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TESTIMUNHOS
Extraído do número 01/02 - 2006

Um testemunho cristão no mundo muçulmano

Um bispo católico no berço do islã


Entrevista com Giovanni Bernardo Gremoli, vigário apostólico da Arábia durante vinte e nove anos, com jurisdição sobre todos os católicos presentes na Arábia Saudita, em Bahrein, nos Emirados Árabes Unidos, em Omã, em Catar e no Iêmen: “À luz da minha experiência, qualquer atitude que mire a aguçar o confronto entre o Ocidente e o mundo islâmico é inútil e perigosa”


Entrevista com Giovanni Bernardo Gremoli de Gianni Cardinale


Uma vista de Meca

Uma vista de Meca

Este clima superaquecido pelas charges contra Maomé é terrível. Toda essa violência é terrível. Cristãos e muçulmanos assassinados, igrejas e mesquitas destruídas... é terrível. Certamente, toda essa violência deve ser condenada, não há justificativa nenhuma para tudo isso... Mesmo que tenhamos de afirmar com muita clareza que é absolutamente errado ofender qualquer religião ou qualquer símbolo religioso. Mas, como se sabe, violência chama violência.” Dom Giovanni Bernardo Gremoli, “frade capuchinho, antes de bispo”, como ele nos diz, está muito preocupado com o andamento desfavorável que estão tomando as relações entre muçulmanos e Ocidente. Mesmo porque ele foi testemunha do fato de que uma convivência entre muçulmanos e cristãos é possível mesmo naquele que é considerado o berço do islã. Afinal, Dom Giovanni foi bispo vigário apostólico da Arábia durante três décadas, com jurisdição sobre todos os católicos presentes na Arábia Saudita, em Bahrein, nos Emirados Árabes Unidos, em Omã, em Catar e no Iêmen. Todos sabem que nenhum culto público é permitido aos cristãos na Arábia Saudita; o que poucos sabem, no entanto, é que nos outros países da península arábica a situação é muito diferente, e que nas últimas décadas foram construídas igrejas, casas paroquiais e escolas nessas nações e foi concedida liberdade de culto aos cristãos. Para contar essas histórias pouco conhecidas, 30Dias decidiu entrevistar dom Giovanni Gremoli, o qual, normalmente muito reservado, aceitou nos atender pela profunda estima que tem pelo diretor de nossa revista e também pela confiança que deposita neste que escreve. Dom Giovanni nos recebe em seu humilde gabinete no Convento dos Capuchinhos de Florença, sobre a colina denominada Montughi, da qual se goza de uma esplêndida vista da cidade dos Médici. Penduradas nas paredes, uma grande imagem de São Pio de Pietrelcina, as fotos que mostram Gremoli com os papas Paulo VI, João Paulo I e João Paulo II (“espero poder pendurar logo uma foto com o papa Bento XVI”), além da foto na qual aperta a mão do xeque Zayed Bin Sultan Al Nahyan, de Abu Dhabi, “grande benfeitor da nossa Igreja”.

