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CAPA
Extraído do número 03 - 2005

Memória de encontros


Recordando padre Luigi Giussani


de padre Giacomo Tantardini


O último encontro de padre Giussani com João Paulo II, Praça de São Pedro, 30 de maio de 1998

O último encontro de padre Giussani com João Paulo II, Praça de São Pedro, 30 de maio de 1998

Muitas lembranças e pensamentos vêm à minha cabeça e comovem também meu coração, o que torna mais simples a oração e o silêncio. Mas, sendo que é o diretor de 30Dias quem me pede estas linhas, prevalece a lembrança da estima cheia de confiança que padre Luigi Giussani tinha por Giulio Andreotti. Na entrevista ao jornal La Stampa, Giussani citava “De Gasperi, La Pira, Moro e Andreotti” como católicos em política “atentos ao bem comum e com competência real e adequada”. Era 4 de janeiro de 1996, muito havia mudado ao longo da história política italiana e também da história eclesiástica de Comunhão e Libertação.

“O MEU SEMINÁRIO”
Assim, escrevo algumas lembranças caras, começando do último gesto plenamente consciente de Giussani, quando, aceitando morrer por Cristo (“Quero morrer por Cristo”), pediu a Julián Carrón, o sacerdote que ele mesmo havia chamado da Espanha para guiar CL, a absolvição em sua última confissão.
Que grande graça foi ter-me confessado com Giussani e ter confessado Giussani, confessando-nos da maneira como Jesus quis, como a Santa Igreja estabeleceu, como nos foi ensinado no seminário de Venegono [seminário da diocese de Milão]! Ele sabia que me deixava muito contente quando dizia “o meu seminário”. Sabia muito bem que era o meu seminário também. E que o ensinamento ali recebido, graças ao qual a Tradição da fé católica podia compartilhar com simpatia a instância moderna do sujeito, ou seja, da liberdade, era a hipótese positiva do olhar para o mundo de hoje. O ensinamento do seminário havia simplesmente confirmado as palavras de sua mãe, que ela dissera quando acompanhava o pequeno Luigi Giussani à missa na paróquia naquela manhã de março: “Como o mundo é belo e como Deus é grande!”.
Giussani me contava que monsenhor Figini, seu professor de dogmática, no dia antes da ordenação sacerdotal, o chamou para lhe dizer: “Eu só lhe recomendo uma coisa. Leia os jornais todos os dias”. Depois, levantando os olhos riso­nhos para mim: “Não. Ele não me disse: ‘Leia’. Ele me disse: ‘Dê uma olhada’”. E então eu lhe contava que também havia conhecido monsenhor Figini, quando acompanhava meu pároco, nas férias, que ia encontrá-lo no Cume de São Pedro (poucas casas, situadas num passo de montanha a poucos quilômetros de meu povoado). Naquele tempo, eu era pequeno e ficava apenas impressionado com aquele sacerdote idoso que passava os meses de verão numa paróquia de montanha, onde a luz elétrica ainda não havia chegado. Só mais tarde eu viria a saber que, àquele sacerdote que lia à luz da lâmpada a querosene nas noites de verão, Paulo VI pediria que corrigisse as primeiras formulações da doutrina sobre a colegialidade a serem apresentadas aos padres conciliares. Só mais tarde eu viria a saber que, àquele sacerdote, Giussani pediria o imprimatur para os primeiros pequenos livros de Gioventù Studentesca. E Figini deu o imprimatur sem corrigir uma só palavra. Acrescentando apenas que a redescoberta da palavra experiência traria a Giussani sofrimentos e incompreensões. Em primeiro lugar, pela acusação de modernismo. Acusação à qual se poderia responder facilmente: bastava para isso o imprimatur de Figini. Depois, nas últimas décadas, muitos oporiam, talvez inconscientemente, experiência a Tradição. Como se a experiência cristã não fosse “dar-se conta da correspondência entre o acontecimento (e, portanto, a doutrina, com os dogmas e os mandamentos) e o coração”. Giussani sorria, contente, quando eu lhe dizia que essa sua definição de experiência julgava e punha um fim à grande controvérsia teológica entre tradicionalistas e théologie nouvelle do século passado. No fundo, aquele pequeno livro sobre a experiência, com o imprimatur de Figini, retomava o que o apóstolo predileto havia escrito a respeito dos “sedutores que não reconhecem a Jesus encarnado”: “Todo o que avança e não permanece na doutrina de Cristo não possui a Deus. Aquele que permanece na doutrina é o que possui o Pai e o Fi­lho” (2Jo 7.9).
Compreende-se também assim a devoção sem par que Giussani teve por Montini, o arcebispo que, com discernimento evangélico, foi o primeiro a reconhecer “os bons frutos” de seu apostolado entre os estudantes, o Papa do Credo do povo de Deus, ou seja, da “proclamação autêntica do dogma, sine glossa, com clareza”. “O nosso Paulo VI”, disse diante de todos, durante um dos últimos exercícios espirituais da Fraternidade de Comunhão e Libertação.

