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RATZINGER ESTUDIANTE EM...
Extraído do número 01/02 - 2006

O novo início que desabrochou entre os destroços


“Ele me disse: meu nome é Joseph Ratzinger, e eu tenho algumas perguntas para fazer ao senhor. Começou ali a grande amizade de uma vida inteira. Nunca nos perdemos de vista. E se um de nós tinha alguma coisa para dizer ao outro, ligava.” Encontro com o professor Alfred Läpple, preceptor do futuro sucessor de Pedro no seminário de Freising


Entrevista com Alfred Läpple de Gianni Valente e Pierluca Azzaro


O jovem Joseph Ratzinger em 8 de julho de 1951, dia de sua primeira missa

O jovem Joseph Ratzinger em 8 de julho de 1951, dia de sua primeira missa

Só existem duas cópias datilografadas da primeira obra de Joseph Ratzinger, encadernadas em marroquim vermelho. A inscrição em caracteres amarelo-ouro na capa esclarece que se trata de uma tradução, a versão para o alemão da Quaestio disputata de Santo Tomás sobre a caridade. Uma das duas cópias está em poder do autor. A outra é conservada por Alfred Läpple em sua casinha de Gilching, nos subúrbios de Munique. Ele conta: “Nós a traduzimos juntos, li­nha após linha. Foi em 1946. Eu me lembro de que procurávamos as versões originais de todas as citações: Platão, Aristóteles, Agosti­nho... Depois, muitos anos depois, o manuscrito original começo a se deteriorar, e então a minha secretária bateu de novo o texto a máquina e mandou encadernar duas cópias. Uma eu dei de presente a Joseph em 17 de março de 1979, quando, por ocasião da festa de Santo Tomás, ele veio a Salisburg, na aula magna da Universidade onde eu lecionava, para dar uma lição magistral sobre ‘As conseqüências da fé na criação’”. O mês de janeiro está para acabar, e os jornais alemães ainda falam da Deus caritas est. O professor Läpple, tendo nas mãos a sua preciosa cópia datilografada e encadernada, sugere o que deduziu: “Quando ouvi qual era o tema da primeira encíclica do papa Bento XVI, pareceu-me sugestivo que remetesse a esse seu opus primum, escrito pouco tempo depois de iniciar o seminário, em 1946: isso significa que no início, no seu novo início, a caridade está sempre presente...”.
Neva em Gilching e em boa parte da Baviera. Nas colinas, bem aqui atrás, o jovem Ratzinger cumpriu seu serviço militar numa bateria antiaérea em 1943, durante a Guerra. O velho professor de coração jovem - uma carreira universitária de prestígio, como docente de Pedagogia, cento e cinqüenta livros publicados em todo o mundo - saiu esta manhã, de camisa e casaco, para limpar com a pá a vereda do seu jardi­m. Dizem que com noventa e um anos ainda dirig­e a sua nova Mercedes despreocupadamente. Mas, hoje, é o fio das recordações que o guia pelas veredas apaixonadas de sua vida. Em sua sala de visitas cheia de sol, ele nos revela o segredo de uma amizade que já dura sessenta anos. E que é também a história do início da vida de um jovem que se tornaria o sucessor de Pedro.

Quando foi que o senhor conheceu Joseph Ratzinger?
ALFRED LÄPPLE: Era 4 ou 5 de janeiro de 1946. Eu acabava de voltar do campo de prisioneiros americano. Mais de sete anos antes, em 1939, quando tive de partir como soldado da Luftwaffe, faltava-me apenas um ano para me tornar sacerdote. Assim, logo que voltei, liguei para o seminário de Freising para saber o que devia fazer. Falei com o novo reitor, Michael Höck, um sacerdote que sobrevivera a cinco anos nos campos de Sachsenhausen e Dachau, onde acabou escrevendo artigos contra Hitler no jornal diocesano. Eu já o conhecia, pois havia sido meu preceptor quando eu cursava o seminário menor.
O que o reitor Höck lhe disse?
LÄPPLE: Ele me disse: caro Alfred, eu já o esperava; tenho uma ótima tarefa para você. Eu gostaria que você fosse o preceptor dos novos alunos, que nunca estiveram no seminário. Fui até lá e ele me levou para a maior sala (roter Saal) que havia no seminário, normalmente aberta apenas para as celebrações solenes. Haviam arrumado as carteiras e as cadeiras e estavam ali sessenta calouros. O reitor Höck disse a eles: caros rapazes, eis o melhor homem que encontrei para vocês; vocês ficarão bem com ele. Entre aqueles sessenta rapazes estavam também os dois irmãos Ratzinger. Alguns dias depois, durante uma pausa de tempo livre, um desses jovens, que eu ainda não havia conhecido, aproximou-se de mim. Ele me disse: meu nome é Joseph Ratzinger, e eu tenho algumas perguntas para fazer ao senhor. Daquelas perguntas nasceu o nosso primeiro trabalho juntos. E foi o início de muitas conversas, de muitos passeios, de muitas discussões apaixonadas e de muitos trabalhos que fizemos juntos. Começou ali a grande amizade de uma vida inteira. Nunca nos perdemos de vista. E se um de nós tinha alguma coisa para dizer ao outro, ligava ou escrevia, como fizemos muitas vezes.
Aqui, acima, a Frauenkirche de Munique em 1944, devastada pelos bombardeios aliados

Aqui, acima, a Frauenkirche de Munique em 1944, devastada pelos bombardeios aliados