Excelência, em 1976, quando o senhor chegou a Abu Dhabi, qual era a situação do Vicariato Apostólico da Arábia?
GIOVANNI BERNARDO GREMOLI: Era crítica, mesmo porque meu predecessor havia sido expulso da sede histórica do Vicariato, que era Áden, no Iêmen. Existiam poucos sacerdotes, apenas onze, poucos lugares de culto, e aquele era o momento do boom petrolífero, com milhares de trabalhadores católicos vindos de todas as partes do mundo para o Golfo para trabalhar nas companhias petrolíferas e nas obras de construção de cidades e aquedutos, em número cada vez maior.
E o que o senhor fez?
GREMOLI: Aceitei imediatamente a necessidade de chamar sacerdotes, mesmo temporários, não apenas da minha Ordem, que é a dos Franciscanos Capuchi­nhos, na época em dificuldade no que diz respeito às vocações, mas também de outras congregações. Graças a Deus, entre os católicos presentes no Vicariato havia também jovens de outros países que em sua pátria já haviam sentido o chamado do Senhor. Então, decidi enviar alguns deles, os mais convictos, para estudar no exterior. Enviei sete e os sete voltaram como sacerdotes. Hoje desenvolvem sua missão no Vicariato, que, no total, pode contar com 48 sacerdotes.
Depois o senhor enfrentou a questão dos lugares de culto...
GREMOLI: Era uma questão delicada e complicada. Foi necessária muita paciência e delicadeza e também uma pitada de diplomacia para obter as permissões e os terrenos para construir igrejas e escolas. Às vezes foram necessários quatro, até oito anos para obter respostas positivas. No final, porém, chegamos a alguns bons resultados, que em algumas ocasiões até superaram as expectativas.
E como isso foi possível?
GREMOLI: Os governantes apreciaram a boa conduta de nossos católicos, os quais sempre se empenharam em observar as regras de convivência locais e mostraram um fervor religioso que impressionou positivamente as autoridades. Mais de uma vez, ouvi deles que acolhiam os meus pedidos porque os católicos rezam e rezam muito, têm uma grande participação nos momentos de culto e na vida sacramental. No fim das contas, em quase trinta anos o Vicariato conseguiu construir onze igrejas e conjuntos paroquiais, todos em terrenos concedidos gratuitamente pelas autoridades. A maioria dos edifícios sacros foi construída nos Emirados. Mas quatro igrejas foram edificadas também em Omã, onde não havia nenhuma no século XIX, e uma em Bahrein, onde a que foi construída em 1939, a primeira do Golfo, já era absolutamente insuficiente.
Onze igrejas já construídas e uma décima segunda chegando...
GREMOLI: É um fato histórico por dois motivos. Por um lado, porque nunca houve uma igreja em Catar. E, também, porque em Catar, como na Arábia Saudita, populações e governantes são muçulmanos wahabitas, uma seita notoriamente muito ortodoxa.
Giovanni Bernardo Gremoli

Giovanni Bernardo Gremoli

Voltaremos depois à Arábia Saudita. Um dos pontos fortes do Vicariato são as escolas católicas...
GREMOLI: Devo dizer que, de fato, a nossa presença no Golfo é particularmente apreciada justamente pelas nossas escolas, que têm um impacto muito positivo nas populações e nas elites locais. Em trinta anos, foram construídas no Vicariato oito escolas, sete nos Emirados e uma em Bahrein. Todas dirigidas por freiras de várias congregações (carmelitas indianas, combonianas italianas, caldéias de Bagdá, irmãs do Rosário de Jerusalém). São oficialmente reconhecidas pelas autoridades e muito estimadas tanto pelo padrão elevado de educação quanto pela disciplina e pela atmosfera de respeito e irmandade dos estudantes, que pertencem a diversas nacionalidades e religiões, e também porque estão instaladas em edifícios modernos, mantidos sempre limpos e em ordem.