Nós não sabemos quem era “Noi non sappiamo chi era” Nós não sabemos quem era, nós não sabemos quem foi, mas atendia pelo nome de Jesus Pedro o encontrou à beira do mar, Paulo o encontrou no caminho de Damasco.Vem, irmão: haverá um lugar pra você também Maria o encontrou na rua pública, O bom ladrão o encontrou em cima da cruz. Vem, irmão: haverá um lugar, um lugar pra você também. Nós o encontramos na última hora, eu o encontrei na última hora. Vem, irmão: haverá um lugar, um lugar pra você também. Agora sabemos quem era, agora sabemos quem foi: era Aquele que você buscava, e atendia pelo nome de Jesus
“ATENDIA PELO NOME DE JESUS”
Disseram-me que, depois de pedir para receber a última absolvição, olhando para quem estava ao redor de seu leito, pediu que cantassem “Noi non sappiamo chi era” (Nós não sabemos quem era). Disseram-me que pediu também várias vezes ao enfermeiro que o assistiu nos últimos dias de vida que cantasse aquela canção. Como me comoveu reconhecer aquela proximidade gratuita, aquele predileção gratuita, também nesse seu último pedido! Aquele, certamente, não era o canto metafísica e culturalmente mais profundo. Era simplesmente o canto no qual o nome mais querido (a coisa mais cara, para remeter às palavras do monge russo João) era mais vezes repetido: Jesus. “Atendia pelo nome de Jesus.”
E isso me leva a uma das primeiras lembranças que tenho de Giussani. Final da década de 1960. Uma assembléia no Centro Péguy, em Milão. Giussani pergunta: “O que nos põe em relação com Cristo?”. As várias respostas diziam mais ou menos a mesma coisa: “A comunidade, a Igreja”. E, no final, vinha a resposta de Giussani à pergunta repetida outra vez: “O que nos põe em relação com Cristo? O fato de que Ele ressuscitou”. Um seminarista, um padre da Igreja de Milão não pode esquecer o anúncio “Christus Dominus resurrexit / Cristo Senhor ressuscitou”, que “a voz apostólica do sacerdote” (como diz o Exsultet ambrosiano) repete três vezes na vigília pascal. Se Ele não tivesse ressuscitado, se não estivesse vivo em Seu verdadeiro corpo, que gratuitamente se torna presente aos seus, tornando-os, por Sua graça, Seu corpo visível, a nossa fé seria vã, como escreve Paulo (cf. 1Cor 15,14.16), e a Igreja seria um simples aparato, como escreve Giussani em Por que a Igreja.
“Atendia pelo nome de Jesus.” Lembro-me de quando me falou do título que havia sugerido para o livro no qual talvez estejam reunidas as coisas mais belas que disse: “Veja, me propuseram como título ‘A afeição a Cristo’. Mas eu sugeri ‘L’attrattiva Gesù’ (A atração Jesus)”. E também daquela vez ele me olhou e nós nos olhamos comovidos e gratos pela graça de “uma comunhão de espírito” (Fl 2,1). “Comunhão de espírito” que ele quis expressar diante de todos com a frase: “O entusiasmo da dedicação não se compara ao entusiasmo da beleza”. De fato, o nosso sim a Jesus nasce da atração que Ele é. E assim é possível sempre dizer sim, pois o sim coincide com um pedido: “Vem!” (Ap 22,17). Da mesma forma como, quando crianças, aprendemos a cantar na comunhão: “Jesus querido, vem a mim, e une o meu coração a Ti...”.
“Atendia pelo nome de Jesus.” Um dia, sorrindo, me disse: “Veja, no Paraíso você vai estar perto de Santa Teresa do Menino Jesus”. E eu, rindo: “Se você também estiver perto”. E depois acrescentou: “Quando você mandou que pusessem na capa de 30Dias a frase dela: ‘Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim’, aquele para mim foi como o iní­cio do fim, ou seja, o início do Paraíso”. E, assim, quis citar a frase da pequena Teresa de Lisieux diante de todos na Praça de São Pedro em seu último encontro com João Paulo II: “Ao grito desesperado do pastor Brand, no drama homônimo de Ibsen (“Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me engole: acaso não é suficiente toda a vontade de um homem para conseguir uma só parte de salvação?”), responde a humilde positividade de Santa Teresa do Menino Jesus, que escreve: ‘Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim’”.
“O TESTEMUNHO DO FILHO DE DEUS”
Sua última mensagem pública foi lida no TG2 (Jornal televisivo da RAI 2), na noite da véspera do Santo Natal. Um texto no qual oração, poesia e juízos sobre a condição da Igreja e do mundo se entrelaçavam. Lembro-me ainda de três palavras que são como fagulhas, para usar a imagem do livro da Sabedoria (cf. Sb 3,7), tão cara a Giussani: “...o que deve permanecer são as fagulhas: elas devem ser apanhadas como vaga-lumes pelas mãos de uma criança”.
A primeira palavra: “Um Ser novo, naquele lugar, floresceu”. Esse floresceu me lembrou logo a frase que Giussani escreveu no distante ano de 1991 a um amigo em comum. Uma frase de Heráclito: “A harmonia escondida é mais forte que a harmonia conclamada”. Cristo é a flor de Maria. Quantas vezes um sacerdote ambrosiano, recitando o hino de Natal de Santo Ambrósio, deve ter repetido: “Fructusque ventris floruit / E o fruto do ventre floresceu”.
Segunda palavra: “Tudo vem dEle, mas aqui a novidade de uma vida predomina”. No mistério de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, prevalece para nós a Sua humanidade. Predomina o fato de que Aquele que é eterno, continuando a ser eterno, começou a existir no tempo. Lembro-me do bom Augusto Del Noce, que dizia (e escreveu) que na teologia de Giussani o tempo prevalece sobre a eternidade. Se o Filho de Deus não tivesse assumido a nossa humanidade, se não tivesse realizado, no tempo, gestos de um instante passageiro, os dois cegos de Jericó não O teriam ouvido passar, e nós também, com eles, não teríamos gritado a Ele: “Transit Iesus ut clamemus / Jesus está passando, para que possamos pedir”. É o que diz Santo Agosti­nho.
Terceira palavra: “Na lembrança e na memória daquele Fato, o testemunho do Filho de Deus vem à tona cada vez mais forte...”. O testemunho dEle (cf. 1Cor 1,6). E logo me lembrei daquele 19 de março de 1979, na aula magna da Universidade Lateranense, em Roma, quando Giussani repassou toda a história de GS e de CL para chegar a um ponto “do hoje e do amanhã”, a um ponto “último”: “Nós tornamos Cristo presente por meio da mudança que Ele opera em nós. É o conceito de testemunho”. Essas palavras, poucos meses depois do início do novo pontificado, confirmavam e antecipavam o caminho da vida de um pobre cristão. Tal como as palavras tão caras do Salmo: “Fico em silêncio, não abro a boca, pois és Tu quem age” (Sl 39,10). Tal como as palavras de Giussani quando completou oitenta anos: “As coisas que aconteciam, enquanto aconteciam, suscitavam maravilhamento, de tanto que era Deus quem as realizava. Fazendo delas a trama de uma história que acontecia e acontece diante dos meus olhos”.
Caravaggio, A incredulidade de Tomé, Potsdam-Sanssoucis, Bildergalerie

