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GNOSE
Extraído do número 04 - 2003

O pacto com a Serpente. Atualidade da antiga gnose e de suas perversões

É a Serpente que dá o conhecimento do bem e do mal


O pacto com a Serpente. Atualidade da antiga gnose e de suas perversões


de Lorenzo Bianchi


“É, portanto, melhor e mais salutar ser simples e ignorante e aproximar-se de Deus mediante a caridade que acreditar saber muitas coisas e, depois de muitas aventuras de pensamento, ser blasfemo contra Deus”1: com essas palavras, Santo Irineu, bispo de Lyon, que viveu na segunda metade do século II, exprime seu juízo sintético sobre as teorias das várias seitas heréticas gnósticas. Um artigo de Massimo Borghesi publicado nestas mesmas páginas2, ao tratar da gnose que está por trás da cultura moderna, lembrou sua ligação com a gnose dos antigos, especificamente com o que sugere a doutrina da seita dos Ofitas.
O conhecimento dessa seita, “os adoradores da Serpente”, chegou até nós graças a menções, em maior ou menor medida esparsas nas obras de apologistas cristãos: nas descrições de Irineu3 e Hipólito4, nas notícias mais sintéticas de Tertuliano5, Orígenes6, Epifânio7, Filástrio8, numa menção de Agostinho9. E nós a conhecemos também por fortes semelhanças com o que nos foi comunicado por Irineu de um escrito original gnóstico, a Hipóstase dos Arcontes, tratado em língua copta (o egípcio da época helenística e romana) encontrado no códice II de Nag Hammadi10.
Irineu, que viveu na época de maior difusão do pensamento dos gnósticos Ofitas, é quem sobretudo nos fala deles, ilustrando “suas coisas fantásticas”11. Para evidenciar o caráter de perversão da razão e da realidade próprio de suas teorias, é suficiente a simples leitura do balanço que Irineu apresenta com a dificuldade em acompanhar a complicada e fantasiosa história que narra, usando e abusando dos textos do Antigo e do Novo Testamento, a queda fatal e ruinosa do espírito do divino criador na matéria (cf., no primeiro box, nesta página, a exposição atribuída a Tertuliano, mais sintética, mas igualmente significativa). Os Ofitas (ou Naassenos, denominação com a qual Hipólito os conhece) tomam seu nome da Serpente (Óphis, em grego), uma vez que para eles é a Serpente o centro, o elemento preponderante do itinerário que caracteriza sua doutrina; é a Serpente, em antagonismo com o malvado demiurgo criador da matéria, quem revela o dualismo que está por trás da concepção gnóstica; é a Serpente que dá a gnosis, o conhecimento iluminado do bem e do mal; é a Serpente o elemento positivo ao qual dar culto e dirigir-se como caminho para a salvação daquilo que de “pneumático”, espiritual, ou seja, originado do criador do bem, se esconde no homem (na matéria da carne, como numa prisão), e para o conseqüente abandono eterno do que é “hílico”, material, ou seja, mal, o mal que está no mundo e que é o mundo12. Uma redenção - pelo desprezo da carne, da matéria - que pode ser alcançada também por meio do libertinismo mais perverso (cf., a respeito disso, o trecho do segundo box, na página anterior, com o qual Irineu conclui a descrição das várias seitas heréticas gnósticas13).
ýouco mais de dois séculos após Irineu, na época de Agostinho, a doutrina gnóstica tem seus reflexos na maniquéia, que mantém o caráter fundamental daquela, ou seja, o dualismo, efeito de uma dupla criação, que cinde a pessoa do homem, dividido em si mesmo entre bem e mal, entre a luz e as trevas criadas, respectivamente, por um deus bom e por um malvado demiurgo.
As mesmas características, ao longo da história, serão reencontradas nos Bogomilos medievais, os quais pregavam que Deus criou ou emanou a alma, enquanto o diabo plasmou o corpo; e, ainda, no movimento dos Cátaros.
Se, para além desses limites cronológicos, é difícil vislumbrar em termos puramente históricos que a gnose moderna tenha derivado diretamente da gnose dos antigos, ela é retomada, sobretudo como especulação esotérica14Ç numa parte da cultura moderna: as referências à seita dos Ofitas, evidenciadas por Borghesi no artigo citado no início, são um testemunho disso.



Notas

1 Irineu de Lyon. Adversus haereses II, 26, 1.
2 M. Borghesi. “O pacto com a Serpente”. In: 30Dias n. 2, 2003, pp. 52-58.
3 Irineu de Lyon. Op. cit., I, 30, 1-15.
4 Hipólito. Refutatio, onde se fala dos adoradores da serpente em três diferentes passagens: V, 7, 2-9, 9 (de um escrito dos Naassenos); V, 10, 2 (o salmo dos Naassenos sobre a alma); V, 24, 2-27, 5 (do Livro de Baruc do gnóstico Justino).
5 Alguns códices acrescentam ao texto incompleto de Tertuliano, De praescriptione haereticorum, como sendo do mesmo autor, uma continuação, publicada sob o título Libellus adversus omnes haereses. Nesse texto, fala-se dos Ofitas em II, 1-4.
6 Orígenes. Contra Celsum VI, 24-39.
7 Epifânio. Panarion I, 37.
8 Filástrio. Liber de haeresibus I, 2, 9.
9 Agostinho. De Genesi contra Manichaeos II, 36-40.
10 Cf. W. Förster (org.). Gnosis, vol. II. Zurique-Stuttgart, 1971, pp. 46-52. Nas páginas 53-62, encontra-se uma tradução alemã. Cf. também a tradução inglesa em: J. Robinson (org.). The Nag Hammadi Library in English, 2nd. edition. Leiden, 1984, pp. 152-160.
11 Irineu de Lyon. Op. cit. I, 30, 1.
12 Cf. U. Bianchi. Prometeo, Orfeo, Adamo. Tematiche religiose sul destino, il male, la salvezza. Roma, Edizioni dell’Ateneo, 1991, p. 29.
13 Irineu de Lyon. Op. cit., I, 31, 2.
14 Cf. G. Filoramo. Il risveglio della gnosi ovvero diventare dio. Roma-Bari, 1990.








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