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ANIVERSÁRIOS
Extraído do número 04 - 2003

É de fevereiro de 303 o primeiro decreto de perseguição contra os cristãos

Mil e setecentos anos depois da grande perseguição


É de fevereiro de 303 o primeiro decreto de perseguição contra os cristãos, emanado pelos imperadores Galério e Diocleciano. Uma decisão determinada por uma feroz superstição religiosa. Um paradoxo, pois, visto de fora, o Império Romano já naquele tempo era considerado o império dos cristãos. Por uma década, a perseguição foi semente de cristãos mas também motivo de traições e lacerações na Igreja. Até o bispo de Roma, papa Marcelino, ofereceu incenso aos deuses


de Lorenzo Cappelletti


São Barlaam, vítima da perseguição de Diocleciano, é arrastado até o altar dos sacrifícios, onde o santo resiste à tentativa do carrasco de fazê-lo sacrificar aos deuses. Miniatura do Menológio de Basílio II, Cód. Vat. Gr. 1613, f. 187, Biblioteca Apostólica Vaticana

São Barlaam, vítima da perseguição de Diocleciano, é arrastado até o altar dos sacrifícios, onde o santo resiste à tentativa do carrasco de fazê-lo sacrificar aos deuses. Miniatura do Menológio de Basílio II, Cód. Vat. Gr. 1613, f. 187, Biblioteca Apostólica Vaticana

Na alvorada de 23 de fevereiro de 303 - dia dos Terminalia, festividade de Júpiter das “fronteiras” (Iuppiter Terminalis), que bem podia servir de oportunidade simbólica para acabar de uma vez por todas com a fé cristã -, os pretorianos, com uma blitz, põem abaixo a basílica cristã de Nicomédia, cidade onde residiam na época os imperadores Diocleciano e Galério. Naquele mesmo dia, ou no dia seguinte, é emanado um edito que, quanto aos cristãos, decretava a destruição dos lugares santos de culto e de seus livros sagrados; a perda dos cargos públicos e a privação do direito de defesa diante de qualquer tipo de acusação; o rebaixamento dos cristãos que ocupavam posições importantes, que, com isso, poderiam ser submetidos a tortura; e, quanto aos escravos cristãos, a impossibilidade da sua eventual alforria.
É o início da sangrenta perseguição que, durante uma década, não será apenas semente de cristãos, mas motivo também de traições e lacerações no seio da Igreja (cf. Eusébio, História Eclesiástica VIII, 2-3), a começar do que ocorre em Roma, onde o papa, Marcelino, como se lê lapidarmente em sua biografia oficial, acabou por incensar as divindades pagãs: “Ad sacrificium ductus est ut turificaret, quod et fecit” (Liber pontificalis I, 162). Não é por acaso que todo fiel pede diariamente na oração do Senhor “et ne nos inducas in tentationem”.
O aniversário de mil e setecentos anos do início dessa perseguição, conhecida como a grande perseguição ou a perseguição de Diocleciano, não teve nenhum eco nas páginas culturais da imprensa. No entanto, não se trata de um fato menor, privado de implicações para nós, modernos, “os primeiros”, dizia Péguy, “sem Jesus, depois de Jesus”, que, não captando mais o eco da luta radical e misteriosa a que alude o Apocalipse de João, não entendemos também por que a fé em Jesus Cristo tenha de ser odiada, e consideramos sua perseguição simplesmente fruto de costumes primitivos e bárbaros, no máximo instrumentalizada por outros interesses. Da mesma maneira como consideramos bárbara e/ou instrumentalizada, a despeito dos fatos, a conversão de Constantino.
Encarreguemo-nos nós, portanto, nestas páginas, de lembrar a perseguição. Valendo-nos das notícias fornecidas por dois autores daquela época, o grego Eusébio, bispo de Cesaréia, na Palestina, e o orador de língua e cultura latina Lúcio Célio Firmiano Lactâncio. Seu tom é discutível, uma vez que escrevem suas obras historiográficas como campeões de um cristianismo já vencedor. Mas nós não estamos interessados no quadro em que ambos, com maior ou menor grau de ideologia e triunfalismo, incluem vencedores e vencidos, mas, sim, nos fatos que ocorreram no Oriente na virada dos séculos III e IV, fatos dos quais eles foram, em determinados momentos, testemunhas oculares.