O senhor, como preceptor dos seminaristas, tinha um currículo fora do comum: a guerra, o campo de prisioneiros... Como tinha sido tudo isso?
LÄPPLE: De 1939 a 1945 eu estive na Luftwaffe, depois acabei prisioneiro dos americanos na Alema­nha, na região da Vestfália, perto de Hamm. Dali me deportaram para a França e estava quase para ser embarcado para os Estados Unidos, mas, entre abril e maio de 1945, a guerra acabou e nos transferiram para um campo de prisioneiros perto de Le Havre. Éramos quase meio milhão, divididos em grupos de mil. Eu rodava pelo campo com o capelão militar americano, para o qual servia de intérprete. Percebi que aquele lugar estava cheio de padres, seminaristas, pastores protestantes, estudantes de teologia. Alguns eu até conhecia. Consegui fazer com que fossem reunidos num campo à parte. Eram mais de trezentos, entre católicos e protestantes. Organizamos também cursos de teologia no campo. Mais tarde aquelas aulas que eram dadas no campo chegaram até a ser publicadas. No frontispício desse livro, escrevi uma epígrafe de Kierkegaard: “O cristianismo não é uma doutrina, mas uma vida que se comunica”. Eu ainda não havia conhecido Ratzinger, mas foi dentro dessa maneira de sentir que tínhamos em comum que nós nos encontramos mais tarde. Era dessas coisas que sempre falávamos com fervor.
Quando o senhor foi para a guerra, faltava pouco para se tornar padre. Onde o senhor estudou?
LÄPPLE: Eu sou de 1915. Depois de três anos de teologia e filosofia no colégio de Freising, comecei os estudos universitários na Faculdade Teológica de Munique. Sob a direção do professor Theodor Steinbüchel, comecei a trabalhar numa dissertação em Teologia sobre o tema da consciência do indivíduo na Igreja segundo Newman. Mas, em fevereiro de 1939, a Faculdade Teológica de Munique foi fechada pelos nazistas, pois o cardeal Faulhaber negou-se a aprovar um professor hitlerista, o doutor Hans Barion, que, desde 1933, era membro do Partido Nacional Socialista (Nsdap). E logo depois começou a guerra...
Um jovem prestes a se tornar sacerdote, apaixonado por Newman e pelo personalismo... com que espírito o senhor ia para a guerra?
LÄPPLE: Com um coração dividido. Hoje é fácil dizer que poderíamos ter dito não. Mas, na época, a objeção de consciência equivalia à condenação à morte. Eu fui mandado para uma escola de oficiais de Baden, em Viena, mas me recusei a me tornar oficial. Eu pensava: se Hitler vencer, nunca serei sacerdote. Acabarei sendo soldado, talvez na Noruega, ou no norte da África. Se quiser me tornar sacerdote, a Alemanha tem de perder. Era esse o meu tormento. Era essa a tragédia que tínhamos à nossa frente. E que muitos, já naquela época, logo depois da guerra, tiveram a coragem de contar.
O instituto Georgianum, que hospedava os alunos da Faculdade Teológica de Munique

O instituto Georgianum, que hospedava os alunos da Faculdade Teológica de Munique

