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LEITURA
Extraído do número 06/07 - 2009

“A graça de Deus salvador: livre, suficiente, necessária para nós”


Com essas palavras, Giovanni Battista Montini, em suas notas sobre as Cartas de São Paulo, escritas quando ainda jovem sacerdote, sublinha a experiência e a mensagem do Apóstolo


de padre Giacomo Tantardini


<I>São Paulo</I>, mosaico da Capela Palatina, Palermo

São Paulo, mosaico da Capela Palatina, Palermo

Agradeço a quem me convidou para vir a esta bela cidade de Ortona, onde, na Catedral, está preservado o corpo do apóstolo Tomé. Agradeço também a sua excelência dom Carlo Ghidelli, por sua presença neste encontro.
Não tenho a competência específica para falar de São Paulo. O que conheço de Paulo vem simplesmente da leitura de suas Cartas, em particular a leitura que fazemos na santa missa e na oração do breviário, mas creio que isso seja o mais importante. Paulo VI, num discurso proferido num congresso de exegetas sobre a ressurreição de Jesus, citando Santo Agostinho, dizia que, para compreender a Escritura, “praecipue et maxime orent ut intelligant”, a coisa “mais importante e principal é rezar para entender”.
Assim, na oração podemos receber o dom de intuir a experiência que fez Paulo, a experiência de ser amado por Jesus. Ao dar início ao Ano Paulino, o papa Bento XVI disse que Paulo é um nada amado por Jesus Cristo. “Eu nada sou”, diz o próprio Paulo ao final da Segunda Carta aos Coríntios (2Cor 12, 11), e, na Carta aos Gálatas: “Amou-me e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 20).
A nós, infinitamente distantes do apóstolo, pode acontecer também a mesma experiência, a mesma comunhão de graça, porque a comunhão dos santos é real. E é essa identidade de experiência, a experiência de sermos gratuitamente amados por Jesus Cristo, que faz as palavras do apóstolo reviverem, que pode tornar Paulo tão próximo, tão chegado, tão amigo, tão familiar.
Eu gostaria de começar lendo algumas frases ditas pelo papa Bento XVI no Ângelus de domingo 25 de janeiro. Este ano, a festa da conversão de São Paulo caiu num domingo, e o Papa, explicando o encontro de Saulo com Jesus no caminho para Damasco (o que lemos também na missa de hoje, nos Atos dos Apóstolos), disse estas palavras que me surpreenderam e confortaram, e que eu reli muitas vezes: “Naquele momento [quando encontrou Jesus: “Eu sou Jesus, a quem tu estás perseguindo” (At 9, 5)] Saulo compreendeu que a sua salvação [podemos até dizer a sua felicidade, pois o reflexo humano da salvação é a felicidade, o reflexo humano da Sua graça é o prazer pela Sua graça] não dependia das boas obras levadas a cabo segundo a lei [fiquei muito impressionado com esse adjetivo, boas. Boas obras. O Papa quis sublinhar que a salvação não depende das boas obras, realizadas segundo a lei, obras tão boas como boa e santa é a lei (cf. Rm 7, 12)], mas do fato de que Jesus tinha morrido também por ele, o perseguidor [“Amou-me e se entregou a si mesmo por mim” (Gl 2, 20)], e tinha, e continua, ressuscitado”. A outra palavra que me impressionou foi esse verbo no presente: “Tinha, e continua, ressuscitado”.
Este ano, Bento XVI proferiu vinte meditações sobre Paulo nas audiências de quarta-feira. Uma dessas meditações, talvez a mais bela, a décima primeira, trata da fé de Paulo na ressurreição do Senhor. Comentando o capítulo 15 da Primeira Carta aos Coríntios, o Papa sublinhou que Paulo transmite aquilo que, por sua vez, recebeu (cf. 1Cor 15, 3), ou seja, que “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze” (1Cor 15, 3-5). A ressurreição de Jesus é um fato que ocorreu num momento preciso do tempo, e Aquele que ressuscitou, naquele preciso momento, está vivo hoje, neste momento. Ressuscitou e, portanto, está vivo no presente.
A conversão de Paulo, segundo o Papa, está nessa passagem. A passagem da consideração de que a salvação dependia de suas boas obras, realizadas segundo a lei (a lei é a lei de Deus, a lei são os dez mandamentos de Deus), para o simples reconhecimento de que a salvação era e é a presença de um Outro. Era e é a presença de Jesus.
Ainda no Ângelus de domingo 25 de janeiro, o papa Bento XVI, (e isto chamou minha atenção, também porque o rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, por quem tenho grande estima e que posso chamar amigo de 30Dias, salientou essa observação do Papa), disse que não poderíamos falar propriamente de uma conversão de Paulo, pois Paulo já acreditava no Deus único e verdadeiro e era “irrepreensível” no que concerne à lei de Deus. Ele mesmo o diz na Carta aos Filipenses (3, 6).
A conversão de Paulo (e permitam-me aqui retomar as palavras que Santo Agostinho usa para indicar sua própria conversão) é simplesmente a passagem da sua dedicação a Deus para o reconhecimento do que Deus cumpriu e cumpre em Jesus.
Agostinho descreve assim a sua conversão: “Quando li o apóstolo Paulo [e logo depois – pois nem ler as Escrituras é suficiente – acrescenta:] e minhas feridas foram tocadas por vossos dedos e foram por eles curadas, discerni perfeitamente a diferença que havia inter praesumptionem et confessionem / entre a dedicação e o reconhecimento”. Praesumptio não indica a princípio uma coisa ruim. Com o tempo é que descamba para uma presunção ruim; mas, a princípio, indica a tentativa do homem de alcançar o ideal bom que intuiu. A conversão cristã é a passagem dessa tentativa do homem de realizar o bem (as boas obras, como dizia o papa Bento XVI) para o simples reconhecimento da presença de Jesus. Da praesumptio, dedicação, à confessio, reconhecimento. A confessio, o reconhecimento, é como quando a criança diz: “Mamãe”. Como quando a mãe vem ao encontro da criança e esta lhe diz: “Mamãe”.
Caravaggio, <I>A conversão de Paulo</I>, Capela Cesari, igreja de Santa Maria do Povo, Roma