Os magos
e o sinal da cruz

Aqueles que sabiam interpretar, não o fígado das ovelhas ou o vôo dos pássaros, mas alguns fatos acontecidos na década anterior, podiam imaginar, bem antes daquela Kristallnacht de 23 de fevereiro, que se estava preparando a solução final.
Na década de 90 do século anterior, tinham ocorrido diversas “limpezas” entre os militares e os funcionários imperiais, ainda que esporádicas e sem implicações para a fé cristã, ao menos na aparência. Essas implicações só viriam à luz na virada do século, depois da vitória obtida pelo César Galério na segunda expedição contra os persas, da qual voltara inchado de pretensões, com o título Persicus maximus, e por influência decisiva da casta dos arúspices (os adivinhos). “Diocleciano encontrava-se no Oriente. Como costumava fazer, buscava ansiosamente presságios do futuro, sacrificando cabeças de gado e examinando seu fígado, para decifrar o que viria. Alguns dos serviçais que ajudavam numa cerimônia e conheciam o Senhor fizeram na testa o sinal imortal [da cruz]. As forças maléficas foram afugentadas por esse gesto, e os sacrifícios, atrapalhados. Os arúspices se espantaram por não distinguir os sinais a que estavam acostumados nas vísceras das vítimas, e repetiram os sacrifícios desde o princípio diversas vezes, mas as vítimas imoladas continuavam a não oferecer presságios. Até que Tage, famoso chefe dos arúspices, porque suspeitasse ou tivesse visto alguma coisa, afirmou que as cerimônias sagradas não tinham êxito porque homens profanos estavam presentes aos sacrifícios rituais. Furioso, Diocleciano ordenou que não apenas os adeptos das cerimônias sagradas fizessem sacrifícios, mas todos os que estavam no palácio, e que fossem castigados se opusessem resistência; com despachos escritos aos comandantes, ordenou que os soldados também fossem obrigados aos sacrifícios nefandos: quem não obedecesse perderia as insígnias do exército” (Lactâncio, De mortibus persecutorum X).
Como em muitos relatos de perseguição, antigos e modernos, a motivação poderia parecer insuficiente e, portanto, não crível: “É difícil para aqueles que nunca conheceram a perseguição, e nunca conheceram um cristão, crer nesses relatos de perseguição cristã”, escrevia Eliot no Coro VI de The Rock (hoje, a pretensão de resolver essa dificuldade a partir de uma chave de leitura cultural nasce de uma incredulidade ainda maior e, por sua vez, a fomenta). Mas um precedente existe para confirmá-la: a última perseguição generalizada, de 257-258, ordena a pelo imperador Valeriano - que, como faria depois Diocleciano, acolhera junto a si muitos cristãos, a ponto de que “sua casa se tornara uma igreja de Deus [•kklhsía Yeoû]”, como diz Eusébio (História Eclesiástica VII, 10, 3) -, foi certamente determinada pela superstição feroz do conselheiro Macriano. Dele fala Eusébio: “Seu mestre [o conselheiro de Valeriano, Macriano], que era o chefe dos magos egípcios, convenceu-o a mudar de rota, induziu-o a matar e perseguir aqueles homens puros e santos, pois se opunham e impediam os encantamentos imundos e repugnantes; havia de fato e ainda existem cristãos capazes de perturbar os projetos dos demônios nefastos com sua presença, com seu olhar, simplesmente com seu respiro e sua voz. Sugeriu a ele que realizasse ritos impuros, malefícios abomináveis, sacrifícios execrandos; que cortasse a garganta de pobres crianças, que imolasse filhos de pais infelizes, que abrisse as entranhas de recém-nascidos, que dividisse e fizesse em pedaços as criaturas de Deus, quase como se assim pudesse alcançar a felicidade” (História Eclesiástica VII, 10, 4).
Assim, por volta do ano 300, medidas voltadas à limpeza no Palácio e no exército, motivadas como cinqüenta anos antes por uma feroz superstição, podiam constituir perigosos sintomas de hostilidade.