De que forma?
LÄPPLE: Fazia poucos dias que eu havia voltado do campo de prisioneiros e, em Munique, assisti a uma conferência do escritor Ernst Wiechert. Nunca esqueci suas palavras: “Considerem isto, meus amigos, e permitam que seja gritado mesmo àqueles que venceram entre o povo... Sabemos que milhares voltaram as costas aos demônios, e que pouco a pouco esses milhares se transformaram em centenas de milhares e milhões... Sei que eles não tinham a coragem de abrir seus lábios, pois isso significaria a morte. Eram obedientes, eram silenciosos, mas cada passo de sua vida era como pisar em espinhos. E, de noite, quando ninguém os via, eles levantavam as mãos a Deus e rezavam pela vitória dos ini­migos. O mundo sabe o que significa uma oração como essa? O mundo sabe o que o povo deve ter sofrido para rezar dessa forma?”.
Dachau é aqui perto. Vocês sabiam o que acontecia ali?
LÄPPLE: Eu tinha amigos que haviam trabalhado em Dachau, e sabia alguma coisa. Mas cada um deles me dizia: Alfred, não posso falar; se disser alguma coisa, volto para lá e não saio mais.
Aqui também, bem atrás da sua casa, estão as colinas onde o jovem Ratzinger prestou seu serviço militar numa bateria antiaérea em Gilching...
LÄPPLE: Ele mesmo conta esse período em sua autobiografia. Ele também, depois, acabou num campo de prisioneiros americano, de onde foi libertado em 19 de junho de 1945. A data ficou impressa na mi­nha memória porque é o dia do meu aniversário. Naquele dia, eu completava trinta anos.
O horror do qual vocês estavam saindo condicionava o clima no seminário que acabava de ser aberto?
LÄPPLE: Todos os dias apareciam nos jornais os relatórios do processo de Nuremberg, ou fotos com montanhas de cadáveres dos campos de concentração. Nós nos perguntávamos como tudo aquilo tinha sido possível. Mas todas essas coisas causaram em nós esta reação: agora temos de começar do zero. Em primeiro lugar, estávamos contentes pelo fato de a guerra ter acabado, não agüentávamos mais aquela situação de guerra. Queríamos nos tornar sacerdotes. Estávamos felizes por finalmente poder começar a estudar.
Sem olhar para trás?
LÄPPLE: Era como partir de novo do zero. Aquilo tudo havia acabado, chega, era preciso deixar de falar daquelas coisas. Sabíamos que depois, no confessionário, viriam nos encontrar tanto as vítimas quanto os autores das carnificinas. Eles nos contariam: eu estava no campo de concentração. Ou: eu era da resistência. Ou ainda: eu estava na guerra e matei os homens da resistência.
Perdoe-me se insisto. Aquele era um novo início de um seminário. Vocês estavam se preparando para testemunhar a fé cristã entre as mesmas pessoas que tinham tido sua vida revirada pelo nazismo e pela guerra. Não nascia entre vocês uma pergunta comum sobre o que havia acontecido?
LÄPPLE: Eu repito: diante do que havia acontecido, estávamos todos em estado de choque. O fato de cristãos terem construído os campos de concentração... Não havia o que discutir, nenhuma resposta nossa poderia explicar aquilo. Hitler nunca deixou a Igreja... Mas, diante disso, não tinha sentido ficar desenterrando aquelas coisas entre nós. Deus nos havia salvado, Ele nos fizera sair do abismo e só Ele, com o seu perdão, podia curar os corações. Era como se o fim da guerra nos tivesse dado a vida de presente uma segunda vez. Só tínhamos de agradecer a Deus com as nossas vidas, sendo bons sacerdotes. A partir daquele momento, serviríamos aos nossos irmãos não por algumas horas, mas para sempre.
Naquele seminário, como conta Ratzinger, havia também seminaristas de trinta ou quarenta anos, que tiveram de suspender seus estudos quando foram para a guerra, e que haviam vivido todos os seus horrores...
LÄPPLE: Entre eles havia também pessoas tinha tido papéis de comando durante a guerra. Depois que me tornei sacerdote, todos vinham se abrir comigo, pois eu era aquele que também havia estado na guerra. Eles diziam: não posso falar com o reitor, ele esteve no campo de concentração, não foi para a guerra, não pode entender... Entre eles havia um acordo tácito: ninguém sabia onde o outro havia estado e o que havia feito.
O que lhe contavam?
LÄPPLE: Eles me perguntavam: eu fiz isso, fiz aquilo, posso me tornar um bom padre em sã consciência? Lembro-me de um que havia sido major e matara pessoas. Ele dizia: não posso me tornar sacerdote; toda vez que começasse a missa dizendo “Dominus vobiscum” alguém poderia se levantar e gritar: você é um assassino. Um outro, quando se retiravam da Rússia, havia atirado num colega ferido e com a perna amputada que lhe implorava que o matasse para não sofrer mais. Ele me perguntava: padre, eu o matei, mas aquilo foi mesmo homicídio?
E o senhor, o que respondia?
LÄPPLE: Procurava confortá-los. Dizia: se eu estivesse no seu lugar, teria feito pior.
No início, o senhor disse que Joseph Ratzinger, no primeiro encontro entre vocês, também veio lhe perguntar alguma cois­a. O que foi que ele perguntou?
LÄPPLE: Ele me perguntou: como o senhor pôde conservar a fé durante todo o tempo da guerra?
E o senhor, o que respondeu?
LÄPPLE: Eu lhe disse que tinham sido as orações de minha mãe, que ele mais tarde quis conhecer. E que eu sabia que Cristo me amava, e que, se me salvasse da guerra, Ele mesmo consumaria a minha vida.
O professor Läpple mostra a tradução da Quaestio disputata de Santo Tomás sobre a caridade, realizada por Joseph Ratzinger em 1946

O professor Läpple mostra a tradução da Quaestio disputata de Santo Tomás sobre a caridade, realizada por Joseph Ratzinger em 1946

Como se organizava a vida no seminário de Freising?
LÄPPLE: A metade do seminário ainda servia como hospital para doentes em quarentena, e era lá que estavam internados os feridos dos exércitos aliados. Mas procuramos desde o início organizar a vida de um seminário normal. Os jovens dormiam em grandes dormitórios em grupos de quarenta; cada um tinha sua cama cercada por uma espécie de tenda branca, usada como divisória. De manhã, despertava-se às 5h30, depois havia a missa, o café da manhã, as aulas. Respeitando as regras introduzidas durante a secularização, os cursos de matérias mais relacionadas à pastoral eram dadas no seminário. As mais científicas eram dadas na Escola Superior de Filosofia e Teologia, um instituto público que ficava no prédio ao lado do seminário. Depois do almoço, havia o tempo livre, passeava-se, e depois o estudo. À noite, depois do jantar, havia uma meditação ou às vezes uma conferência. E em seguida iam dormir, contentes. Não havia aquecimento, e por isso íamos cedo para debaixo das cobertas, porque depois os quartos congelavam...
Os irmãos Ratzinger se destacavam por algum motivo?
LÄPPLE: Nas aulas, estavam sempre na primeira fila. Os outros alunos, para distingui-los, os chamavam Orgel-Ratz e Bücher-Ratz, o Ratzinger do órgão e o Ratzinger dos livros. Georg, o irmão de Joseph, já na época era músico. Como se sabe, até pouco tempo atrás dirigiu os Ragensburger Domspatzen, os “pardais da catedral”, o famoso coral de crianças da Catedral de Ragensburg.
O que o impressionava mais em Joseph?
LÄPPLE: Ele era como um trapo seco que se ensopa de água quase com avidez. Quando, estudando, encontrava uma coisa nova, que podia corrigir ou abrir novos caminhos com relação ao que já sabia, enchia-se de entusiasmo, não via a hora de poder comunicá-la aos outros. Eu e ele passávamos horas e horas a discutir, passeando. Primeiro um tema, depois outro... Lembro-me como se fosse ontem da vez em que falamos da frase na qual Friedrich Nietzsche diz que os cristãos devem ter cara de redimidos, para que se possa crer no seu Redentor. Ele participou da missa em que eu fui ordenado sacerdote pelo cardeal Faulhaber, em 29 de junho de 1947, em Freising. E também naquele dia me fez muitas perguntas.
O que ele queria saber?
LÄPPLE: Ele me perguntava: o que acontece no momento da consagração, durante a missa? Quem opera nesse mistério? Sou eu que o faço? Há uma espécie de força mágica? Essas eram as suas perguntas naquele dia, mas sobretudo no dia da minha primeira missa em Partenkirchen, em 6 de julho de 1947. Naquela ocasião, conversamos durante horas, passeando perto da pista olímpica construída para as Olimpíadas de 1936. Eu lhe repeti uma passagem de São João Crisóstomo (a havia lido durante os exercícios espirituais para me preparar para a ordenação) onde estava escrito que o sacerdote empresta a Cristo o seu ser, as suas mãos, as suas palavras, mas é o próprio Cristo quem faz o milagre de mudar o pão e o vi­nho em carne e sangue. Em 1997, por ocasião dos meus cinqüenta anos de sacerdócio, em Munique-Pasing, Ratzinger me enviou uma carta na qual lembra o quanto aquele dia foi importante para ele.
O senhor pode nos ler essa carta?
LÄPPLE: “Naquele dia festivo”, ele me escreve, lembrando aquele passeio, “experimentei muito mais do que antes o que significa poder ser sacerdote de Jesus Cristo na sua Igreja. Você mesmo me disse então como ficou comovido com o fato de poder dizer as mesmas palavras de Jesus para a transformação do pão e do vinho, doando a ele a sua voz, a sua palavra, o seu próprio ser”. Na minha primeira missa, que celebrei em Partenkirchen, minha cidade natal, pedi a Ratzinger que me acompanhasse para ser meu cerimoniário.
A procissão do Corpus Christi guiada pelo cardeal Michael von Faulhaber na Munique destruída pelos bombardeios, em 31 de maio de 1945.