Quais são as características dessas escolas?
GREMOLI: São abertas a todos e mais de 60% do total de 16.500 alunos é muçulmano. O pessoal docente é muito qualificado; sobre isso as autoridades são muito exigentes. De fato, as escolas são controladas pelos Ministérios da Educação de cada país - que enviam inspetores com freqüência -, no que diz respeito aos programas, e são controladas pelos municípios, no que diz respeito à higiene.
O ensino religioso faz parte da grade dessas escolas? Com quais critérios?
GREMOLI: O governo é obrigado a oferecer três horas semanais de ensino religioso a todos os alunos. As escolas, portanto, oferecem aulas de islã a todas as crianças muçulmanas (sunitas, xiitas ou de outras seitas), aulas de cristianismo a todas as crianças católicas e de outras denominações cristãs, e princípios de moral baseada na lei natural a todas as crianças que não são nem cristãs nem muçulmanas.
Nestes trinta anos, nunca surgiram problemas nessas escolas?
GREMOLI: Nunca registramos conflitos nacionais ou religiosos. A atmosfera foi sempre de cordialidade e simpatia mútuas. Tanto é verdade que, quando deixei a direção do Vicariato Apostólico, o ministro da Educação Superior dos Emirados Árabes Unidos, onde se encontram, como eu já disse, sete das nossas oito escolas (a outra fica em Bahrein), o xeque Nahyan Bin Mubarak Al Nahyan, quis pessoalmente expressar a mim a sua gratidão, por meio da assinatura que pôs numa foto que conservo entre minhas lembranças mais caras.
O senhor afirmava antes que as escolas são gerenciadas por freiras. Mas há também outras religiosas que se empenham na atividade caritativa...
GREMOLI: No Iêmen, as irmãs missionárias brancas, muito preparadas profissionalmente, administraram durante muitos anos alguns ambulatórios e trabalharam em vários hospitais a partir de 1972. Infelizmente, por falta de vocações tiveram de abandonar o país. Ainda no Iêmen, desde 1973, estão presentes também as irmãs de Madre Teresa de Calcutá, que atualmente gerenciam quatro institutos para crianças portadoras de deficiências e para idosos abandonados. Por muitos anos, as Missionárias da Caridade tiveram também um leprosário em Ta’izz que acolheu e tratou centenas de doentes: por sua eficiência, era chamado a Cidade da Luz, City of light, tanto que muitos doentes, curados, em vez de voltarem para seus vilarejos, preferiam continuar morando nos arredores. Tanto os líderes quanto o povo iemenita têm um grande apreço pelo trabalho das irmãs de Madre Teresa.
No entanto, em julho de 1998, três irmãs foram barbaramente assassinadas quando iam de sua casa para o instituto de Hodeida...
GREMOLI: Foi um episódio trágico, mas isolado, que custou a vida às irmãs Zélia, Aleta e Michela, e desconcertou as autoridades e o povo. Foi obra de um fanático que havia voltado da guerra na Bósnia. O presidente ficou realmente chocado com o que aconteceu, mesmo porque o próprio governo havia chamado as irmãs ao Iêmen. Madre Teresa visitou mais de uma vez o País, e as autoridades do Iêmen sempre a consideraram uma santa, tanto que, para a cerimônia de sua beatificação, o governo enviou como seu representante uma médica, membro do Parlamento, que, quando era criança, freqüentou a creche católica de Áden. A respeito do Iêmen, eu gostaria de lembrar também os religiosos que desenvolvem lá o seu apostolado.
A foto com dedicatória do xeque Nahyan Bin Mubarak Al Nahyan, ministro da Educação Superior dos Emirados Árabes Unidos, ao lado de Gremoli. “Ao meu caro Bernardo. Foi um prazer conhecê-lo, um amigo e um homem de paz e tolerância, uma bela pessoa e um homem de Deus. Desejo-lhe todo o bem”