Outros sintomas
Mas não eram os primeiros sintomas. Na época da primeira guerra persa, em 297, o maniqueísmo fora condenado com penas extremamente ásperas, que chegavam à decapitação e à fogueira para os chefes e seus escritos. Com efeito, era considerado “religio nova et inopinata” (Edito contra os Maniqueus) e, sobretudo, “da Persica adversaria nobis gente progressa” (ibid.). O mesmo maniqueísmo que mais tarde fascinaria Agostinho. “O fato de Santo Agostinho ter sido por nove anos ouvinte na seita de Manes é a prova de que essa heresia devia conter algo muito atraente, que, hoje, para nós que conhecemos somente uma parte das tradições antecedentes reunidas por Manes, é difícil avaliar”, observa Erik Peterson na conclusão do verbete correspondente da Enciclopedia Cattolica. (A observação de um estudioso de seu calibre deveria nos aconselhar a avaliar, fora de um “esquema de conversão”, as relações de Agostinho - tanto com os maniqueus de Roma [“amicitia eorum familiarius utebar quam caeterorum hominum qui in illa haeresi non fuissent”: Confissões V, 10, 19] quanto, mais tarde, na África, com os donatistas, dos quais não foi apenas adversário mas também admirador [aprecia, a ponto de fazê-las suas, as regras de Ticônio para a interpretação das Sagradas Escrituras] -, pois, do contrário, quase fica mais difícil acreditar nos relatos de conversão do que nos de perseguição. É algo que deve se dizer entre parênteses, mas não sem uma certa ênfase).
Ora, o cristianismo, ainda que não tão nova religio e proveniente de uma terra não tão inimiga, de qualquer forma havia surgido pouco tempo antes numa terra do Oriente, a Palestina, crucial também naquela época. Poderia sofrer a mesma sorte.
Cena de sacrifício, detalhe de um dos relevos do arco de Galério, em Tessalônica, século IV d.C.

Cena de sacrifício, detalhe de um dos relevos do arco de Galério, em Tessalônica, século IV d.C.

