia e os Estados Unidos é importante para a história, e sob a presidência de George W. Bush esta relação foi boa, tivemos muitos sinais positivos do apoio americano. É claro que permanecem sentimentos de antiamericanismo, que não estão ligados a esta ou aquela presidência ou política americana, mas são heranças da Guerra Fria, quando a Rússia contava com o status de superpotência. Em muitas camadas sociais russas há nostalgia, talvez não do comunismo, mas daqueles tempos em que se igualava a Washington. Nós russos, tradicionalmente, temos boas relações com os presidentes democratas americanos, mas muito mais com os republicanos.
Portanto, teoricamente, o presidente George W. Bush continuará esta política partidária estratégica com a Rússia. Creio que com os democratas na Casa Branca haveria maior atenção aos temas dos direitos humanos e da democracia interna, o que teria criado tensões com Moscou...
O que mudou depois de Beslan, o 11 de setembro da Rússia?
CIUBARIAN: A pergunta é muito séria. A tragédia de Beslan influenciou o modo de pensar não apenas do poder mas também dos cidadãos em geral. Demo-nos conta de que para nós o problema da segurança não é mais teórico, mas tragicamente concreto, pois podem acontecer ataques terroristas em qualquer parte do país. Atualmente, na Rússia, quase todos consideram que precisamos de medidas mais sérias na luta contra todos os tipos de terrorismo. O povo russo apóia o empenho do nosso presidente para reforçar o país e para ter relações mais estreitas com outros países, principalmente com os Estados Unidos e a Europa, pois queremos participar cada vez mais da comunidade internacional.
Nas grandes cidades como nos pequenos centros periféricos, que visitei recentemente, todos dizem que o presidente “deve” ser mais firme contra os terroristas, e pedem maior ordem pública interna.
Depois de Beslan voltou-se a falar da instabilidade do Cáucaso. Qual é a situação? Na sua opinião, o tipo de administração que a Rússia impõe na região é aceitável pela comunidade internacional, começando pelos Estados Unidos?
CIUBARIAN: Há dois Cáucasos. O primeiro é dentro da Rússia – Ossétia do Norte, Chechênia, Inguchétia, e muitas outras pequenas Repúblicas – o segundo é fora – Geórgia, Azerbaidjão, Armênia... Os que criticam a Rússia pela sua influência no Cáucaso russo, deveriam pronunciar-se também contra a influência dos Estados Unidos no Texas ou na Flórida! Para nós a questão da Chechênia é um perigo não apenas por si mesma, mas para todo o Cáucaso russo. A tragédia de Beslan aconteceu na Ossétia do Norte, não na Chechênia... Suponho que os países estrangeiros como os Estados Unidos e a Europa não pretendam renegar a soberania russa no nosso Cáucaso. Para o Cáucaso além das fronteiras russas queremos apenas que a situação seja tranqüila e positiva. Temos boas relações com a Armênia – onde não existem sentimentos anti-russos -, com o Azerbaidjão e com os outros Estados vizinhos. Talvez tenhamos alguns problemas de estabilização com a Geórgia, mas não temos nenhuma pretensão territorial.
O senhor continua a se referir às áreas “pós-soviéticas”...
CIUBARIAN: A minha opinião pessoal é que a Rússia, nas relações com os territórios que faziam parte da URSS, deva ser considerada não uma superpotência, mas uma “grande potência”. Se quiserem usar o termo “influência” de Moscou, isso não me entusiasma. Há, porém, outras definições, como “ajuda recíproca” ou “profunda e especial colaboração”. É um tema delicado. Todavia, na Rússia há divergência de opiniões. Recordo de um recente debate televisivo russo no qual a metade dos jornalistas presentes indicava os Estados Unidos como o inimigo que trabalha para desestabilizar Moscou e a área do Cáucaso. Eu não concordo. Creio que interesse aos Estados Unidos a estabilidade regional, porque a Rússia é um poder nuclear. Entre os Estados Unidos e a Rússia a relação não é de contraste, mas de concorrência. Recordo mais uma vez. O que aconteceu em Beslan não é um perigo apenas para o Cáucaso, mas para toda a Rússia.
 Na página ao lado, à esquerda, George W. Bush e Vladimir Putin por ocasião do G8 em Sea Island, na Geórgia (EUA), dia 9 de junho de 2004