A procissão do Corpus Christi guiada pelo cardeal Michael von Faulhaber na Munique destruída pelos bombardeios, em 31 de maio de 1945.

Já naquela época, o senhor era um estudioso de Newman. Foi o senhor que transmitiu a Ratzinger o interesse pelo cardeal-teólogo inglês...
LÄPPLE: Newman não era um tema como outro qualquer, era a nossa paixão. O tema da minha tese era: “A consciência em Newman”. Fiz o exame de doutorado em julho de 1951, uma semana depois que Ratzinger foi ordenado sacerdote. Ele me ajudou, foi ele quem traduziu para o seu latim clássico as teses que na época deviam ser defendidas numa conferência pública na Universidade de Munique, para adquirir o doutorado. Entre nós havia essa grande liberdade ao olhar e julgar as coisas, a liberdade dos filhos de Deus de que fala São Paulo. É por isso que Newman nos fascinava. Alguém que havia vivido como homem livre no ambiente do anglicanismo, um homem como esse, como é que se conformava com a doutrina católica do primado na Igreja? Dá para imaginar que essa pessoa aceitasse essa doutrina como um limite à sua liberdade? Fui eu que fiz Ratzinger ler a frase de Newman que ele depois citou muitas vezes...
Qual?
LÄPPLE: A famosa frase da Carta ao duque de Norfolk: “Certamente, se eu tivesse de trazer a religião para um brinde depois de um almoço - coisa que não é muito indicado fazer, -brindaria pelo papa. Mas primeiro pela consciência e depois pelo papa”.
Já nos estudos no seminário apareciam no jovem Ratzinger os primeiros sinais de inconformismo?
LÄPPLE: Em Freising, o filósofo era Arnold Wilmsen, de linha neo-escolástica. Ratzinger nunca me falou muito dele, talvez porque não quisesse ser descortês. Mas as aulas de Wilmsen escorriam por ele como água sobre um impermeável. Ele me dizia: lamento o tempo que perco, seria muito mais útil para mim vir passear com você...
O que é que não agradava na neo-escolástica?
LÄPPLE: Ele também escreveu sobre isso em seu livro. Wilmsen, que aderira ao neotomismo que havia estudado nas faculdades romanas, parecia-lhe alguém que não se faz mais perguntas, mas pensa apenas em defender a verdade que imagina possuir diante de qualquer coisa que a possa pôr em dúvida.
E por que é que isso criava dificuldades para Ratzinger?
LÄPPLE: Não é tanto uma questão de doutrinas filosóficas em confronto, mas do que é o homem. O homem é sempre alguém que pergunta, e quando pensa ter respondido a uma pergunta, já se lhe apresenta uma maior. Ele sempre se inquietou com a tendência a considerar a verdade como um objeto que se possui e que se deve defender. Não se sentia à vontade com as definições neo-escolásticas, que lhe pareciam espécies de barreiras, para as quais aquilo que está dentro da definição é a verdade, e o que está do lado de fora é tudo erro. Mas, se Deus está em todo lugar - ele dizia -, eu certamente não posso levantar barreiras e dizer: Deus está apenas aqui. E se o próprio Cristo disse ser o caminho, a verdade e a vida, então a verdade é um Tu que ama você antes que você o ame. Na opinião dele, não conhecemos a Deus porque é um summum bonum que conseguimos perceber e demonstrar por meio de fórmulas exatas, mas porque é um Tu que vem ao nosso encontro e se deixa reconhecer. A inteligência pode tentar construir conceitos que definam conteúdos verdadeiros. Mas a neo-escolástica, segundo Ratzinger, é uma teologia que pretende seccionar o mistério, não uma teologia que se ajoelha. E uma teologia assim, já naquela época, não lhe interessava. Em bávaro, diríamos: essa não era a sua cerveja.
Era como partir de novo do zero. Aquilo tudo havia acabado, chega, era preciso deixar de falar daquelas coisas. Sabíamos que depois, no confessionário, viriam nos encontrar tanto as vítimas quanto os autores das carnificinas
E qual era, naqueles anos, a “cerveja” que ele preferia?
LÄPPLE: Para Ratzinger, não interessam livros abstratos com títulos do tipo “A essência do cristianismo”. Não lhe interessa definir Deus por meio de conceitos abstratos. Uma abstração - disse uma vez - não precisava ter uma Mãe. Deus não veio ao nosso encontro como uma definição abstrata, como um summum bonum, mas como um Tu que ama você antes que você o ame, e você só pode agradecer a ele. Só a um Tu você pode dizer sim. Ele encontrava também essa abordagem, por exemplo, em Martin Buber, o filósofo judeu personalista que dizia que o melhor discurso sobre Deus é dar-lhe graças. Mas também por isso gostávamos de Newman, que, como mote episcopal, havia esco­lhido: “Cor ad cor loquitur”.
Depois dos estudos filosóficos, em setembro de 1947, Ratzinger começou a freqüentar os cursos na Faculdade de Teologia de Munique. O que o senhor estava fazendo na época?
LÄPPLE: Eu, depois de me tornar sacerdote, fui capelão durante um ano e, mais tarde, em 1948, voltei ao seminário de Freising como docente de Pastoral e Sacramentos. Mas ainda tinha de terminar os estudos teológicos e completar a tese de doutorado sobre Newman. Assim, comecei também a freqüentar alguns cursos universitários em Munique, ao lado de Ratzinger. A Universidade havia sido destruída pelos bombardeios e a Faculdade Teológica fora instalada provisoriamente em Fürstenried, a ex-residência de caça dos soberanos bávaros, ao sul de Munique. Eu me lembro de que no início as aulas eram dadas numa estufa, extremamente quente no verão e fria no inverno.
A Faculdade Teológica de Munique tinha uma tradição de prestígio, na qual prevalecia a abordagem ao cristianismo como fato histórico...
LÄPPLE: Sim, mas depois do fechamento imposto pelos nazistas em fevereiro de 1939, e depois da guerra, lá também foi preciso recomeçar tudo do princípio. Não havia mais uma escola teológica orgânica. Dos velhos professores, haviam restado poucos, e os novos vinham de faculdades teológicas e de experiências diferentes. O corpo docente era muito variegado. E naquele clima, até os estudantes tomavam suas liberdades...
Joseph Ratzinger, aos dezessete anos, com o uniforme de auxiliar da Luftwaffe, durante o serviço prestado na bateria antiaérea em Gilching