A foto com dedicatória do xeque Nahyan Bin Mubarak Al Nahyan, ministro da Educação Superior dos Emirados Árabes Unidos, ao lado de Gremoli. “Ao meu caro Bernardo. Foi um prazer conhecê-lo, um amigo e um homem de paz e tolerância, uma bela pessoa e um homem de Deus. Desejo-lhe todo o bem”

Quem são?
GREMOLI: São quatro salesianos da província de Mangalore, na Índia. Estão muito empenhados na assistência às Missionárias da Caridade e à comunidade católica local. Os Salesianos estão presentes no Iêmen desde 1988, quando substituíram os Padres Brancos, que tiveram de deixar o País por falta de vocações.
Já falamos de sacerdotes, de igrejas, de escolas, de religiosas. Afinal, quantos são os católicos do Vicariato da Arábia?
GREMOLI: É difícil ter estatísticas, graças também ao notável rodízio de fiéis por toda a península. Segundo uma estimativa confiável, quando cheguei, em 1976, os católicos eram cerca de 200 mil; hoje, calcula-se que no Vicariato vivam pelo menos três milhões de católicos.
E de onde eles provêm?
GREMOLI: Uma vez, na saída da missa dominical na Catedral de Abu Dhabi, fizemos um censo para verificar a proveniência dos fiéis. Registramos pelo menos 93 nacionalidades. Seja como for, grande parte deles são indianos e filipinos. Estes últimos, só na Arábia Saudita, são cerca de um milhão.
Nos últimos anos de sua permanência à frente do Vicariato, foram vários os acordos diplomáticos - antes inexistentes - estabelecidos entre a Santa Sé e alguns países da península arábica...
GREMOLI: De fato, em 1998 a Santa Sé estabeleceu relações diplomáticas com o Iêmen, em 2000 com Bahrein e em 2002 com Catar. O primeiro núncio nesses países foi o arcebispo Giuseppe De Andrea, residente no Kuwait, que há pouco se “aposentou”, depois de ter feito um grande bem. Além disso, creio que Omã também esteja fortemente interessado em estabelecer relações diplomáticas com a Santa Sé. Um capítulo à parte é representado pelos Emirados Árabes Unidos. Visto que o bispo vigário apostólico da Arábia reside ali, é difícil para as autoridades locais compreender a necessidade da presença de um outro bispo, o núncio, como representante do Papa. Para eles, o vigário da Arábia já é o representante do Papa. Tanto assim que o próprio vigário é considerado um embaixador, e participa normalmente dos encontros do corpo diplomático com o xeque. Mas não excluo a possibilidade de que no futuro essa pequena anomalia venha a ser resolvida felizmente.
Excelência, até aqui falamos das “alegrias” e dos “sucessos” que amadureceram nestes últimos trinta anos, mas o senhor mesmo, em seu discurso de despedida, falou também de “dores” e “fracassos”...
GREMOLI: Penso em primeiro lugar na dor provocada pelo bárbaro assassinato das três freiras no Iêmen. Depois, apesar de todo o apoio que tivemos das autoridades para ter lugares de culto, temos de reconhecer que não pudemos assegurar a um grande número de católicos uma assistência religiosa adequada, que não pudemos garantir a eles um lugar adequado para as celebrações. São os católicos que vivem no deserto, nos campos de trabalho dos condutores de petróleo ou nas plataformas. Sem contar, depois, que muitos cristãos, tanto por falta de meios de transporte quanto por falta de permissões de seus patrões - penso especialmente nas cristãs que traba­lham como domésticas em famílias islâmicas muito numerosas -, não têm de fato a possibilidade de freqüentar a missa dominical, mesmo quando no Natal e na Páscoa são livres para fazê-lo.
O senhor lamenta também a falta de conversões?
GREMOLI: Nossa tarefa primária é procurar manter viva a fé dos católicos que lá se encontram. Além disso, sabe-se que segundo as leis locais é proibida qualquer forma de proselitismo e são vetadas as conversões. Portanto, ainda que alguém fosse tocado pela graça, esse fato não poderia ter ne­nhuma publicidade.
Um tema delicado, também aqui no Ocidente, é o dos matrimônios. Imagino que o se­nhor tenha tido de enfrentar o mesmo problema na península arábica...
A nossa presença no Golfo é particularmente apreciada justamente pelas nossas escolas, que têm um impacto muito positivo nas populações e nas elites locais. Em trinta anos, foram construídas no Vicariato oito escolas, sete nos Emirados e uma em Bahrein. Todas dirigidas por freiras de várias congregações
GREMOLI: Os matrimônios mistos, entre cristãos e muçulmanos, são fortemente desencorajados tanto por nós quanto pelos islâmicos, por muitos motivos. Deve-se recordar que segundo a lei islâmica os filhos pertencem ao pai e, por isso, o pai deve ser sempre muçulmano. Raramente concedi dispensas e, quando o fiz, foi só em casos nos quais os noivos iriam viver no exterior e o cônjuge muçulmano havia assumido o compromisso de garantir a liberdade de religião à esposa e aos filhos.
Falemos aqui da Arábia Saudita, um país que continua impermeável a qualquer abertura diante dos cristãos...
