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DIPLOMACIA
Extraído do número 03 - 2005

Aprofundamentos. A Santa Sé e a liberdade religiosa

O que é de César e o que é de Deus


No respeito de uma “sadia laicidade”, Estado e Igreja não são concorrentes, mas interlocutores. Entrevista com D. Giovanni Lajolo, secretário para as Relações com os Estados


de Giovanni Cubeddu


Jim Nicholson, antes de voltar para Washington para assumir o Ministério dos Veteran Affairs – confiado a ele pelo reeleito presidente George W. Bush como reconhecimento da ativa fidelidade que lhe fora demonstrada também como embaixador dos Estados Unidos junto à Santa Sé – no dia 3 de dezembro passado, concluiu um ciclo de conferências que tinha organizado em Roma com uma dedicada à “Liberdade religiosa, pedra angular da dignidade humana”. Sua Excelência D. Giovanni Lajolo, secretário das Relações da Santa Sé com os Estados, na ocasião, teve a oportunidade de recordar o quanto a missão religiosa e a vocação universal da Igreja Católica empenham a Santa Sé na promoção das grandes causas do homem e da paz. E com se sabe, entre os direitos humanos, a Santa Sé presta particular atenção ao da liberdade religiosa, dando a sua contribuição para que seja reconhecido por parte dos Estados e, principalmente, da comunidade internacional.
Sim à liberdade religiosa. João Paulo II por ocasião da audiência aos membros do Corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé, 10 de janeiro de 2005

Sim à liberdade religiosa. João Paulo II por ocasião da audiência aos membros do Corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé, 10 de janeiro de 2005

No seu discurso anual ao corpo diplomático, dia 10 de janeiro, o Papa não deixou de renovar os votos para que seja possível viver livremente a vida religiosa em todas as partes do mundo injetando segurança às autoridades de governo ainda receosas.
Agradecemos a D. Lajolo por ter aceitado comentar conosco os pontos fundamentais daquela sua conferência tão atual.
“Antes de tudo devemos recordar que as prioridades ‘estratégicas’ da diplomacia da Santa Sé são assegurar e promover as condições favoráveis ao exercício da missão própria da Igreja como tal, mas também a vida de fé dos que crêem e, enfim, ao livre exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, ancorados na natureza do homem e, portanto em uma ordem moral objetiva. Na Conferência em Roma disse que devemos recordarmo-nos das afirmações de João Paulo II, no dia 2 de outubro de 1979, por ocasião do seu primeiro discurso à Assembléia Geral das Nações Unidas: “O respeito da dignidade da pessoa humana parece requerer que, ao ser discutida e estabelecida, em vista de leis nacionais ou de convenções internacionais, a exata dimensão do exercício da liberdade religiosa, também sejam consideradas as instituições que por sua natureza sirvam a vida religiosa”. Portanto, essa é também uma razão do empenho diplomático da Santa Sé em todos os níveis.