Política e economia
Mas é preciso acrescentar que as próprias reformas políticas e administrativas da década anterior não prometiam nada de bom. A começar pela reforma constitucional fundamental que foi a tetrarquia. Diocleciano, desde os primeiros anos de reinado, associara a si como Augusto, ainda que em posição subordinada, Maximiano, um general seu conterrâneo, dando-lhe particularmente o governo das turbulentas Gálias. A posterior afiliação de Galério a Diocleciano e de Constâncio Cloro a Maximiano, em 293, completaria a reforma tetrárquica que pretendia dar ao Império um governo mais adequado e uma sucessão indolor. Essa reforma, porém, longe de ser apenas um expediente técnico, assumia um caráter fortemente ideológico e religioso, como demonstrou William Seston no clássico Dioclétien et la tetrarchie, sobretudo a partir de 289 - o primeiro fatídico 89 -, quando Diocleciano tomou o título de “familiar de Júpiter” (Iovius) e deu a Maximiano o de “familiar de Hércules” (Herculius). Esses títulos passariam também aos respectivos “filhos”, cujos destinos, além dessa “parentela divina”, estavam entrelaçados aos dois Augustos por laços familiares. Foi em razão do entrelaçamento desses vínculos que Constâncio Cloro foi obrigado a abandonar Helena, mãe de Constantino, para desposar a filha de Maximiano.
Se, de um lado, as divindades pré-escolhidas eram do tradicional pantheon romano, não era tradicional o “parentesco divino” em que se baseava o sistema constitucional. “Esse absolutismo teocrático erigia como sistema e como verdadeiro ritual os sinais de respeito herdados pelas monarquias orientais, que gradualmente haviam entrado em uso e culminavam com a adoratio obrigatória dos príncipes” (J. Moreau, La persécution du christianisme dans l’Empire romain, Paris, 1956, pág. 104). Paradoxalmente, o poder, em Roma (a Roma que, na realidade, já fora rebaixada e abandonada como centro do Império), era exercido como nas monarquias contra as quais lançava seu maior esforço bélico. E a imitação do aparato simbólico era recíproca. Assim, sucedia que Narsete, alçado ao poder na Pérsia em 293, mesmo ano da elevação a Césares de Galério e Constâncio, proclamava-se “filho” do grande Shahpur I.
A reorganização das províncias e da administração, em função da tetrarquia, além da crescente importância do exército, haviam tornado necessária uma política fiscal que tirava dos cidadãos até a aparência de liberdade, com base no “princípio da responsabilidade coletiva aplicado com férreo rigor” (S. Mazzarino, L’Impero Romano, II, pág. 590). Estabelecidos os impostos da repartição administrativa a que estavam subordinados, os membros daquela repartição tinham de cumpri-los. Os indivíduos eram agora identificados com a terra (estamos na origem da servidão da gleba, ou feudal): “Uma unidade de trabalhadores é equivalente, para fins tributários, à alíquota de uma unidade fundiária; uma cabeça de trabalhador-colono (caput) equivale a uma unidade de superfície que possa ser trabalhada por um trabalhador-colono (iugum). [...] O Império Romano, totalmente circundado por inimigos, mal acabando de sair de guerras civis que ainda sacudiam seu conjunto, foi, assim, organizado como um imenso campo de trabalho, um canteiro onde uma plebs rusticana, atingida pela capitatio (a qual, em linha de princípio, nunca pesa sobre as plebes das cidades), trabalhava sem descanso na manutenção da civilitas romana, trabalhava para produzir gêneros alimentícios para a annona militaris e para a civilis” (idem, ibidem, págs. 589-591).
Tudo é funcional à manutenção do nível de vida adquirido pelas plebes dos grandes centros urbanos do Império e à elevação do nível de vida, para garantir sua fidelidade, de um exército cujos efetivos haviam sido quadruplicados. O preço disso era uma inflação que não parava de crescer, levando a moeda à ruína, e que o Edictum de pretiis de 301 nem ao menos arranhara. Com o início da perseguição, se acentuaram as dificuldades econômicas e a pressão fiscal que empurravam para a miséria sobretudo os mais pobres.
É preciso considerar isso também quando se fala da grande perseguição, pois qualquer crise econômica séria desemboca em lutas pela sobrevivência onde o único princípio vigente se torna a mors tua vita mea. Basta ver, em nossos dias, como a suspensão do crescimento da África não é estranha à formação de um nível de violência que não era registrado nesse continente nas décadas anteriores, para não falar das epidemias que, sem a necessidade de guerras bacteriológicas, vêm dizimando populações inteiras.
Uma perseguição inesperada
Com tudo isso, a perseguição cruenta chegava sem que ninguém a pudesse esperar.
Diocleciano reinava desde 284 e, também sob seu governo, o cristianismo parecia prosperar graças ao edito de 260 concedido pelo filho de Valeriano, Galieno, depois que o pai fora capturado na guerra contra os Partos de Shahpur I e sua pele, literalmente falando, passara a encimar o templo Parto como troféu. Aquele edito garantira e ainda garantia ao cristianismo uma situação, já desde aquele momento, quase de plena legitimidade. Tanto que, como escreve Marta Sordi, “no Oriente, a romanização e o cristianismo caminhavam, de certa forma, no mesmo passo. Dá para entender por que [...], aos olhos do oriental Manes, o cristianismo podia parecer a religião característica do mundo romano” (Il cristianesimo e Roma, pág. 479). Mazzarino acrescenta pormenores que evidenciam a insustentável contraditoriedade de um “Estado de cristãos com política anticristã”: “A Crônica de Seert dirá que ‘os deportados romanos [entre os quais estavam também o bispo de Antioquia, Demetriano, e alguns sacerdotes capturados numa das incursões de Shahpur] obtiveram na Pérsia um bem-estar maior que em sua pátria e, por obra deles, o cristianismo fez prosélitos no Oriente’. O Império Romano estava, portanto, nessa situação paradoxal: constituído de cristãos sobretudo em suas partes orientais, parecia ser o Império dos cristãos a quem o considerasse de fora; todavia, seu imperador os perseguira. [...] Estranha situação, a de um Estado de cristãos (especialmente em sua parte oriental) com política anticristã” (L’Impero Romano, II, pág. 529).
Como vimos, porém, até 303 nada mais houve que algumas providências no âmbito do exército e do Palácio, e nem essas aplicadas de maneira tão sistemática, como se pode constatar pelo fato de que alguns funcionários cristãos, como Pedro, Doroteu e Gorgônio gozavam da confiança do imperador e estavam ainda a seu serviço em Nicomédia no momento em que estouraram as perseguições. O próprio Lactâncio, que nos conta tudo isso, talvez tenha-se convertido ao cristianismo em Nicomédia perto do final do século III, quando foi para lá, proveniente da África, a convite de Diocleciano, sem por isso deixar de prestar seu serviço de orador no palácio imperial. Também a esposa e a filha de Diocleciano, Prisca e Valéria, parece que simpatizavam pelo cristianismo.
Além disso, o próprio primeiro edito de 23 de fevereiro e as outras disposições emanadas durante o ano de 303, ainda que cada vez mais duras, não previam a pena capitalpor vontade explícita de Diocleciano.
Mas, a certa altura, no início de 304, todos foram chamados indistintamente a realizar sacrifícios públicos e libações aos deuses sob ameaça de morte.
Por que essa prestação de contas? Porque a política, que tende por natureza ao entendimento e à moderação, teve de se submeter à hostilidade religiosa. “A luta assumia, assim, um significado político, mas apenas na medida em que a política se tornava ela mesma um fato religioso” (M. Sordi, Il cristianesimo e Roma, pág. 340). Diocleciano, que tinha senso político bastante para compreender que uma perseguição aos cristãos agravaria os problemas, teve de se curvar a Galério. Este, tendo voltado vitorioso do front dos Bálcãs e, depois, do front oriental, único general que conseguira domar os inimigos do Império por excelência, os Germanos e os Partos, era cada vez mais o homem forte do regime. Foi, portanto, a prevalência de Galério, como atestam nossas fontes (cf. De mortibus persecutorum XI e XIV; e História Eclesiástica VIII, apêndice), que conduziu ao embate final. Parece que, entre outras coisas, deve-se reconhecer como ação sua a provocação de dois incêndios em Nicomédia, que levaram, já depois do primeiro edito, à morte de muitos cristãos do lugar, entre os quais o bispo Antimo. Vítima, não apenas política dessa ação, foi Diocleciano, que, enchendo-se de desconfiança em relação a tudo e a todos, será tomado por uma doença mental que o fará abdicar no ano seguinte.
O arco de Galiano, monumento da época de Augusto, no lugar da antiga porta Esquilina, perto da atual via Merulana, em Roma. Na abóbada se lê uma inscrição dedicada ao imperador Galiano (veja o detalhe na página ao lado), filho de Valeriano, acrescentada nos anos entre 259 e 262 d.C.

