“Deixa-te levar pelo madeiro de Sua humildade”
Uma das meditações dos exercícios espirituais pregados por padre Giacomo Tantardini aos sacerdotes da diocese suburbicária de Porto-Santa Rufina, em novembro de 2006
de padre Giacomo Tantardini

Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos no lago de Tiberíades
Gostaria de começar repetindo o convite de Santo Agostinho a nos deixarmos “levar pelo madeiro de Sua humildade”1. Devemos atravessar o mar da vida, devemos chegar ao Senhor, que é a nossa felicidade. A única forma de atravessar esse mar é nos deixarmos levar pelo madeiro de Sua humildade. Deixarmo-nos levar por essa barca que é a cruz do Senhor. Tenho um grande apreço pela expressão de Santo Agostinho: “Deixa-te levar pelo madeiro de Sua humildade”. O que é a Confissão, senão aceitarmos humildemente nos deixar levar pelo Senhor, pelo madeiro de Sua humildade? Senão aceitarmos humildemente confessar nossos pobres pecados, como quis Jesus, como a santa Igreja estabeleceu? Por isso, tomei a liberdade de dar a quem quisesse o pequeno livro Quem reza se salva, para ajudar a se confessar bem, tal como a santa Igreja sugere, ou melhor, ordena.
Permitam-me aludir a uma intuição, a uma descoberta recente para mim: quem se confessa bem se torna santo. Foi uma descoberta recente (que fiz no ano passado, durante a santa missa da festa de Todos os Santos, enquanto lia o Evangelho das bem-aventuranças), de uma evidência imediata: quem se confessa bem se torna santo. Quem se confessa bem, com humildade, com sinceridade, fazendo a acusação completa dos pecados, se torna santo. A pessoa se torna santa no tempo do Senhor, mas, se se confessa bem, se torna santa. Quem se deixa levar humildemente pelo madeiro de Sua humildade se torna santo. Tornar-se santo significa que a presença de Jesus Cristo se torna cada vez mais cara, cada vez mais próxima. “Familiaritas stupenda nimis”, diz a Imitação de Cristo, uma “familiaridade sobremaneira admirável”2. É o que diz também uma estrofe do hino “Iesu dulcis memoria”, esse longo hino medieval atribuído a São Bernardo. Era a estrofe que Dom Giussani repetia com maior freqüência em seus últimos meses de vida: “O Iesu mi dulcissime, / Ó Jesus, dulcíssimo para mim, / spes suspirantis animae, / Tu, esperança de me coração que geme [de todos nós, que suspiramos, como dizemos no Salve Rainha], / te quaerunt piae lacrimae / buscam-te minhas lágrimas pias [lágrimas que não pretendem, que esperam, que pedem] / et clamor mentis intimae / e o grito último do coração”. Mesmo quando, talvez, esse grito do coração nem sobe aos nossos lábios. Pois bem, se nos confessamos bem, nos tornamos santos. Ou seja, a presença do Senhor, a Sua presença, a Sua beleza (“Cara beleza”), a Sua doçura se torna mais cara e mais próxima de nossa vida.
Leiamos agora o trecho da negação de Pedro e do olhar de Jesus para ele, segundo o Evangelho de Lucas: “Eles prenderam Jesus e o levaram, conduzindo-o à casa do Sumo Sacerdote. Pedro acompanhava de longe. Eles acenderam uma fogueira no meio do pátio e sentaram-se ao redor. Pedro sentou-se no meio deles. Ora, uma criada viu Pedro sentado perto do fogo; encarou-o bem e disse: ‘Este aqui também estava com ele!’ Mas Pedro negou: ‘Mulher, eu nem o conheço!’ Pouco depois, um outro viu Pedro e disse: ‘Tu também és um deles’. Mas Pedro respondeu: ‘Homem, não sou’. Passou mais ou menos uma hora, e um outro insistia: ‘Certamente, este aqui também estava com ele, porque é galileu!’ Mas Pedro respondeu: ‘Homem, não sei o que estás dizendo!’ Nesse momento, enquanto Pedro ainda falava, um galo cantou. Então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. E Pedro lembrou-se da palavra que o Senhor lhe tinha dito: ‘Hoje, antes que o galo cante, três vezes me negarás’. Então Pedro saiu para fora e chorou amargamente” (Lc 22, 54-62).