A propósito de liberdade religiosa, é importante considerar sempre a atividade da diplomacia vaticana em sede multilateral...
GIOVANNI LAJOLO: No quadro das Nações Unidas, a importância assumida por este direito é evidente pelo cuidado com que a ONU favoreceu o seu amadurecimento e a especificação. Sabe-se que a liberdade religiosa foi reco­nhecida no artigo 18 da “Declaração Universal dos Direitos Humanos” [“Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular, ndr]. Este direito foi retomado no “Pacto Internacional sobre os direitos civis e políticos” de 1966, e a sua aplicação foi desenvolvida, também, na “Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e de discriminação fundadas na religião ou crença”, adotada em 25 de novembro de 1981. Hoje a ONU enfrenta esse tema com periodicidade regular, tanto em Nova York como em Genebra, onde a Santa Sé tem seus próprios representantes, na figura dos núncios apostólicos e status de observadores permanentes. Em Nova York o assunto é discutido todos os anos no âmbito do Terceiro Comitê da Assembléia Geral. A Santa Sé intervém formalmente sobre a questão, e participa de modo informal às negociações ligadas à resolução sobre a liberdade religiosa.
Há algum tempo, na ONU, conjectura-se um maior empenho internacional das organizações religiosas. Qual é a sua opinião?
LAJOLO: Na ONU, deu-se particular atenção a um projeto de resolução apresentado pelas Filipinas, sobre a cooperação entre as Nações Unidas e as religiões. A Santa Sé declarou-se disponível a uma tal cooperação, desde que não se interfira em questões de interesse específico para o diálogo inter-religioso, pois estas são e devem permanecer, de exclusiva competência dos líderes religiosos.
Ainda sobre o empenho multilateral da Santa Sé não podemos esquecer da atuação na Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa, a Osce, que é injustamente menos famosa...
LAJOLO: Gostaria apenas de destacar que talvez não tenha sido colocado adequadamente à luz a influência que o processo de Helsinque – do qual participavam ativamente também os países da cortina de ferro – teve na preparação da virada histórica de 1989, justamente em defesa dos direitos fundamentais do homem, et prae primis da liberdade religiosa. De qualquer modo os seus princípios continuam sendo válidos e comprometedores em toda a grande área territorial na qual atua a Osce, que sucedeu à CSCE em 1994.
O senhor poderia nos dizer alguma coisa sobre os precedentes?
LAJOLO: Em 1975, os Estados participantes do Ato Final de Helsinque adotaram o chamado “Decálogo” que, até hoje, guia as relações entre os Estados membros. E graças em particular à ação da Santa Sé, o VII princípio deste decálogo envolve expressamente a liberdade religiosa entre os direitos humanos que os Estados Unidos comprometeram-se em respeitar, para garantir a paz e segurança a seus próprios cidadãos. Nas sucessivas reuniões sobre o assunto, a Santa Sé sempre foi o ponto de referência, porque apresentava-se como porta-voz de interesses religiosos gerais e não apenas confessionais católicos. O particular empenho da Santa Sé foi o de obter uma ampla descrição do conteúdo da liberdade religiosa. A propósito vale a pena recordar que em 1º de setembro de 1980, às vésperas da Conferência da Csce em Madri, o Papa João Paulo II enviou aos chefes de Estado ou de Governo dos países membros um documento sobre o valor e sobre o conteúdo da liberdade de consciência e de religião. Isso contribuiu de modo relevante à reflexão da Csce neste campo, e teve seu reflexo no parágrafo 16 do documento de conclusão da Reunião de Viena de 1989, no qual afirma-se que a liberdade religiosa comporta para as comunidades religiosas uma série de direitos realmente essenciais.
Diplomacia Multilateral. D. Giovanni Lajolo, no centro da foto e, à esquerda, D. Celestino Migliore, núncio apostólico, observador permanente na ONU

Diplomacia Multilateral. D. Giovanni Lajolo, no centro da foto e, à esquerda, D. Celestino Migliore, núncio apostólico, observador permanente na ONU