GREMOLI: Mais da metade dos nossos católicos se encontra lá. É uma região que nos lembra um pouco o tempo das catacumbas. De fato, oficialmente não são admitidos ali sacerdotes nem celebrações públicas de missas, exceto nas embaixadas. Os católicos podem rezar apenas em suas casas, sem agrupamentos de outra pessoas, mesmo que sejam parentes ou amigos. Entre 1979 e 1985, alguns sacerdotes que trabalham lá, “patrocinados” por alguma empresa, foram descobertos, presos, aprisionados e expatriados. Muitos cristãos, surpreendidos rezando juntos, tiveram a mesma sorte. Na Arábia, existe uma polícia religiosa, os mutawa, muito eficiente, que intervém imediatamente quando suspeita que haja uma reunião religiosa não islâmica. Todas as tentativas feitas em qualquer nível por vários governos, pela Santa Sé e especialmente por João Paulo II para melhorar essa situação não deram ainda nenhum resultado positivo.
Por que essa impenetrabilidade?
GREMOLI: Na Arábia Saudita reina uma monarquia absoluta muito rígida e os habitantes são sunitas pertencentes ao grupo wahabita, uma seita muito ortodoxa e intransigente. Eles se consideram os guardiães dos lugares santos de Meca e Medina, e consideram toda a Arábia um lugar santo islâmico no qual ne­nhum outro culto pode ser admitido.
Isso significa que o mais de um milhão de católicos presentes na Arábia Saudita estão abandonados à própria sorte?
GREMOLI: Bem... o Espírito Santo, apesar desses vários problemas e dessas notáveis dificuldades, trabalha de modo maravilhoso também na Arábia Saudita. Não é oportuno chegar a casos particulares, mas posso dizer que todos os anos consegui realizar minha visita pastoral, administrar as crismas e outros sacramentos, celebrar missas para muitos grupos. Posso acrescentar, além disso, que, periodicamente, um ou outro sacerdote “passa” por aqueles lados, e que a sua segurança é garantida com responsabilidade.
Portanto, os simples fiéis leigos desempenham um papel importante na Arábia Saudita?
GREMOLI: De fato, são eles que cuidam do catecismo para as crianças nas casas particulares ou em outras residências. Além disso, a “paróquia” de Riad está sob a responsabilidade de um leigo, que, auxiliado por outros, cuida escrupulosamente do que é essencial, inclusive os registros paroquiais dos sacramentos administrados pelos sacerdotes “de passagem” por lá periodicamente.
O senhor acha que a Arábia Saudita mudará, no futuro, a sua postura?
GREMOLI: É difícil fazer previsões. Quando João Paulo II faleceu, a Arábia Saudita, que não tem relações diplomáticas com a Santa Sé, enviou também uma delegação oficial para participar dos funerais. Mais tarde, outra delegação oficial saudita participou da missa de início de pontificado do papa Bento XVI. Esperamos que estes pequenos sinais tragam frutos e que a Arábia Saudita um dia permita aos cristãos ao menos poderem rezar juntos segundo a sua fé.
Excelência, quais foram os momentos mais difíceis nestes trinta anos de episcopado?
GREMOLI: Indubitavelmente, a primeira guerra do Golfo e a recente invasão do Iraque criaram uma quantidade de problemas que não foi pequena. Durante o primeiro conflito, todos os aeroportos da península arábica foram fechados e, portanto, era impossível para mim visitar os nossos católicos. Sem contar, além disso, que se criou um clima mais hostil, não muito simpático para conosco. Por sorte, a posição decidida e clara do Papa e da Santa Sé facilitaram a superação dessas dificuldades. Porque muitos muçulmanos - os mais informados e os mais honestos - entenderam que a Igreja Católica não deveria ser confundida com o Ocidente e com os Estados que estavam em guerra. A mesma coisa aconteceu quando começou a guerra que levou à invasão de Bagdá e à queda do regime de Saddam Hussein.
Qual foi a personalidade islâmica que mais o impressionou nestes trinta anos?
GREMOLI: Uma figura que merece uma lembrança particular é a do saudoso xeque Zayed Bin Sultan Al Nahyan, que aceitou que em 1976 a sede do Vicariato se transferisse da sede histórica de Áden, no Iêmen, para o seu emirado de Abu Dhabi (cf. box). Mas merecem também uma lembrança particular o emir de Catar, o rei de Bahrein e o sultão de Omã. Todas personalidades que foram muito benévolas para com os católicos e que merecem portanto ser conhecidas.
Comecemos do emir de Catar...
GREMOLI: O emir Hamad bin Khalifa al-Thani me acolheu com grande afabilidade e disponibilidade quando ainda era príncipe herdeiro. Sempre se mostrou muito interessado pelo mundo cristão, a ponto de, há três anos, organizar em Doha uma conferência para o diálogo entre estudiosos e especialistas cristãos e muçulmanos. O cardeal Jean-Louis Tauran chegou a participar da segunda edição, em 2004; quando ele era “ministro das Relações Exteriores” do Vaticano, sempre esteve próximo de nós e nos foi de grande ajuda. Por ocasião dessa segunda conferência, no discurso de abertura, o emir disse claramente que para um verdadeiro diálogo era necessária a presença de todos os povos do Livro e, portanto, também dos judeus. Lembro-me muito bem de que não faltaram reações negativas a esse anúncio, mas, de fato, para a conferência de 2005 foi convidada uma delegação judaica. Isso é ainda mais extraordinário porque, como eu já disse, Catar é um país wahabita. Todos esperamos que isso seja de bom auspício para a Arábia Saudita.
Dom Giovanni Gremoli com os professores da escola São José de Abu Dhabi

