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OS 27 CARDEAIS
Extraído do número 03 - 2007

Guiar a Igreja pelos caminhos da Providência



do cardeal Tomás Spidlík, S.J.



Lendo a Sagrada Escritura, somos surpreendidos pela variedade de personagens que lá encontramos. Mas mais surpreendente ainda é a descoberta de que, por meio da sua diversidade, se concatena a extraordinária unidade da história sagrada do povo eleito. Foi justamente notado que os gregos antigos buscavam Deus observando a harmonia do universo, ao passo que os hebreus conheceram Iahweh contemplando-o na história. Disso segue que também as pessoas que sobem ao palco da história nas diversas circunstâncias dos tempos não podem ser corretamente avaliadas a não ser nesse contexto de história sagrada. Isso deve inspirar também a nossa “contemplação da Providência” (o termo é de Evágrio), quando procuramos avaliar as pessoas que deixam uma marca indelével na Igreja, em particular os papas. Observando os papas passados, nos é mais fácil julgá-los nessa perspectiva, mas adivinhar o sentido histórico dos personagens contemporâneos parece ser reservado às visões privilegiadas dos profetas iluminados. Todavia, em medida humilde o dom profético é dado sempre à Igreja, a fim de que possa orientar-se em seu caminho. Acaso estaremos querendo ousar antecipar de certa forma essa perspectiva para rever o que – no subconsciente, ou, antes, no “superconsciente” – sentimos quando desejamos tomar consciência do que esperamos do Papa atual?
Um certo contexto, que provém do passado recente, parece nos conduzir a isso. Depois da última guerra mundial, a situação política, cultural e religiosa sofreu enormes mudanças. Espontaneamente, portanto, sentiu-se a necessidade de adequar também a vida eclesiástica e até mesmo o pensamento a essa nova situação. Muitas vezes, de fato, o Papa Pio XII voltava a essa questão em seus discursos, em suas catequeses diligentemente preparadas com a ajuda dos especialistas. Não é nenhum segredo que mais de uma vez tenha tido a idéia de que convocar um concílio ecumênico poderia ser o caminho adequado para encontrar as respostas a todos aqueles problemas que o solicitavam com uma rapidez crescente. Mas seu destacado senso de responsabilidade o detinha. Tinha consciência de que uma obra como essa exige uma preparação extremamente diligente.
O Concílio foi convocado, então, por João XXIII, o qual, espontâneo e simples, não era detido por escrúpulos sobre a quantidade de preparação e nem parecia sentir a necessidade de grandes inovações na maneira de propor e praticar a fé que amava com um estilo tradicionalmente devoto.
Que lição providencial podemos aprender da sucessão desses dois pontífices, tão diferentes entre si? Talvez possamos expressá-la assim. No Concílio Vaticano II, a Igreja se encontrou numa encruzilhada decisiva de seu caminho histórico. Pio XII, em sua clarividência, se dava conta disso e hesitava. Mas, em momentos como esses, a Providência normalmente age a seu modo, um modo bem conhecido na Bíblia. Inesperadamente, Deus escolhe um homem pio e simples, obediente à inspiração instantânea. Não foi talvez assim quando João XXIII disse que a idéia do Concílio lhe surgiu na Basílica de São Paulo?
Sabemos bem que em seguida o Concílio ultrapassou grandemente qualquer expectativa não apenas do Papa, mas de toda a Igreja. Era preciso então que o grande fato chegasse à consciência de todo o povo cristão, para que se tirassem dele as conseqüências práticas. Sabe-se que as decisões do Concílio de Trento chegaram a ser vividas quase um século depois. Como seria com o Vaticano II? Paulo VI não tinha o traço pessoal de um radical reformador. E foi obra da Providência que ele começasse esse processo de maneira minuciosa, evitando sonoras declarações e ações não amadurecidas. E um grande passo histórico adiante foi dado. A Providência determinou depois, como se nota nas sinfonias musicais, um entreato silencioso, usando para isso novamente um homem simples e pio, João Paulo I, para dar lugar depois ao sucessor que escolheu também seu nome. Tem-se procurado de maneiras diversas avaliar a grandeza do pontificado de João Paulo II, um dos mais longos da história. Gostaríamos de acrescentar a isso uma nota correspondente ao contexto do pensamento que procuramos desenvolver? Dizem que a primeira encíclica do Papa apela aos “direitos humanos”. Mas é mais justo lembrar que seu título exato é Redemptor hominis. Redentor da pessoa concreta, o “mistério” que, segundo o Vaticano II, precede o “sacramento”. A essas pessoas, várias e irrepetíveis, o Papa sabia encontrar em suas numerosas viagens. E seu funeral foi um testemunho estupendo de como ele mesmo também era reconhecido como uma irrepetível personalidade concreta.
Bento XVI durante as férias em Val d’Aosta, em julho de 2006

Bento XVI durante as férias em Val d’Aosta, em julho de 2006

O que o Concílio Vaticano II ensinou com a Lumen gentium foi visto nesse Papa: a prioridade das relações espirituais sobre as estruturas externas nas quais tais relações se realizam, coisa que é o fundamento da colegialidade e do ecumenismo. A popularidade mundial de João Paulo II é um sinal. Demonstra-nos que o povo de Deus, na sua grande maioria, compreendeu o significado desse sinal vivo. Espontaneamente desejamos que o exemplo dado seja continuado. Mas os mistérios revelados nos sinais devem também ser progressivamente compreendidos com maior profundidade.
O sucessor do Papa precedente está diante de nossos olhos há muito pouco tempo ainda. Mas, observando o que faz e ouvindo o que ensina, estamos convencidos de que compreendeu o papel que a Providência lhe indicou. Sua preparação foi de tipo teológico. A palavra “teologia” foi talvez usada pela primeira vez por Platão em referência àqueles que sabem interpretar os mistérios. É de fato o que Bento XVI procura fazer com clareza em seus freqüentes ensinamentos. São pessoais, mas também em linha espiritual com o caminho da Igreja percorrido por seus predecessores. Não surpreende que sejam expressos de maneira mais explícita, dado que são formulados por alguém que anteriormente foi professor de Teologia.
Para mostrá-lo, lemos por exemplo a mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz, no início deste ano. Em meio ao esforço generoso dos políticos sinceros que desejam estabelecer uma justa ordem jurídica no mundo, o Papa eleva a voz para resumir em duas linhas o espírito do Vaticano II: “Pessoa humana, coração da paz. De fato, estou convencido de que respeitando a pessoa promove-se a paz e, construindo a paz, assentam-se as premissas para um autêntico humanismo integral. É assim que se prepara um futuro sereno para as novas gerações”.
Não faz parte da finalidade da nossa brevíssima nota entrar em outras considerações. Mas já isso nos convence suficientemente e conforta nossos comuns votos sinceros: Deus nos conserve o Pontífice e o assista com a graça do Espírito Santo, para que possa continuar a guiar a Igreja pelos caminhos da Providência.


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