Podemos tentar citar algumas das frentes mais delicadas na defesa da liberdade religiosa?
LAJOLO: Com uma premissa: embora a sociedade de muitos países pareça viver no “indiferentismo” religioso e as gerações mais jovens pereçam crescer na ignorância do patrimônio espiritual do povo ao qual pertencem, o fenômeno religioso não cessa de interessar e atrair cidadãos. Por isso a Santa Sé não se cansa de pedir que, no respeito de uma “sadia laicidade” – a clássica expressão que remonta a Pio XII – seja reco­nhecida a dimensão pública da liberdade religiosa. O assunto já foi levantado várias vezes pela diplomacia pontifícia, não apenas por ocasião do recente debate sobre as raízes cristãs da Europa, mas também em relação a algumas legislações nacionais. Em 12 de janeiro de 2004 o próprio Santo Padre expressou-se neste sentido, e ao fazer o discurso ao corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé recordou como um diálogo sadio entre o Estado e as Igrejas – que não são concorrentes, mas interlocutores – possa, sem dúvida, favorecer o desenvolvimento integral da pessoa humana e a harmonia da sociedade.
Entre os atuais perigos para a liberdade religiosa, na Conferência de Roma o se­nhor incluiu o dos Estados que negam o reconhecimento legal às realidades religiosas. Ao corpo diplomático credenciado junto à Santa Sé, em janeiro deste ano, o Papa lembrou que “em muitos Estados, a liberdade de religião, continua sendo um direito não suficiente ou não adequadamente reconhecido”.
LAJOLO: O reconhecimento legal da liberdade religiosa é um problema importante. Considerando que esta liberdade é um direito fundamentado na própria natureza da pessoa humana e que, conseqüentemente, precede o reconhecimento expresso pela autoridade estatal, o registro das comunidades religiosas não pode ser considerado um pré-requisito para aproveitar tal liberdade. Quando o registro das comunidades religiosas é requisito para o pleno aproveitamento e efetivo exercício do direito à liberdade religiosa, isso não poderá ser negado por parte das autoridades estatais, desde que – obviamente - subsistam as condições gerais de base, requisitadas pelos modelos internacionais.
E se o direito à liberdade de religião é admitido, admite-se também o direito a mudá-la?
LAJOLO: Em nível multilateral, a Santa Sé evidenciou várias vezes que a liberdade religiosa implica, em campo civil, também o direito subjetivo de mudar a própria religião. Esse específico direito é objeto de particular atenção nas relações bilaterais com países nos quais é reco­nhecida constitucionalmente uma religião de Estado.
Como já disse, a própria declaração universal afirma que a liberdade religiosa “inclui a liberdade de mudar a própria religião ou crença”; além disso, vários documentos internacionais, exprimiram-se do mesmo modo.
Neste ponto devemos mencionar o “Comentário Geral 22”, do Comitê dos Direitos Humanos, relativo ao artigo 18 do Pacto dos direitos civis e políticos no qual está escrito que “a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma crença, inclui necessariamente a liberdade de escolher uma religião ou uma crença e de substituir o que atualmente se crê com outro, ou mesmo assumir uma concepção atéia”. Escolhi este documento porque interpreta autenticamente o artigo 18 e tem valor vinculador para os Estados que fazem parte do pacto.
Liberdade religiosa e tolerância: qual é a relação entre ambos?
LAJOLO: Sem fazer uma análise aprofundada, devemos esclarecer que “tolerância” é um conceito bastante redutivo, e de algum modo equívoco. Às vezes a comunidade internacional e algumas de suas organizações têm a tendência a colocar a liberdade religiosa “sob a proteção” da tolerância. Penso, de modo particular, à OSCE, e à atenção que dedica a este tema no âmbito da sua chamada “dimensão humana”.
A respeito disso, a Santa Sé recordou várias vezes a afirmação de um outro documento internacional ao qual empenhou-se com firmeza: refiro-me à declaração da Unesco sobre a tolerância de 1995. Essa Declaração especifica que tolerância não significa “renúncia ou enfraquecimento dos próprios princípios”, mas antes, “liberdade de adesão às próprias convicções e aceitação de que os outros possam fazer o mesmo”. Aqueles que vivem com coerência a própria convicção religiosa não podem, como tais, serem considerados intolerantes. Mas podem se tornar intolerantes se, ao invés de propor suas próprias convicções e exprimir eventualmente respeitosa crítica às que são diversas, pretendem impor suas próprias e exercem pressões, abertas ou sub-reptícias, sobre a consciência dos outros.