O arco de Galiano, monumento da época de Augusto, no lugar da antiga porta Esquilina, perto da atual via Merulana, em Roma. Na abóbada se lê uma inscrição dedicada ao imperador Galiano (veja o detalhe na página ao lado), filho de Valeriano, acrescentada nos anos entre 259 e 262 d.C.

Galério estará para Diocleciano como Macriano para Valeriano? Em certo sentido, sim. Mas, por si só, ele nada mais seria que o corpulento energúmeno de que falam as fontes. Ele mesmo, na realidade, estava sob a influência da mãe, ferozmente supersticiosa, e de um neoplatonismo já reduzido a prática teúrgica, que via na fé cristã o principal obstáculo para a difusão de suas práticas mágicas. O Contra os cristãos do discípulo predileto de Plotino, Porfírio, preparou o terreno para a perseguição já antes do final do século III. Os discursos verídicosýde Hiérocles, da mesma corrente, mas de uma geração mais jovem, acompanharam a perseguição no seu desenvolvimento. E Hiérocles, como governador primeiramente da Bitínia e depois do Egito, não agiu apenas por seus escritos. Deve-se lembrar ainda o filósýfo Teotecno, superintendente em Antioquia da Síria, e outros. Na Síria, na Fenícia, na Palestina, no Egito e nas províncias da península anatólica, todos esses personagens agiram como violentos executores dos editos de perseguição quase até a paz de 313.

