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OS 27 CARDEAIS
Extraído do número 03 - 2007

“Eu, mas já não eu”



do cardeal Angelo Scola



“Sendo um homem de formação teórica e não prática, também sabia que não é suficiente amar a Teologia para ser um bom sacerdote, mas há a necessidade de estar sempre disponível para com os jovens, os idosos, os doentes, os pobres; é preciso ser simples com os simples. A Teologia é bela, mas também é necessária a simplicidade da palavra e da vida cristã. E perguntava: serei capaz de viver tudo isto e de não ser unilateral, só um teólogo, etc.? Mas o Senhor ajudou-me e ajudou-me sobretudo a companhia dos amigos, de bons sacerdotes e mestres”.
Assim, com uma simplicidade ímpar, Papa Bento respondeu à pergunta sobre a sua verdadeira fisionomia que, de maneira mais ou menos explícita circulava entre muitos depois da sua eleição a sucessor de Pedro. E respondeu – é belo recordar – em um diálogo de coração aberto com os jovens da sua diocese, Roma, por ocasião da XXI Jornada Mundial da Juventude, em 6 de abril de 2006. O Papa quis compartilhar com eles e conosco seu próprio percurso pessoal de fé. Um percurso de fecunda humildade, feito de graça e de liberdade, de certeza e de realístico temor, de entusiasmo e de abandono.
E deste caminho o Santo Padre quis também mostrar as pedras miliares.
Antes de tudo a graça que é o próprio Senhor Jesus. O primado de Cristo, ou seja, do amor encarnado de Deus na vida do cristão, foi-nos recordado com grande força pela encíclica Deus caritas est. O fulcro do ensinamento do Papa é a formidável passagem do primeiro parágrafo: “Ao início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
Partindo daqui, quase com naturalidade, o desenvolvimento efetivado no seu discurso de Verona: “‘Eu, mas já não eu’: esta é a fórmula da existência cristã fundada no Batismo, a fórmula da ressurreição dentro do tempo, a fórmula da ‘novidade’ cristã chamada a transformar o mundo”. Uma novidade que é fruto do dom do Espírito, e portanto, que não é possível ser produzida por nós. É um dado – no sentido vigoroso – a ser acolhido. Como para o Papa do Totus tuus, assim também para Bento XVI, que com os olhos arregalados e o coração jubiloso visitava, quando criança, o Santuário de Altötting, a Virgem Maria representa a figura cumprida da sua personalidade e da sua existência. Na anunciação a Imaculada pronuncia aquele fiat que desdobrará toda a sua força no stabat do Calvário e encontrará pleno cumprimento no mistério da Assunção. Com efeito, Maria, diz até o fim o que significa cooperar consentindo, como recita o quarto cânone do decreto sobre a justificação do Concílio de Trento. Este é o horizonte próprio do sensus fidei do povo católico, genuinamente manifestado pela experiência da Igreja bávara. Na pertença plenamente consciente a esta significativa porção de povo santo de Deus tomou forma a vocação e a missão de Papa Ratzinger.
Mas o Papa acrescenta uma segunda indicação. Preciosa porque ilumina a modalidade pela qual a graça sacramental torna-se encontro persuasivo e fascinante para a liberdade de nós homens: “Ajudou-me a companhia dos amigos, de bons sacerdotes e mestres”. A vida da comunidade cristã, com efeito, é a garantia do caminho. Uma companhia que mostra o rosto da Igreja e investe “os grandes âmbitos em que se desenrola a experiência humana” (discurso no Congresso de Verona).
Ficamos todos impressionados pela profundidade com a qual o Santo Padre neste último ano quis responder à pergunta atualmente mais do que nunca decisiva. O seu grande amigo Hans Urs von Balthasar formulava-a nestes termos: “Quem é a Igreja?”. Papa Bento está repercorrendo o caminho humano e cristão dos apóstolos e dos discípulos do Senhor. Pedro, João, Mateus, Paulo, Estêvão, as mulheres... Os primeiros elos de uma ininterrupta cadeia de testemunhas, historicamente bem documentável, que chega a envolver também nós. Nela exprime-se a natureza sacramental da traditio da Igreja.
A graça que é Jesus Cristo, vivida na companhia da Igreja: eis os dons que o Papa não cessa de testemunhar à nossa liberdade.


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