Na página ao lado, à esquerda, George W. Bush e Vladimir Putin por ocasião do G8 em Sea Island, na Geórgia (EUA), dia 9 de junho de 2004

Como a intelligentsia russa acompanha o processo de unificação européia? Países que estiveram sob o manto soviético abriram os braços para os Estados Unidos e agora, depois do alargamento ao Leste da União Européia, fazem parte da UE... E a Otan, que ao invés de se dissolver depois de 1989, está avançando rumo ao Oriente...
CIUBARIAN: Gostaria de dizer que a minha reputação em pátria é a de um ativo pró-europeu. O meu último livro, que está para ser publicado, chama-se O europeísmo russo, e tenho absoluta certeza de que a Rússia é uma parte da Europa, por geografia, cultura, tradições... e que precisamos mais do que nunca sermos membros da UE. Depois da divisão do continente, nos tempos do socialismo, os atuais valores de referência europeus como a economia de mercado, os ideais liberais e democráticos – mesmo que possam ser discutidos os vários possíveis modelos de democracia -, foram feitos justamente pela Rússia. Além disso, a Rússia é uma federação que, para organizar as relações entre as várias partes do país olha com inte­resse à experiência de países com o modelo federal. Por isso consideramos a Europa – onde subsistem nações e culturas diferentes que dão vida a uma comunidade – um partner ideal, o exemplo de um balanço de interesses.
E quanto aos países ex-comunistas que agora fazem parte da União Européia?
CIUBARIAN: Para a Rússia acabou o tempo em que era hostil ao alargamento da Europa e da Otan ao Leste. A Otan ainda é o inimigo para os nacionalistas e para os comunistas russos, não para os outros, mesmo porque existe um acordo de “partnership for peace” entre a Rússia e a Otan. Isso apesar da permanência de interesses diversos e de uma natural concorrência. Também porque precisamos melhorar as relações com os países que faziam parte da URSS – Ucrânia e Estados Bálticos – e também com os mais independentes – Polônia, ex-Tchecoslováquia, Bulgária, etc. Mas sabemos muito bem que é diferente estabelecer uma relação entre Moscou e Kiev em relação a uma entre Moscou e Varsóvia... Alguns países, como os do Báltico, são contemporaneamente membros da UE e da Otan. E, para manter uma boa vizinhança é preciso compreensão de ambas as partes.
Há dificuldade com estes países?
CIUBARIAN: Faço parte de uma comissão histórica internacional em Riga, na Letônia, criada para pesquisar a ocupação nazista e comunista e o holocausto, e tive dificuldade em realizar este trabalho, porque vejo que nos países ex-satélites o mundo intelectual e a mídia não imaginam o quanto possa ser frutuosa uma boa vizinhança com a Rússia atual. Mas tenho certeza de que se trata apenas de uma questão de tempo: as novas classes políticas destes países, membros da UE e da Otan, são mais pragmáticas, não têm temor da nova Rússia, mesmo sendo um tão grande vizinho.
Além disso, sou chefe da delegação russa em uma Comissão bilateral de historiadores da Ucrânia e da Rússia. Vejo e entendo bem que estes países pós-soviéticos estão atualmente muito ocupados com a sua identidade nacional: a bandeira, o hino, a construção de uma história pátria... Mas neste caminho inevitavelmente depara-se em um obstáculo: o longo período no qual a sua identidade – ucraniana, bielo-russa, etc... – não era absolutamente um problema, justamente porque existia uma identidade soviética comum (ou antes ainda uma identidade russa imperial). Agora eles precisam conceber-se como nação, e mesmo que nem todos concordem na Rússia – refiro-me aos velhos e novos nacionalistas -, nós devemos dar força a essas tentativas, ou pelo menos entender que os tempos mudaram. Porém, no momento em que estes países começam a refletir e julgar seu passado, devem ter consciência de que não podem ignorar o fato de que fizeram parte da URSS, e que este reconhecimento não deve ser interpretado erroneamente e direcionado contra a Rússia de hoje! Muitas décadas atrás a Noruega fazia parte da Suécia, mas os noruegueses não sofrem pelo fato de terem pertencido a outro Estado. O mesmo deve acontecer entre nós e os Estados que pertenciam à URSS, com os quais percorremos um longo caminho comum.
Infelizmente, contrastamos com o fato de que as gerações atuais muitas vezes esquecem as passagens históricas, mesmo só dez anos depois.
E os países que não fizeram parte da URSS?
CIUBARIAN: Vale a mesma abordagem. Com a Polônia temos tradições históricas comuns, com os tchecos na história, não há exemplos de guerras e de confrontos, com a Bulgária as relações eram amistosas. A Rússia não tem problema em reconhecer estes países como membros da União Européia e ao mesmo tempo como bons vizinhos. Um exemplo é a Alemanha que, apesar de ter sido um verdadeiro inimigo no século XX, atualmente, de acordo com pesquisas, é tomada por sentimentos populares muitas vezes mais favoráveis à Rússia do que a outros Estados da Europa Ocidental!
O debate sobre as raízes cristãs da Europa foi seguido em Moscou?
CIUBARIAN: Cerca de vinte anos atrás escrevi meu primeiro livro intitulado A idéia européia na história: o ponto de vista de Moscou. Na época parecia-me óbvia a influência do cristianismo na Europa. Hoje é preciso honestamente considerar o porquê de tanta oposição sobre este ponto durante os trabalhos da Constituição Européia presidida por Giscard d’Estaing. A situação na Europa ocidental complicou-se muito. O cristianismo continua sendo um valor histórico, mas na cotidianidade de vários países europeus coexistem várias religiões: na França vivem milhões de muçulmanos, assim como na Alemanha. Para nós, cidadãos russos, este tema liga-se à interrogação: a Rússia faz parte da Europa? Não é um debate novo: já se discutia no século XIX. A Rússia, naturalmente, tem a sua vida e a sua identidade, às vezes muito diferente da européia. Não há dúvida de que somos um grande país-ponte entre a Europa e a Ásia. No nosso território moram cerca de 20 milhões de muçulmanos. Milhões de habitantes da Sibéria e do Extremo Oriente russo vivem longe da Europa. Uma vez veio ao nosso Instituto o embaixador italiano em Moscou para fazer uma conferência sobre “A Rússia na Europa”. Como tinha chegado recentemente de uma viagem ao Extremo Oriente disse: “Visitei Vladivostok e posso dizer que entre os habitantes do Extremo Oriente há europeus que vivem na Ásia”.
Depois da tragédia de Beslan, milhares de pessoas manifestam contra o terrorismo em frente das Embaixadas britânica e americana em Moscou