Caravaggio, A incredulidade de Tomé, Potsdam-Sanssoucis, Bildergalerie

Na véspera do Santo Natal, as últimas palavras públicas de Giussani. Para dizer a verdade, suas últimas palavras a todos são as da intenção da santa missa de 11 de fevereiro, aniversário do reconhecimento pontifício da Fraternidade de Comunhão e Libertação, poucos dias antes que a doença piorasse: “Lembremo-nos com freqüência de Jesus Cristo, pois o cristianismo é o anúncio de que Deus se fez homem, e só vivendo o máximo possível os nossos relacionamentos com Cristo nós ‘corremos o risco’ de agir como Ele”.
As palavras de Giussani confortam a vida. E quando, nestes dias, o Senhor nos doa rezar por ele e com ele, não se trata tanto da lembrança das palavras quanto da renovação daquela comoção que irrigava o rosto de lágrimas porque nos era dado reconhecer e amar a mesma presença. Não se eliminava a distância entre a caridade dele e a minha pobreza, mas todos os dois éramos abraçados pela mesma graça. Como eram verdadeiras naqueles momentos as palavras de Santo Tomás de Aquino: “Gratia facit fidem / A graça gera a fé”. Aquelas lágrimas eram lágrimas de letícia (“Habet et laetitia lacrimas suas / A letícia também tem suas lágrimas”, Santo Ambrósio), lágrimas de um mesmo reconhecimento (“Lacrimae confessionis / Lágrimas de reconhecimento”, Santo Agostinho).
Giussani morreu em 22 de fevereiro, dia em que a liturgia romana lembrava a Cátedra de São Pedro. No breviário, liam-se estas palavras do papa Leão Mag­no: “As portas do inferno não podem impedir esse reconhecimento da fé que escapa até mesmo dos laços da morte. De fato, esse reconhecimento eleva ao céu”. A mim, que por graça sou como criança, que olha pedindo. A você, que agora vê face a face, na glória, Aquele que você me ajudou a reconhecer e a amar. Assim, face a face agora, você pode obter de Nossa Senhora, como me disse num dos últimos encontros para confirmar a minha frágil esperança, que se manifeste como Rainha não apenas do céu, mas também da terra.


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