Home > Arquivo > 11 - 2005 > Nem em guerra, nem em paz
ERITRÉIA
Extraído do número 11 - 2005

Entrevista com dom Menghisteab Tesfamariam

Nem em guerra, nem em paz


O conflito com a Etiópia acabou há anos, mas desde então a população continua armada. Pois a guerra pode recomeçar a qualquer momento, movida pelo litígio das fronteiras. Com a palavra, o bispo de Asmará


Entrevista com dom Menghisteab Tesfamariam de Giovanni Cubeddu


Aqui, antigamente, diziam que um muçulmano não tem nem céu nem terra, porque, numa charneca totalmente cristã, não se dava liberdade aos muçulmanos de possuírem um rincão seu.
Isso nos tempos antigos. Hoje o islã e o cristianismo estão no mesmo nível e, se existe um país no qual a luta pela libertação uniu, ainda mais, a todos indistintamente, é a Eritréia. Não existe sombra de conflitos religiosos entre os muçulmanos, coptas, católicos e protestantes que enchem as mesquitas e igrejas. Se a convivência era calorosa e simples no início, todos se alegraram quando a guerra acabou e consolaram quem havia perdido seus entes queridos.
Uma procissão de católicos eritreus pelas ruas de Asmará, rezando pela paz

Uma procissão de católicos eritreus pelas ruas de Asmará, rezando pela paz

Mas, quase treze anos depois do referendo pela independência, todos os homens válidos continuam armados, graças a uma relação com Adis-Abeba que se pode definir de “nem guerra, nem paz”. Se o governo continua a construir infra-estruturas, as economias familiares, em grande parte, foram deixadas sob a responsabilidade das mulheres. No sistema de educação nacional, que deveria formar talentos para o futuro do país, o que se pede agora é que ele faça sua parte no fornecimento de competências úteis, na perspectiva de uma nova guerra.
E, além disso, a chuva... tão importante para um povo dedicado à agricultura e à pecuária, e tão rara.
A Conferência Episcopal Eritréia já falou ampla e francamente (dez anos depois da independência, numa carta pastoral de 2001, God Loves this Country, Deus ama este país) do que o povo ainda espera do governo. Os problemas de todos são também os da minoria católica eritréia. Quem nos dá testemunho disso é o bispo de Asmará, o comboniano Menghisteab Tesfamariam.

MENGHISTEAB TESFAMARIAM: A Eritréia é um país pequeno e jovem. Teve trinta anos de guerra pela independência, e depois uma outra guerra pelas fronteiras com a Etiópia. É daí que nasce a crise econômica, gerada também pela seca persistente nestes últimos cinco anos. O povo tem dificuldades para obter o pão de cada dia.
De fato, mais da metade do povo depende das ajudas internacionais, em vários níveis.
TESFAMARIAM: É difícil res­ponder com estatísticas; não te­nho dados exatos, mas sei com certeza que muita gente precisa de ajuda. A economia deve ser sustentada pela produção agrícola, pelo trabalho. E para isso é preciso que haja paz, e é preciso que ve­nha a chuva. Do contrário, é natural que o povo sofra.
Mas a guerra acabou em 2000.
TESFAMARIAM: Vocês dizem “acabou”, mas para nós é uma afirmação relativa. É verdade, desde 2000 não há luta, mas enquanto a questão das fronteiras não for resolvida, o País continuará numa “quase guerra”. Não nos esqueçamos de que os homens em idade para trabalhar ainda estão no front.
Logo depois da independência da Eritréia, a Igreja se aproximou do presidente Afeworki. Depois, a Conferência Episcopal Eritréia publicou um documento que continha críticas. Quando foi que mudou a atitude dos bispos?
Acima, soldados etíopes vigiando a fronteira com a Eritréia