Depois da tragédia de Beslan, milhares de pessoas manifestam contra o terrorismo em frente das Embaixadas britânica e americana em Moscou

Então no que baseia o europeísmo russo?
CIUBARIAN: Do meu ponto de vista, não se baseia apenas no cristianismo, mas na necessidade de se unir aos valores europeus da democracia, da economia de mercado, dos direitos humanos. Quanto aos valores cristãos, ainda hoje podem servir ao objetivo de conservar a paz entre os povos, pregar o bem e a não-violência.
Atualmente, na Rússia, debate-se muito sobre o ensinamento da religião nas escolas. No nosso Instituto preparamos um manual sobre as religiões mundiais, para explicar aos jovens a história e a natureza das várias fés, obviamente dando mais atenção à ortodoxia. Na minha opinião, atualmente, a tolerância é o maior valor que a religião cristã doa à Europa e à Rússia. Agora a tarefa principal na Rússia – e para isso precisamos também do ensinamento de religião nas escolas – é a consolidação da sociedade em torno de alguns princípios.
Deixe-me concluir assim: sou otimista, tenho certeza de que escolhemos o caminho democrático e que não voltaremos atrás. Tenho absoluta certeza de que também o presidente Putin quer um Estado democrático e, como ele mesmo disse, “próximo à civilização européia”.
O senhor estava em Roma quando o coral do Exército Russo cantou no Vaticano para celebrar os 26 anos de pontificado de João Paulo II...
CIUBARIAN: Um canal de televisão russo abriu o jornal com esta matéria. Este ensemble é um grupo de dança muito conhecido desde os tempos soviéticos. É óbvio dizer que “o Exército Russo no Vaticano” tem um duplo sentido político-eclesiástico, e que em li­nha de princípio isso é um bom sinal da melhora das relações com Moscou.
Depois, se isso significa que o Papa poderá ir a Moscou, eu não sei. Sabe-se como estão realmente as coisas.


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