Por outro lado não é contrária à intolerância a previsão de uma disciplina jurídica diferenciada para as confissões, desde que seja garantida a identidade e a liberdade de cada uma dessas. Por si, nem mesmo o reconhecimento de uma religião de Estado viola os direitos humanos. Naturalmente tal regime não deve prejudicar o efetivo e pleno acesso a qualquer um dos direitos civis e políticos das minorias religiosas. Neste sentido é útil recordar ainda que o Comentário Geral 22 do Comitê dos Direitos Humanos evidenciou que de acordo com o princípio da não discriminação por motivo de religião ou de crença, a autoridade estatal não deve limitar ao acesso a serviços e a departamentos estatais somente a fiéis da religião majoritária ou oficial.
Ao concluir a sua conferência em Roma o senhor levantou uma questão preliminar: existe um Estado em que a Igreja possa dizer que a liberdade religiosa é tão plenamente realizada que essa com a liberdade que lhe é própria – a libertas Ecclesias – está sob todos os aspectos garantida?
LAJOLO: Se a resposta tivesse que ser exata, não poderia ser positiva, sem reservas. Mesmo nos países onde a liberdade de religião é levada muito a sério e nos quais a Igreja pode-se considerar razoavelmente satisfeita há sempre alguma coisa que não responde adequadamente às suas exigências: por exemplo, em um país não é reco­nhecida a especificidade de algumas de suas instituições fundamentais (por exemplo quanto à estrutura hierárquica); em um outro não é dado o devido reconhecimento ao matrimônio canônico; em outro o sistema escolar não respeita suficientemente o direito dos pais e menos ainda o da própria Igreja; e em outros ainda o regime fiscal não considera as finalidades propriamente sociais das instituições da Igreja.
Nesses Estados, apesar de uma ou outra limitação pode-se dizer que a Igreja goza de suficiente liberdade, assim como as outras confissões religiosas. E também, a Igreja sabe aceitar certas limitações, na consciência de seu caráter peregrino, in statu viae, compa­nheira e solidária de todo homo viator que busca, conscientemente ou não, o rosto de Deus.
A libertas Ecclesiae, a liberdade que é intrínseca à Igreja, é de qualquer modo mais forte do que qualquer possível limitação que lhe seja imposta, porque deriva do mandato de Cristo e tem o profundo e grande sopro de Espírito: é a liberdade daquele amor que mora nela – tão antigo e sempre novo – pelo homem, que é a imagem viva de Deus.
A libertas Ecclesiae, a liberdade que é intrínseca à Igreja, é de qualquer modo mais forte do que qualquer possível limitação que lhe seja imposta, porque deriva do mandato de Cristo e tem o profundo e grande sopro de Espírito: é a liberdade daquele amor que mora nela – tão antigo e sempre novo – pelo homem, que é a imagem viva de Deus
Excelência, de 3 a 6 de janeiro passado o senhor esteve em um país islâmico, a Tunísia...
LAJOLO: Entre os países do Magrebe, talvez a Tunísia seja o mais aberto a critérios normativos “europeus” de liberdade religiosa. Devemos recordar que a comunidade católica da Tunísia é realmente minúscula, 20 mil fiéis, praticamente todos estrangeiros em uma população de cerca de 10 milhões de habitantes. Porém, na Tunísia, a liberdade da Igreja é essencialmente de culto: liberdade religiosa intra muros.
Nos encontros políticos notei a atenção que os governantes dão à figura do Santo Padre e às suas mensagens, à obra de paz e humanitária da Santa Sé. Eles reconhecem o papel positivo realizado pela Igreja Católica e pelas suas instituições no país, no âmbito concedido e demonstram interesse e atenção pelo diálogo.
Podemos dizer que Santo Agostinho foi o motivo da sua viagem...
LAJOLO: A exposição sobre Santo Agostinho [“Saint Augustin, africané et universalité”, organizada na ex-catedral de Cartago, na Acropolium, de 5 de dezembro de 2004 a 10 de janeiro de 2005, ndr] foi idealizada pelo ministro do exterior tunisiano Abdelbaki Hermassi, quando ainda estava no Ministério da Cultura, e o novo titular, Mohamed Aziz Ben Achour também trabalhou ativamente em favor da iniciativa. Impressionou-me particularmente o grande orgulho que os tunisianos sentem por Agostinho, o grande pai da cristandade e da humanidade que passou em Cartago os anos decisivos da sua formação que atualmente chamaríamos “universitária” e que depois de voltar da Itália à sua terra natal, como bispo de Hipona, ia freqüentemente a Cartago para os concílios provinciais dos bispos.
Num certo sentido Agostinho é “disputado” pela Argélia e Tunísia, pois nasceu em Tagaste e mais tarde foi bispo de Hipona, ambas cidades situadas no atual território argelino; mas seria anti-histórico limitar a sua figura às atuais fronteiras políticas. Agostinho é um santo tão africano – era um berbere, parece: “Afer sum” dizia de si mesmo – quanto romano... ou melhor, europeu. Santo Agosti­nho é uma figura que une: verdadeiramente católica.


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