Acima, soldados etíopes vigiando a fronteira com a Eritréia

TESFAMARIAM: Estou em Asmará desde 2001 e não vejo uma mudança notável nas relações com o governo. A Igreja sempre encorajou tudo o que é justo e necessário para o desenvolvimento do País e a vida do povo. O documento dos bispos publicado em 2001 nasceu como uma avaliação do caminho feito em dez anos de independência. Havia algumas coisas boas, ao mesmo tempo em que era preciso notar que outras não haviam sido realizadas. Nosso gesto foi espontâneo e natural, e tomava como deixa as celebrações pelos dez anos da independência, organizadas pelo governo naqueles mesmos dias...
As exigências que a Igreja faz ao governo pelo bem da sociedade são ouvidas?
TESFAMARIAM: Bem, nós procuramos dialogar, pois fundamentalmente estamos convencidos de que seja também intenção do governo fazer nosso país crescer. É claro que nem todas as nossas exigências são acolhidas. Mas nós somos apenas um pequeno percentual, e fazemos o que podemos. Na nossa atividade, trabalhamos em escolas, hospitais, na promoção humana, espiritual e pastoral.
Se todos os homens válidos são exigidos pelo serviço militar, quem construirá o País de amanhã?
TESFAMARIAM: Eu não poderia comentar e dizer coisa alguma. A situação de tensão não acabou, e é difícil julgar neste momento. Certas coisas só podem ser entendidas por quem as vive.
Mais uma vez, a tensão com a Etiópia está muito alta...
TESFAMARIAM: A comunidade internacional, as Nações Unidas, a União Européia e a União Africana, todas colaboraram para encontrar um acordo entre nós e os etíopes, em Argel, no ano 2000. E se criou então uma Comissão Internacional para traçar as fronteiras, para chegar a uma demarcação e à paz duradoura entre duas nações irmãs. A ONU enviou suas forças para cá, para mostrar seu compromisso. Mas a Comissão se pronunciou em 2002 e nunca houve ne­nhum avanço na demarcação das fronteiras. Nós estranhamos, pois a comunidade internacional não manteve a palavra que deu de que ajudaria os dois países a tornarem o acordo efetivo. Mas não cabe a mim fazer comentários sobre a política externa de meu governo.
O senhor acredita que ainda haverá guerra?
TESFAMARIAM: Espero e rezo para que não haja. Mas, se a tensão continuar tão alta, bem, então nós temos medo. Eu, de qualquer forma, espero realmente que não.
Qual é a consistência percentual das diversas denominações religiosas presentes no País?
TESFAMARIAM: A população é metade cristã e metade muçulmana. Entre os cristãos, os católicos talvez sejam 4%, e o resto são todos coptas ortodoxos, mais um pequeno grupo de protestantes. A convivência é boa, sem problemas, e procuramos dialogar.
Mas há também aqui seitas e movimentos modernos, que já estão um pouco por toda a parte no mundo, cuja consistência e atividade é difícil de entender. Alguns de nossos fiéis, católicos e coptas ortodoxos, são atraídos por eles. Nós, de nosso lado, temos o nosso culto, rezamos, fazemos o nosso trabalho pastoral sempre respeitando uns aos outros.
Depois de 11 de setembro, e em razão dos problemas internacionais por exemplo, a guerra no Iraque a relação de vocês com os muçulmanos piorou?
TESFAMARIAM: Não, não. Entre nós está tudo bem e não há nenhum problema que tenha surgido recentemente. Porque a nossa relação tem uma história de séculos, já é um hábito arraigado no povo.
Vocês apresentaram ao governo iniciativas em comum em favor da paz ou da população?
TESFAMARIAM: Quando vemos que o povo precisa, pedimos para encontrar o governo e, normalmente, não há obstáculos. Para promover a paz com a Etiópia, os chefes religiosos de ambos os países se encontravam regularmente; agora não mais, já que o processo de demarcação das fronteiras se interrompeu e, como eu disse, falta-nos a ajuda da comunidade internacional.
Quer dizer que vocês e os bispos etíopes não têm mais contato? Mas os prelados eritreus e etíopes formam numa única Conferência Episcopal...
TESFAMARIAM: Sim, mas temos de levar em conta o momento. Rezamos pela paz e procuramos fazer o que podemos; a situação, porém, não é fácil, e não podemos fazer um gesto tão vistoso, de impacto tão forte. É claro que, quando possível, falamos com os etíopes, ainda que com dificuldade: a fronteira está fechada, e as comunicações telefônicas e postais não são permitidas.
Meghisteab Tesfamariam