Dom Giovanni Gremoli com os professores da escola São José de Abu Dhabi

Passemos ao rei de Bahrein...
GREMOLI: O rei Hamad bin Isa al-Khalifah merece toda a nossa simpatia e gratidão não apenas pela sua abertura pessoal e pela cordial acolhida, mas também pelos méritos conquistados por seus antepassados. A dinastia que dirige Bahrein foi sempre benévola para com os católicos. Em 1939, o trisavô do atual soberano, como eu já lembrei, deu seu consentimento para a construção da primeira igreja católica no Golfo. O pai do atual rei não gostou muito quando ficou sabendo que a Santa Sé havia escolhido Abu Dhabi para a nova sede do Vicariato, e não o seu Bahrein, mas depois entendeu que se tratava de uma escolha devida a motivos tipicamente logísticos, visto que para o vigário apostólico seria mais complicado deslocar-se de uma ilha como é Bahrein.
E agora uma lembrança do sultão de Omã...
GREMOLI: Todas as vezes que pedimos ao sultão Sayed Qabus bin Said autorização para construir uma nova igreja, ela sempre quis informar-se com precisão sobre qual era o número de cristãos, e quando descobriu que eram muitos sempre foi muito generoso na concessão de terrenos. Lembro-me de um longo encontro que tive com ele: com uma cordialidade fraterna, ele quis saber como estavam os católicos no sultanato, qual eram os seus problemas. Na mesma ocasião, não deixou de me garantir que para ele todas as pessoas que vêm de outros países são preciosíssimas, que devem ser assistidas e tratadas com justiça e benevolência, “porque”, como me disse, “foram eles que contribuíram para o desenvolvimento do País e temos de ser muito gratos por isso”.
Mas essas figuras que o senhor quis recordar são exceções ou são plenamente representativas dos países que governam?
GREMOLI: Creio que sejam representativas da mentalidade desses países, ainda que certamente nos últimos anos eu tenha podido registrar uma mudança que não foi positiva. Não quero dizer que as relações com as autoridades e com as populações te­nham piorado. Mas diminuiu um pouco a grande familiaridade que antes existia.
Por quê?
GREMOLI: Culpa da influência negativa exercida por grupos fundamentalistas provenientes de fora. Grupos que oficialmente não estão presentes nesses países moderados, mas que não deixam de fazer sentir sua influência negativa.
Como pode ser, na sua opinião, uma postura construtiva diante do mundo islâmico?
GREMOLI: Deve se basear no diálogo e num maior conhecimento mútuo. O diálogo deve ser sobretudo sobre temas religiosos. Pessoalmente, creio que assentar o diálogo sobre temas políticos, culturais ou históricos seja ainda complexo demais e arriscado. O diálogo religioso deve visar concretamente promover a liberdade de culto e o respeito aos símbolos das várias religiões. Deve ter por finalidade um acordo para a condenação absoluta da destruição de igrejas ou de mesquitas. A propósito disso, me parece exemplar o fato de o papa Bento XVI, no Ângelus de 26 de fevereiro, ter condenado a violência que estourou recentemente na Nigéria sem diferenciar “violência islâmica” e “violência cristã”. Os líderes das duas religiões deveriam contribuir também para favorecer um maior conhecimento recíproco. Há muita ignorância de um e de outro lado. Nem todos sabem, por exemplo, que não apenas os muçulmanos, mas também os cristãos árabes, em suas orações e liturgias, dirigem-se ao Senhor chamando-o Alá. Assim, quando os cristãos ocidentais fazem ironias a respeito de Alá, na realidade ofendem também os cristãos árabes.
Bahrein foi sempre benévolo para com os católicos. O trisavô do atual soberano deu seu consentimento para a construção da primeira igreja católica no Golfo. O pai do atual rei não gostou muito quando ficou sabendo que a Santa Sé havia escolhido Abu Dhabi para a nova sede do Vicariato, e não o seu Bahrein, mas depois entendeu que se tratava de uma escolha devida a motivos logísticos
Na sua opinião, é necessário pretender que exista reciprocidade com o mundo islâmico?