Eu gostaria de lhes sugerir três breves pensamentos de Santo Ambrósio. Santo Ambrósio é um dos Padres da Igreja que mais evidencia a misericórdia. Talvez todos vocês conheçam a frase com que ele conclui o Hexaemeron, o relato da criação: “Criou o céu e não leio que tenha repousado, criou a terra e não leio que tenha repousado, criou o sol, a lua e as estrelas e não leio que tenha repousado. Leio que criou o homem e então repousou, / habens cui peccata dimitteret / porque finalmente tinha alguém a quem podia perdoar os pecados”3. Esse é o repouso de Deus. Jesus o diz no Evangelho: “Eu vos digo: assim haverá no céu [ou seja, no coração de Deus] mais alegria por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15, 7). Ambrósio não acrescenta nada a essas palavras de Jesus acerca da alegria do coração de Deus; simplesmente diz – e isso é bonito – que Deus repousou porque finalmente tinha alguém a quem podia perdoar os pecados.
O trecho que leio agora é extraído do comentário de Santo Ambrósio ao Evangelho de Lucas: “Bonae lacrimae quae lavant culpam. / Como são boas [caras ao coração] as lágrimas que lavam os pecados. / Denique quos Iesus respicit plorant. / Portanto, aqueles para quem Jesus olha, põem-se a chorar [quando Jesus olha para um verdadeiro pecador, este se põe a chorar]. Pedro negou uma primeira vez e não chorou, porque o Senhor não o havia olhado. Pedro negou uma segunda vez e não chorou, porque o Senhor ainda não o havia olhado. Pedro negou a terceira vez: / respexit Iesus et ille amarissime flevit / Jesus olhou para ele e ele chorou amargamente”4. O choro não vem do pecado. “Todo aquele que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8, 34). O pecado nos conduz ao vício, não ao choro. “Se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres” (Jo 8, 36). Quando Jesus olha, a pessoa chora. E chora lembrando-se d’Ele. “Então o Senhor se voltou e olhou para Pedro. E Pedro lembrou-se” (Lc 22, 61). A pessoa chora não pela humilhação, chora por ser tão querida. Chora por gratidão, por sermos olhados assim. Porque, pobres pecadores, somos tão queridos. “Respice, Domine Iesu, / Olha-nos, Senhor Jesus, / ut sciamus nostrum deflere peccatum. / para que aprendamos a chorar por nossos pecados. / Unde etiam lapsus sanctorum utilis. / Assim, o pecado dos santos também é útil. O fato de Pedro tê-Lo traído não me trouxe nenhum dano; mas foi benéfico para mim o fato de ter sido perdoado [por Jesus]”5.
sio distingue os pecados de fraqueza do projeto do pecado. Os pecados de fraqueza podem até ser pecados mortais; não é isso que Santo Ambrósio contesta. Nossos pecados de fraqueza podem ser pecados mortais, se neles estiverem presentes as três condições para que uma ação seja pecado mortal. Mas o pecado de fraqueza é diferente do projeto do pecado. O pecado de fraqueza é diferente de projetar o pecado. Ambrósio tem essa ternura ao olhar para Pedro, como que olha para uma criança que erra. Pedro renegou, mas com a boca (sermone), não com o coração (non mente). E acrescenta uma observação belíssima: “(as palavras com que Pedro O renega sejam mais cheias de fé que a doutrina de muita gente [as palavras de Pedro, que O trai por medo, não destroem um apego ao Senhor, um apego mais fiel que os discursos de muita gente]) / respexit eum Christus / Cristo olhou para ele / et Petrus flevit; / e Pedro chorou; e assim [com o pranto] lavou seu erro. / Ita quem visus est voce denegare / Assim, aquele que com a palavra pareceu aos outros [talvez também a João, quando viu Pedro dizer o que disse] renegar o Senhor, / lacrimis fatebatur / com as lágrimas O testemunhava”7. Com as lágrimas, Pedro testemunhou o Senhor. Eu gostaria de acrescentar uma observação. Existe um indício que distingue a fraqueza do pecado do projeto do pecado: é evitar as ocasiões próximas de pecado. Nós o diremos no Ato de contrição, quando nos confessarmos. O indício de que o pecado não é um projeto nosso é a vontade de fugir das ocasiões próximas de pecado. Pois o pecado é cometido no coração. O pecado é cometido quando aderimos, com o coração, ao desejo mau. É no coração que cometemos o pecado. O gesto, qualquer gesto pecaminoso, é uma conseqüência do coração que adere ao desejo mau, do coração que cede ao desejo mau, em vez de ajoelhar e pedir. Mesmo o ato de se ajoelhar, mesmo apenas esse gesto físico de se ajoelhar, como é precioso ao Senhor! Ajoelhar e pedir. E a graça do pedido cheio de segurança, quando o Senhor a doa, a certeza do pedido, de alguém que pede sem duvidar, é infalível. É Jesus quem o diz (cf. Mc 11, 23-25). O apóstolo predileto o escreve: “Todo aquele que permanece n’Ele não peca” (1Jo 3, 6). Quando a pessoa permanece no Senhor, não peca. Quando o Senhor nos dá a graça de permanecer n’Ele, essa oração é infalível. Evitar as ocasiões próximas de pecado é o sinal de que nossos pecados são pobres pecados de fraqueza, e não o projeto de nossa vida. Não são um projeto mau.