Meghisteab Tesfamariam

E o que os fiéis pedem com maior insistência?
TESFAMARIAM: A paz, é claro! A paz e a chuva! Para nós, são coisas essenciais. A paz, para poder viver com todos, para que aqueles que estão no front possam voltar e trabalhar. Porque, depois, se vier a chuva, haverá necessidade também de quem cultive a terra...! A chuva é preciosa para nós, e o povo reza muito, pede-a a Deus, a todos os santos.
Quem tem uma fé diferente da católica pede as mesmas coisas hoje?
TESFAMARIAM: Sim, estou muito seguro disso; são as coisas essenciais que dariam vida de novo a este país. Quando nos encontramos com os islâmicos e os ortodoxos, volta e meia acabamos sempre falando de paz e de chuva.
Vocês se reúnem com freqüência com os muçulmanos e os coptas ortodoxos?
TESFAMARIAM: Em nível espontâneo, nos vilarejos, nós vivemos juntos a alegria de um casamento, a tristeza quando alguém morre. Na vida cotidiana, existe interação entre todas as religiões. Depois, no nível oficial, nós, chefes religiosos eritreus, nos reunimos nas várias comemorações.
A convivência entre as denominações religiosas na Eritréia é um exemplo para todos.
TESFAMARIAM: Posso confirmar isso. Diferentemente de outros países, aqui existe respeito, colaboração, particularmente entre as pessoas comuns, e por toda a parte se pode encontrar uma igreja católica ao lado de uma igreja copta, de uma protestante ou de uma mesquita. Cada um adora e reza de acordo com sua fé, e, no resto, vivemos juntos como compatriotas.
Houve atos de terrorismo no País recentemente?
TESFAMARIAM: Não, pelo que eu sei.
As obras de caridade católica estão em crise, dada a dificuldade geral do País?
TESFAMARIAM: Procuramos dialogar com o governo, ainda que as leis possam às vezes ser exigentes demais. Não perdemos a esperança, continuamos a pedir, a falar. Nas nossas obras, trabalhamos como antes. Mas o mundo ocidental mudou, ou talvez haja países demais que precisam de ajuda, e, assim, os outros países têm-se ocupado menos de nós, com relação ao envio de alimento e remédios. Nos últimos cinco anos, a nossa Igreja Católica trabalhou, por meio da Cáritas nacional e internacional, para a arrecadação e distribuição de ajudas. Não é exato dizer que hoje a lei nos impede de fazer isso. É verdade que no passado houve declarações adversas do governo, mas, na prática, pouco mudou. Somos bastante livres para fazer o que podemos, ou seja, não mais uma distribuição de alimento generalizada, tarefa que cabe ao governo, mas ajudar as pessoas mais atingidas, as crianças, os idosos e as mulheres, isso sim. E penso que, graças a Deus, nós o estamos fazendo bem: vejo que o povo está contente.
Mas, então, que tipo de colaboração vocês podem ter com o governo? Já no documento de 2001 vocês lhe pediram que fizesse a sua parte. Como foi que o governo res­pondeu?
TESFAMARIAM: Não houve uma declaração oficial favorável ou contrária; talvez até tenha havido pareceres não benévolos de membros isolados do governo, mas a título pessoal. Outros gostaram do documento, e se admiraram de com­o fomos capazes de ler o estado de espírito do País naquele momento. Nós temos os pés no chão, não estamos sofismando sobre uma lei, mas nos dirigimos à Secretaria para Assuntos Religiosos para qualquer coisa que diga respeito à nossa Igreja e pedimos explicações quando temos alguma reclamação. Eles nos escutam, mas... para que uma lei iníqua seja mudada, bem, depende do tempo e da linha que o governo quiser assumir. De qualquer forma, o caminho de comunicação com o governo não está fechado.
Qual das organizações religiosas é mais filo-governista? E o governo, manifesta alguma preferência religiosa?
TESFAMARIAM: É difícil res­ponder. No nível formal, não é possível dizer nada. O governo reconhece quatro grupos religiosos: muçulmanos, coptas, católicos e protestantes. Essa é a linha oficial. Eu não saberia dizer que interlocutor o governo prefere. Além do mais, o fato de que a denominação religiosa da maioria possa ter mais atenção por parte do governo... é normal. Entre os chefes religiosos, eu não diria que um seja mais filo-governista do que os outros. Estamos todos de acordo na intenção de querer ficar de fora da política. Esse é um pacto não escrito, mas firme entre nós. Somos pastores e fazemos o nosso trabalho sem nos intrometer na política. Dito isso, cada Igreja tem a sua identidade, a sua maneira de agir, há quem se sinta mais livre e quem se sinta mais ligado ao governo. Isso depende não apenas dos grupos, mas também das pessoas.
Apareceram seitas americanas para criar problemas?
TESFAMARIAM: Sim, o governo declarou que elas devem ser registradas. Logo que chegam, perturbam as comunidades cristãs residentes, pois levam embora seus membros, e o governo está muito atento ao fenômeno, porque cria divisão num país pequeno como o nosso. Quem, por motivos religiosos ou étnicos, suscita divisão é malvisto pelo governo, que sempre defendeu e ainda quer defender a unidade de um país que não tem nem quinze anos de vida.
Em maio de 2005, os Estados Unidos inseriram a Eritréia na lista dos países que sufocam os direitos humanos e a liberdade religiosa.
TESFAMARIAM: O gesto americano foi extremo, e não me parece justificado. Entre nós, mais de 90% da população pratica normalmente sua religião. Não é justo nos comparar à Arábia Saudita.
Não acredito que essa decisão americana de nos nivelar por baixo tenha ajudado o País. Eles nos ajudariam realmente se entendessem que os governos vão e vêm, e que o povo eritreu continua. Ou seja, é preciso zelar pelo bem do povo, não julgar tudo negativamente. A política atual do governo eritreu pode agradar ou não a nós ou a um outro governo, mas o olhar e a ação diante das coisas deveriam ter um caráter humanitário, ou seja, deveriam ajudar o povo. Se a comunidade internacional tivesse essa postura, então, sim, poderia trabalhar para que a paz volte, até para que as fronteiras com a Etiópia sejam definidas. As tropas das Nações Unidas estão aqui, mas falta uma pressão para que as decisões tomadas pela Comissão Internacional sobre as fronteiras se tornem realidade. Do contrário, essa é uma derrota das Nações Unidas e de todos os países – inclusive dos Estados Unidos – que foram testemunhas daquele compromisso. Enfim, nós, eritreus, nos sentimos traídos.
O presidente eritreu Isaias Afeworki com o ministro da Defesa Sebhat Ephrem