Joseph Ratzinger, aos dezessete anos, com o uniforme de auxiliar da Luftwaffe, durante o serviço prestado na bateria antiaérea em Gilching

O que o senhor quer dizer?
LÄPPLE: Às vezes se inscreviam nos cursos, mas, depois, se as aulas do professor não eram interessantes, eles os abandonavam: um estudante tomava as notas e as passava aos outros. Na biblioteca, depois, eles se apaixonavam lendo os livros que expressavam as novas tendências teológicas.
Quem eram os “big” da Faculdade?
LÄPPLE: Para mim, os professores mais importantes eram três: Gottlieb Söhngen, Michael Schmaus e Friedrich Wilhelm Maier.
O que o senhor lembra de Söhngen, o “mestre” de Ratzinger?
LÄPPLE: Ele ensinava Teologia Fundamental, e a sua maneira de dar aulas impressionava. Dava para ver que vivia e sofria o que explicava. Vi­nha com uma folhinha, com três ou quatro palavras escritas em cima, e depois fazia uma série de perguntas. Falava de improviso, e se durante a aula lhe vinha alguma idéia fulminante, afastava-se da cátedra e ia para perto dos alunos, para lhes falar quase cabeça a cabeça. Ele vinha da filosofia, mas a teologia se tornou depois o seu destino, como disse Ratzinger na homilia pelo seu funeral. A sua teologia não era de conceitos, mas existencial, uma teologia para a fé.
Sabe-se que ele e Schmaus não se davam.
LÄPPLE: Söhngen era muito aberto às novas influências provenientes da França. E, além disso, era uma pessoa de Colônia, um homem vibrante, alegre, extrovertido, fascinante. Schmaus, por sua vez, era o clássico professor reservado, todo compreendido e fechado em seu papel. Vinha da neo-escolástica, ainda que revigorasse a exposição da dogmática católica bebendo dos Padres e da Sagrada Escritura com uma erudição sem limites. Söhngen considerava que os trabalhos de Schmaus fossem apenas uma riquíssima teoria de citações extraídas das fontes sobres os vários temas da teologia, sem ter uma visão que levasse em conta também os desenvolvimentos da filosofia moderna e as perguntas que eles impunham. Schmaus escrevia obras de teologia dogmática monumentais.
Quais eram os fatores também teológicos desse conflito?
LÄPPLE: Para Schmaus, a fé da Igreja se comunicava por meio de conceitos definitivos, estáticos, que definem verdades perenes. Para Söhngen, a fé era mistério, e se comunicava numa história. Naquele tempo se falava muito de história da salvação. Havia um fator dinâmico, que garantia também uma abertura e que se levassem em consideração as perguntas novas.
O que Ratzinger aprendeu de Söhngen?
LÄPPLE: Söhngen normalmente nunca dava juízos conclusivos sobre nenhum autor. Nunca recusava a priori nenhuma contribuição, não importava de que parte viesse. Seu método era captar e valorizar o bom que se podia encontrar em qualquer autor e em qualquer perspectiva teológica, para integrar as coisas novas na Tradição e depois ir em frente, indicando o desenvolvimento ulterior que daí poderia seguir. Mas em Söhngen Ratzinger viu também o gosto por redescobrir a Tradição entendida como teologia dos Padres. E o gosto por fazer teologia voltando às grandes fontes: de Platão a Newman, passando por Tomás, Boaventura, Lutero. E obviamente Santo Agostinho...
Que se tornou o predileto de Ratzinger.
LÄPPLE: A paixão de Ratzinger por Agostinho começou já no seminário. Era uma paixão existencial. Lembro-me de uma aula em que Söhngen explicou que antes de Agostinho todos - Platão, Xenofonte, Júlio César - sempre haviam falado em terceira pessoa. O santo bispo de Hipona fora o primeiro a dizer “eu”. Era esse o ponto de penetração.
Como era a relação entre mestre e pupilo?
LÄPPLE: Söhngen não tinha o costume de “moldar” seus alunos, de fazer deles clones de si próprio. Ratzinger era livre diante de seu mestre. Isso se viu também em sua tese de doutorado...
Lembro-me como se fosse ontem da vez em que falamos da frase na qual Friedrich Nietzsche diz que os cristãos devem ter cara de redimidos, para que se possa crer no seu Redentor
De que modo?
LÄPPLE: O ponto de partida era procurar entender qual era a melhor definição da Igreja. Em 29 de junho de 1943, Pio XII publicou a encíclica Mystici Corporis Christi, que definia a Igreja como Corpo Místico de Cristo. Söhngen notou que essa definição não se encontrava na Bíblia. Então sugeriu a Ratzinger que verificasse se Santo Agostinho aplicava outras definições à Igreja.
O que é que não ia bem na definição de Igreja como Corpo Místico de Cristo?
LÄPPLE: Uma das questões, por exemplo, era: se o homem, ao entrar na Igreja, é como que já incorporado ao Corpo Místico de Cristo, como é que pode continuar a pecar? E que fim leva a liberdade? As descobertas de Ratzinger surpreenderam e entusiasmaram o mestre...
O que foi que o aluno encontrou?
LÄPPLE: Ratzinger encontrou muito mais do que aquilo que o seu mestre lhe havia sugerido procurar. Documentou com uma quantidade incrível de citações o que Santo Agostinho tinha em mente quando definia a Igreja como povo de Deus. A mesma expressão que seria reproposta apenas muito tempo depois pelo Concílio Vaticano II e por Paulo VI. Mas Ratzinger não contrapunha as duas definições de Igreja, antes as conciliava.