Jesus ressuscitado aparece aos apóstolos no monte da Galiléia
Concluo com duas orações da liturgia ambrosiana. Duas orações de Santo Ambrósio. A primeira é do hino “Ao canto do galo”, “Aeterne rerum conditor”, que, na antiga liturgia ambrosiana, era cantado sempre, todos os dias, nas Matinas. Ao lado do hino das Vésperas, “Deus creator omnium”, acredito que o hino “Aeterne rerum conditor” seja a mais bela poesia da literatura cristã antiga: “Iesu, labantes respice / Ó Jesus, olhai para nós, que caímos [os lapsi eram as pessoas que, durante as perseguições, haviam traído a fé] / et nos videndo corrige; / e levanta-nos, olhando para nós [corrige significa cum-regere, sustentar de pé]; / si respicis labes cadunt / se Tu nos olhas, os pecados desfalecem / fletuque culpa solvitur / e no pranto a culpa é dissolvida”.
A segunda oração, uma oração bem pequena, é a do Bom Ladrão. Tal como seria para Santa Teresinha do Menino Jesus, mais tarde, o Bom Ladrão é também um dos santos preferidos de Santo Ambrósio. O hino de Páscoa de Santo Ambrósio, “Hic est dies verus Dei”, é todo sobre o Bom Ladrão. Na liturgia de hoje do breviário, São Cirilo de Jesusalém usa a mesma expressão usada por Santo Ambrósio nesse hino: o Senhor dá a salvação “com a fé de um instante”14. A oração diz: “Manum tuam porrige lapsis / Oferece tua mão a nós, que caímos, / qui latroni confitenti Paradisi ianuas aperuisti / Tu, que abriste as portas do Paraíso ao ladrão que Te reconheceu”15. Como é bonito esse latroni confidenti! Aquele assassino não fez nada. Simplesmente O reconheceu. Simplesmente reconheceu. Confessio. E pediu. Suplex confessio: “Jesus, lembra-te de mim quando estiveres em teu reino”. Só esse “Jesus”, esse “lembra-te de mim”. Só esse reconhecimento súplice. E Jesus lhe disse: “Ainda hoje estarás comigo no Paraíso” (cf. Lc 23, 39-43). Hoje, neste instante. Como no sacramento da confissão: “Eu te absolvo”. É assim, nessa fé de um instante, que se comunica também a nós a salvação de Jesus Cristo.
Notas
1 Agostinho, In Evangelium Ioannis II, 4.
2 De imitatione Christi II, 1, 1.
3 Ambrósio, Hexaemeron VI, 10, 76.
4 Ambrósio, Expositio in Lucam X, 89.
5 Id., ibid.
6 Ambrósio, Enarrationes in psalmos 45, 15.
7 Id., ibid.
8 Ambrósio, Enarrationes in psalmos 118, XV, 23-24.
9 Id., ibid., 23.
10 Cf. Liturgia das Horas, 8 de setembro, festa da Natividade da Bem-Aventurada Virgem Maria, Ofício das Leituras, segunda leitura, dos Discursos de Santo André de Creta, bispo.
11 Ambrósio, Enarrationes in psalmos 118, XV, 23-24.
12 Id., ibid., 24.
13 Id., ibid.
14 Cf. Liturgia das Horas, terça-feira da 31ª semana do Tempo Comum, Ofício das Leituras, segunda leitura, das Catequeses de São Cirilo de Jerusalém, bispo.
15 Antigo Breviário Ambrosiano, Feria III, hebd. IV, in Quadragesima, ad Matutinum.