GREMOLI: A reciprocidade é uma coisa boa. A plena reciprocidade é obviamente algo que se deve desejar. Mas é preciso sermos realistas. Não podemos pretender hoje reciprocidade em coisas não essenciais, marginais, reciprocidade que às vezes não têm nem os grupos muçulmanos minoritários em seus países islâmicos. Creio que o essencial seja a liberdade de poder praticar a própria religião, de ter um lugar de culto, e de ser respeitados como filhos de Deus. Portanto, por exemplo, se as autoridades me concedem a autorização de construir uma igreja, desde que fora dela não apareçam símbolos cristãos, não posso ser tão intransigente a ponto de pedir que a igreja em questão tenha um alto campanário com uma cruz em cima. Do contrário, ponho em dificuldade as próprias autoridades que foram benévolas para conosco e elas acabam anulando até mesmo a concessão que me deram...
Há ainda quem não consiga compreender por que a Arábia Saudita financiou a construção de uma grande mesquita em Roma, ao mesmo tempo em que não admite nenhuma igreja em seu solo...
GREMOLI: A mesquita em Roma está bem onde está. Até porque, mesmo tendo sido financiada de maneira geral pela Arábia Saudita, dela usufruem também muitos muçulmanos de outros países nos quais a nós, cristãos, é permitido ter lugares de culto. Além disso, a permissão para construí-la foi pedida pelo então rei Feisal, soberano de grande abertura também para com os cristãos, e que foi assassinado talvez justamente em razão dessa abertura.
Excelência, aqui na Itália políticos como o presidente do Senado, Marcello Pera, jornalistas como Oriana Fallaci e artistas como Franco Zeffirelli defendem um confronto mais forte com o islã, desejando quase que haja um maior orgulho por parte do mundo cristão. São todas personalidades da Toscana, como o senhor...
GREMOLI: Franciscanamente, não quero brigar com ninguém. São posturas que respeito. Mas que, à luz da minha experiência, me parecem pouco compreensíveis. Não importando quais sejam as possíveis boas intenções, aguçar o confronto entre o Ocidente e o mundo islâmico é inútil e perigoso. Além disso, com relação a alguns aspectos morais e religiosos, os muçulmanos têm muito a nos ensinar. Por isso, há pouca coisa da qual possamos ter orgulho. Além do mais, a fortaleza e a prudência são virtudes cristãs, o orgulho não.
O senhor teme uma “guerra de civilizações” entre o islã e o Ocidente?
GREMOLI: Deus nos livre disso! O rei de Bahrein, durante a Conferência de Diálogo Islâmico-Cristão celebrada em seu reino em outubro de 2002, disse: “Nós, na atual conjuntura histórica, temos uma tremenda oportunidade de convergir novamente para objetivos novos e essenciais, apoiando os valores da tolerância e da harmonia, e sublinhando a necessidade de combater o extremismo em todas as confissões religiosas”. Eu assino embaixo, plenamente. Considero essencial evitar um confronto entre duas grandes realidades, a cristã e a islâmica, que poderia ter conseqüências desastrosas para todos.
O senhor foi o último de uma série de cinco bispos vigários apostólicos da Arábia, todos capuchinhos e de origem toscana. Agora seu sucessor é um confrade suíço, Paul Hinder.
GREMOLI: Para a escolha do meu sucessor, a Ordem dos Capuchinhos, tendo à sua frente o ministro-geral John Corriveau, ofereceu o que tinha de melhor à sua disposição. O bispo Paolo foi durante dez anos assistente do ministro-geral, conhece cinco línguas e está estudando o árabe, é formado em Direito e Teologia, é um homem de grande experiência. Eu o tive por um ano como auxiliar e pude admirar a sua fé e as suas capacidades humanas. Estou certo de que fará um grande bem.
Excelência, uma última pergunta. O senhor sente falta do ar da península arábica?
GREMOLI: É inútil negar, um pouco sim. Deixei uma comunidade cristã viva, que vive sua fé com alegria, que olha para o futuro cheia de esperança. Pense que só na paróquia de Santa Maria de Dubai, em 2005, foram administradas 500 crismas e 850 primeiras comunhões, 4.200 crianças freqüentaram o catecismo semanal, e durante o tríduo pascal foram distribuídas cem mil santas comunhões. Entre nós, aqui, a realidade certamente não é tão reconfortante...


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