Pax romana e pax christiana
A paz é um tema que deve ser deixado de lado temporariamente. Aqui, devemos nos interessar apenas pelos episódios cruentos, até por uma questão de atualidade. Mas uma coisa deve ser dita desde já. Se, com a conversão de Constantino, podia parecer realizar-se o sonho de Orígenes de uma coincidência entre a Igreja e o Império, de que, na pax costantiniana, fossem soldadas a pax romana e pax christiana, a situação dos cristãos pertencentes ao outro Império, o Império dos Partos - pois é preciso lembrar que havia cristãos lá também e em outras partes, bem além das fronteiras do Império Romano, desde os tempos apostólicos - estava ali para lembrar a natureza ilusória e trágica dessa expectativa. Os cristãos no Império dos Partos são submetidos a uma perseguição que se endurece justamente em razão da pacificação constantiniana. No século anterior, como vimos acima, cristãos provenientes do Império Romano haviam encontrado em terras persas condições muito mais favoráveis ao exercício e à comunicação da fé que em sua pátria. Agora que a romanização e o cristianismo se identificavam, os cristãos são encarados, e correm o risco de eles mesmos se sentirem, como inimigos, a ponto de separar-se da comunhão com a Igreja de Roma. Desse ponto de vista, a organização da paz para todos no lugar de uma política feita de tratados resulta numa pretensão violenta, que tem como primeiro efeito condenar alguns à perseguição. Escreveu recentemente o atual prefeito da Biblioteca Vaticana, Raffaele Farina: “A organização da paz, naquela época [século IV], em vez de ser uma superestrutura de ordenamento internacional, como podemos pensá-la hoje [e como soa anacrônica essa avaliação de menos de dois anos atrás!], era tarefa e prerrogativa daquele Estado universal, o Império Romano, nas mãos do qual, por seu caráter ético e religioso, se pensava estarem os destinos da humanidade inteira. [...] O fato de o Império não ser realmente universal, no sentido de que não compreendia materialmente todo o mundo conhecido, era evidente a seus contemporâneos. Todavia, na sensibilidade comum, o Império era considerado a defesa da civilização, e o imperador, o patrono de todos os povos. Com Constantino, chega-se a afirmar a teoria segundo a qual até mesmo a terra dos foederati pertencia ao Império. A organização do mundo se confundia, assim, com a do Império. A organização de uma pax romana, a única que pudesse ser então concebida, substituiu assim, gradualmente, o ‘sistema dos tratados que Roma construíra na época anterior e que tivera como pressuposto mais o estabelecimento de uma superioridade política em função de uma ação a ser desenvolvida para o exterior do que a preocupação que se tornou dominante em seguida da manutenção da paz a qualquer custo’” (La concezione della pace nel IV secolo, in Chiesa e Impero. Da Augusto a Giustiniano, págs. 185-186).
Mas, já no início do século V, depois da proclamação da fé nicena como normativa no Império Romano, essa visão mostra seu caráter contingente e “a pax romana e a pax christiana serão contrapostas. Leão Magno é quem irá fazê-lo, não tanto em polêmica com a Roma do passado, mas com a ‘nova Roma’, Constantinopla” (idem, pág. 195).
Leão Magno não é o herói solitário que tanto agrada ao imaginário romântico e popular sobre os papas e que seu nome poderia evocar. Ao contrário, é a expressão de um aprendizado fiel, no qual é precedido, acompanhado e seguido por outros. “Inocêncio I, Leão Magno, Gelásio são os três nomes que amontoaram as pedras da liberdade da Igreja ocidental. [...] O gênio teológico de Agostinho esquadriou as pedras” (H. Rahner, Chiesa e strutttura politica nel cristianesimo primitivo, pág. 105). Quer sejam romanos, toscanos ou africanos, o que liga esses homens e muitos outros no século V é o fato de manterem a fé e a tradição de Roma (da qual faz parte também o laço imprescindível com a comunidade judaica, tal como o respeito da civilização jurídica romana e, paradoxalmente, as fraquezas de muitos de seus bispos). É dali que tomam as pedras, foi ali que aprenderam a distinguir entre a obra da natureza e a obra da graça, entre pax romana e pax christiana. A grandeza da teologia de Agostinho está justamente em ser congruente com essas pedras, não em ter saído em busca da pedra filosofal. Por isso, Inocêncio I e Celestino I, Leão e Gelásio sentem-na conatural e a assumem como sua.
Mas falaremos em outra oportunidade sobre isso.





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