E como Söhngen recebeu isso?
LÄPPLE: Ele dizia: agora o meu aluno sabe mais do que eu, que sou o mestre! Söhngen tinha em grande consideração aquele que achava seu melhor aluno. Uma vez disse que se sentia como Santo Alberto Magno, quando, na Idade Média, dizia que seu pupilo gritaria mais forte do que ele. E o pupilo era Santo Tomás! Estava contente de que alguém soubesse desenvolver de maneira original e não preestabelecida as suas sugestões.
Ratzinger revela em sua autobiografia que o senhor também influenciou de maneira determinante a sua tese de doutorado sobre Agostinho, pois foi o senhor quem lhe deu de presente em 1949 o livro Catoli­cismo, do jesuíta francês Henri de Lubac...
LÄPPLE: Eu o dei de presente a ele pensando em lhe fazer uma bela surpresa. E de fato ele escreve na autobiografia que aquele livro se tornou o seu texto de referência, e que lhe transmitiu uma relação nova com o pensamento dos Padres, mas também um olhar novo para a teologia. De fato, mais de um terço daquele livro se constituía de citações dos Padres.
No entanto, justamente naqueles anos, De Lubac, Daniélou e os outros jesuítas de Lyon eram proibidos de lecionar, e seus livros foram parar no índex. Como foi que o senhor recebeu esse fato?
LÄPPLE: Lembro-me de quando chegou a notícia das medidas contra eles. Söhngen não queria instigar ninguém, e não fez referência àquilo na aula. Mas me lembro de que naquele dia eu e Ratzinger, depois da aula, entramos com ele em seu gabinete, onde havia um grande piano, pois Söhngen era também músico e tocava como concertista. Daquela vez, na nossa frente, sem dizer uma palavra, jogou os livros sobre as escrivaninha com raiva. Depois, pôs-se ao piano e desafogou toda a sua ira sobre o teclado.
Em sua autobiografia, Ratzinger escreve que já naquela época a exegese estava no centro de seus interesses, e era o ponto de partida de seu traba­lho teológico...
LÄPPLE: Ele sempre citou a Sagrada Escritura. Ainda hoje, pode-se ver que em suas homilias e nas catequeses mais belas começa muitas vezes de um trecho da Escritura, comentado por algumas citações dos Padres referentes a ele. Pois, para ele, não se tem uma bom exegese de uma passagem da Bíblia se não se parte da interpretação que a Igreja deu dela por meio dos Padres. Essa para ele é a Traditio vivens, a transmissão viva. Foi a Igreja que estabeleceu o Cânon, que reconheceu quais são os livros canônicos. Ele não é um daqueles exegetas da sola Scriptura. Para ele é preciso partir do mote Christus praedicat Christum. O melhor exegeta de Cristo é o próprio Cristo, na Igreja na qual ele opera. E isso leva também à máxima liberdade, pois, como diz Santo Agostinho, “in Ecclesia non valet: hoc ego dico, hoc tu dicis, hoc ille dicit, sed haec dicit Dominus”.
Maier, o professor de exegese do Novo Testamento, viveu também um itinerário agitado.
LÄPPLE: Quando era um jovem estudioso, ainda antes do primeiro conflito mundial, apoiou com entusiasmo a tese exegética segundo a qual o Evangelho de Marcos havia sido o primeiro a ser escrito, fornecendo as fontes para os outros Evange­lhos sinópticos, tese hoje comumente aceita. Mas, naquela época, tudo isso era tachado como modernismo. As páginas com os argumentos expostos por Maier foram arrancadas do livro conjunto em que haviam sido publicadas. E ele foi proibido de lecionar. Mas depois da Segunda Guerra Mundial as coisas mudaram, e foi uma grande sorte ter Maier como professor em Munique.
Ratzinger escreve que Maier não assimilou “a reviravolta que Rudolph Bultmann e Karl Barth introduziram na exegese”...
LÄPPLE: O professor Maier ainda se movia no horizonte da exegese histórico-crítica. Mas sua abordagem direta, sua maneira de fazer perguntas sem censurar criavam uma nova imediatez para com o texto bíblico.
Ratzinger, em seu livro, conta também a relação que viveu com o chamado movimento litúrgico. A que se refere ele?
LÄPPLE: Naqueles anos, o movimento litúrgico sublinhava a centralidade da liturgia para a vida cristã, e procurava descobrir os elementos essenciais da liturgia, libertando-os dos acréscimos que se haviam acumulado ao longo dos séculos. Josef Pascher, o professor de Pastoral, era também o diretor do Georgianum, o colégio onde residiam os estudantes, e era um entusiasmado defensor do movimento litúrgico. Fora influenciado pelas correntes francesas e, nas discussões que então começavam entre aqueles que sublinhavam na missa a teoria do sacrifício e aqueles que, por sua vez, sublinhavam a da ceia, Pascher fazia parte deste último grupo. No entanto, Romano Guardini já se havia expresso contra a redução da missa a repetição ritual da Última Ceia...
O cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique de 1917 a 1952, 
numa foto de 1949

O cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique de 1917 a 1952, numa foto de 1949

E Ratzinger, quanto a esse ponto, que posição tinha?
LÄPPLE: Para ele, o caráter de sacrifício não podia ser posto de lado. Mas isso não excluía que a missa repetisse ritualmente também a Última Ceia, a refeição com a qual os discípulos haviam celebrado a Páscoa judaica. Ele manifestou também essa sua capacidade de integrar as duas posições numa meditação sobre esse tema que desenvolveu já como Papa, durante o último Sínodo dos Bispos. Seja como for, Ratzinger estimava Pascher e ficou marcado por seu método, que punha no centro da educação dos alunos a celebração cotidiana da santa missa. Não se sentia bem quando se dava conta de que alguns professores, com todas as definições exatas que ostentavam durante a aula, depois quase nem sabiam celebrar a missa, e se mexiam ao redor do altar com um sentimento de estranheza. Uma vez, quando um desses estava celebrando, ele me disse: olhe para ele, nem sabe o que está acontecendo...
Como se viveu na Faculdade Teológica de Munique a proclamação do dogma sobre a Assunção de Maria, em 1950?
LÄPPLE: Em geral, a acolhida foi crítica. Não havia objeções quanto ao conteúdo do dogma, mas quanto à oportunidade de proceder à dogmatização. Söhngen sublinhava que nas fontes cristãs dos primeiros séculos não havia vestígios da doutrina da assunção corpórea da mãe de Jesus. Schmaus chegou a ser chamado a Roma e à presença do arcebispo, em razão de um artigo seu que apareceu no jornal da diocese (Münchner Katholische Kirchenzeitung).
E Ratzinger?
LÄPPLE: Acho que ele também pensava que a dogmatização não era necessária. Nas nossas práticas de devoção mais tradicionais, nós já críamos na Assunção corpórea de Maria, e a celebrávamos, por exemplo na oração do Rosário. Lex orandi, lex credendi. Mas pensávamos que naquele momento a definição de um novo dogma criaria problemas para o diálogo ecumênico que estava florescendo justamente na Alemanha.
Em 1951, depois da ordenação, Ratzinger começou seu ministério como capelão. O que o senhor lembra daquele período?
Alfred Läpple celebra sua primeira missa em Partenkirchen. Joseph Ratzinger, aos vinte anos, serve-lhe de cerimoniário

Alfred Läpple celebra sua primeira missa em Partenkirchen. Joseph Ratzinger, aos vinte anos, serve-lhe de cerimoniário