O presidente eritreu Isaias Afeworki com o ministro da Defesa Sebhat Ephrem

Só falta vontade política ou há quem seja contrário à solução do problema entre a Etiópia e a Eritréia?
TESFAMARIAM: Mas por que não permitir que a paz chegue a esses dois países? A paz é importantíssima. Há três anos, quando vieram aqui os quinze representantes do Conselho de Segurança da ONU e quiseram nos encontrar também, os chefes religiosos, fiz a eles este comentário: “Por favor, estamos falando aqui de vidas humanas, de povos inteiros. Por um momento, deixem de lado a política e ponham no primeiro plano as pessoas”. Há dificuldades entre os dois países, eu concordo, mas a guerra entre eles nasce do fato de não terem podido resolver seus problemas de maneira pacífica.
O senhor acredita que desta vez Afeworki e Zenawi se adequarão novamente às exigências da comunidade internacional?
TESFAMARIAM: Acho que sim. Visto que a comunidade internacional conseguiu fazê-los sentar a uma mesa em Argel, quando ainda se ouviam os ecos da guerra, por que não pode usar a mesma força de convencimento agora? Como cristãos, nós continuamos a rezar, para que Deus, que tem a história em suas mãos, tal como resolveu muitos problemas, nos ajude a superar este também. Mas Deus se serve dos homens também.


Italiano Español English Français Deutsch