LÄPPLE: Ele foi destinado à paróquia do Preciosíssimo Sangue, em Munique, e lá ficou um ano. Antes dele, tinham vivido e trabalhado lá dois mártires justiçados pelo nazismo, o capelão Hermann Joseph Wehrle, morto em 14 de setembro de 1944, e o jesuíta Alfred Delp, morto em 2 de fevereiro de 1945. Naquele primeiro ano de sacerdócio, ele era obrigado a dar dezesseis aulas de religião por semana; eram muitas aulas, para alguém que estava apenas começando. Acompanhava também os grupos católicos juvenis. E acabou tendo de tomar uma decisão: deveria continuar os estudos de teologia, percorrer a carreira acadêmica, ou optar pelo ministério pastoral em alguma paróquia? Eu, então, fiz uma coisa que iria contribuir para resolver o dilema...
O que foi que o senhor fez?
LÄPPLE: Em 1952, quando me preparava para deixar meu cargo de docente de Pastoral dos Sacramentos no Seminário de Freising, decidi conversar com o bispo Faulhaber, para lhe dizer que melhor sucessor para o meu lugar seria Joseph Ratzinger. E assim, realmente, em 1º de outubro, ele me substituiu. Começou assim a sua carreira acadêmica. Eu nunca disse a ele que fui propor seu nome ao bispo. Mas gosto de pensar que aquela minha intervenção em favor de que ele fosse contratado talvez possa ter favorecido o seu caminho.
Então, em 1952, Ratzinger voltou a viver em Freising. Em julho de 1953, passou nos exames finais do doutorado, tornando-se doutor em Teologia. Enquanto isso, sempre orientado por Söhngen, esco­lheu o tema de trabalho para o exame necessário para obter a livre-docência na Alemanha. Acabou por escolher São Boaventura... Qual era especificamente o seu tema?
LÄPPLE: Ratzinger deveria analisar a perspectiva de São Boaventura sobre a Revelação. Naqueles anos, era forte o debate sobre o conceito de Revelação. Vinha-se afirmando uma perspectiva nova, segundo a qual a Revelação era, em primeiro lugar, a ação histórica de Deus, no caminho da história da salvação, e não podia ser identificada com a comunicação de algumas verdades à razão por meio de conceitos, como se dava na perspectiva neo-escolástica.
O que Ratzinger descobriu dessa vez?
LÄPPLE: Constatou que, na percepção medieval de Boaventura, a “Revelação” era em primeiro lugar um gesto, indicava sempre o gesto com o qual Deus se mostra num determinado momento histórico. A Revelação se refletia na Sagrada Escritura, mas era sempre maior do que ela, a precedia e não se identificava com ela, tal como um fato precede e não se identifica com o relato que dele se faz. Portanto, era estranho ao pensamento de Boaventura a fórmula da sola Scriptura com a qual, nos tempos modernos, se identificava de fato a Revelação com o conjunto objetivo e fixado dos conteúdos das Sagradas Escrituras. Além disso, em suas análises, Ratzinger fazia notar que nessa perspectiva só existe Revelação se o gesto com o qual o Mistério se manifesta é percebido por alguém. Se Deus tivesse falado usando apenas uma linguagem divina, não perceptível por nenhum homem, não teria havido nenhuma Revelação.
Ratzinger contou em sua autobiografia que as coisas se complicaram... O que foi que saiu errado?
LÄPPLE: No outono de 1955, Ratzinger entregou seu trabalho sobre Boaventura. Söhngen logo ficou entusiasmado. Mas o co-examinador era Schmaus, pois era ele o medievalista da Faculdade Teológica. Schmaus disse a Söhngen: este aqui é um trabalho modernista, não posso deixá-lo passar. Söhngen avisou Ratzinger: nós não vamos passar este trabalho, porque Schmaus diz que é um traba­lho modernista. Acho que Schmaus viu em certas passagens um perigoso subjetivismo, que punha em crise a objetividade da Revelação.
Mesmo assim, a tese para a livre-docência do futuro Papa não foi rejeitada por suspeita de modernismo...
LÄPPLE: Não. O Conselho de Faculdade devolveu-a ao candidato para que a reescrevesse, levando em conta as correções e críticas que Schmaus havia anotado em sua cópia.
Mas a quantidade de modificações exigidas era tamanha que seriam necessários anos de trabalho. E então Ratzinger adotou um expediente...
LÄPPLE: Na tese de Ratzinger, havia uma segunda parte dedicada à teologia da história de Boaventura, em confronto com a de Joaquim de Fiore, e sobre essa seção Schmaus não expressou avaliações negativas. Essa seção tinha uma certa autonomia, e até podia ser lida como um texto completo. Assim, o próprio Söhngen sugeriu a Ratzinger: corte fora a primeira parte, que é a que está dando problemas, e reapresente apenas a segunda...
29 de junho de 1951: na Catedral de Freising, o cardeal Faulhaber ordena mais de quarenta seminaristas, entre os quais os irmãos Georg e Joseph Ratzinger

29 de junho de 1951: na Catedral de Freising, o cardeal Faulhaber ordena mais de quarenta seminaristas, entre os quais os irmãos Georg e Joseph Ratzinger

A tese de livre-docência foi aceita. E, em 21 de fevereiro de 1957, dia da aula pública de habilitação na Universidade de Munique, a aula magna da Faculdade contava com o público das grandes ocasiões... Como o se­nhor lembra aquele momento?
LÄPPLE: Ratzinger fez sua exposição. Depois Schmaus começou perguntando mais ou menos se na opinião de Ratzinger a verdade era algo estático e imutável ou algo histórico-dinâmico. Mas Ratzinger não respondeu. Söhngen tomou a palavra, e os dois professores começaram a discutir naquela que parecia uma grande disputatio medieval. O público aplaudia Söhngen e parecia satisfeito de que Schmaus, o professor soberbo, estivesse levando um belo tapa na cara. Ratzinger não disse uma palavra. No final, o reitor tomou a palavra e disse: chega, o tempo acabou. Então o examinador e o co-examinador se levantaram e disseram, apressados: está bem, está bem, está habilitado...
O que aconteceu depois? Ratzinger menciona alguns problemas que teve com seus detratores...
LÄPPLE: Ratzinger assumiu o ensino de Teologia Dogmática na Escola de Altos Estudos, ao lado do seminário de Freising; a mesma em que ele havia estudado. Enquanto isso, corria um boato de que Ratzinger iria lecionar num instituto de pedagogia que havia sido inaugurado pouco tempo antes em Pasing, na periferia de Munique.
Ratzinger fala de problemas que teve com a cúria episcopal. A que é que ele se refere?
LÄPPLE: É preciso lembrar que ao longo de toda a guerra não haviam ocorrido ordenações sacerdotais. Nas dioceses e nas paróquias, havia muito trabalho a fazer. Dizia-se: pensemos primeiro na pastoral, depois pensaremos na teologia e na ciência. Os bispos não ficavam contentes quando alguém pedia para se d


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