Caravaggio, A conversão de Paulo, Capela Cesari, igreja de Santa Maria do Povo, Roma

A conversão cristã, para Agostinho e para Paulo, é (permitam-me usar esta imagem de Dom Giussani, que, a meu ver, não tem equivalente) a passagem do entusiasmo da dedicação ao entusiasmo da beleza; do entusiasmo da nossa dedicação, que em si é bom, ao entusiasmo despertado por uma presença que atrai o coração, uma presença que se deixa encontrar gratuitamente e gratuitamente se deixa reconhecer. Paulo não fez nada para encontrá-Lo. O fato de Ele vir gratuitamente ao nosso encontro realiza a passagem da Poderíamos também dizer que, quando temos a graça de viver a mesma experiência que Paulo viveu, uma experiência idêntica à dele, mesmo infinitamente distante dele, é como se todas as palavras cristãs, a palavra fé, a palavra salvação, a palavra igreja, deixassem transparecer a iniciativa de Jesus Cristo. É Ele que desperta a fé. A fé é obra Sua. É Ele que salva. É Sua iniciativa doar a salvação. É Ele que constrói Sua igreja. “Aedificabo ecclesiam meam” (Mt 16, 18). Aedificabo é um futuro: “Edificarei minha Igreja” sobre a profissão de fé de Pedro, sobre a graça da fé doada a Pedro (cf. Mt 16, 18). É Ele que edifica pessoalmente, no presente, a Sua Igreja sobre um dom Seu.
Como é bonito dizer as palavras cristãs mais simples, a palavra fé, a palavra esperança, a palavra caridade, e perceber que essas palavras indicam uma iniciativa d’Ele, permitem vislumbrar um gesto Seu, a Sua ação. Como experimentou Santa Teresinha do Menino Jesus: “Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim”.
Nós, sacerdotes, na segunda semana depois da Páscoa, lemos no breviário as cartas que Jesus envia às sete igrejas, no livro do Apocalipse. Numa dessas cartas, Jesus diz: “Não renegaste a minha fé” (Ap 2, 13). A minha fé. É a fé de Jesus.
Gratia facit fidem”. Como é simples e bela essa expressão de Santo Tomás de Aquino! É a graça que cria a fé. É Ele que se deixa reconhecer. “Ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair” (Jo 6, 44 e 65), diz Jesus. E Santo Agostinho comenta: “Nemo venit nisi tractus / Ninguém vem [a Jesus], se não é atraído”. A fé é iniciativa Sua. A salvação é iniciativa Sua. É iniciativa Sua a Sua Igreja.
Permitam-me contar-lhes um de meus primeiros encontros com Dom Giussani. A oportunidade para esse encontro me foi dada pelo fato de ter conhecido Angelo Scola, o atual patriarca de Veneza, na época do seminário, em Venegono. Foi ele que me levou a encontrar Dom Giussani. Ainda me lembro daquele encontro em Milão. Giussani falava a um grupo de jovens. A certa altura, perguntou: “O que é que nos põe em relação com Jesus Cristo? O que é que, agora, nos põe em relação com Jesus Cristo?”. Alguns responderam: “A Igreja”, “a comunidade”, “a nossa amizade”, etc. Depois de todos esses depoimentos, Giussani repetiu a pergunta: “O que é que nos põe em relação com Jesus Cristo?”, e em seguida deu ele mesmo a resposta: “O fato de que Ele ressuscitou”. Isso não esquecerei jamais! “O fato que Ele ressuscitou”. Porque, se não tivesse ressuscitado, se não estivesse vivo, a Igreja seria uma instituição meramente humana, como tantas outras. Um peso a mais. Todas as coisas meramente humanas, no final, se transformam num peso.
“O que é que nos põe em relação com Jesus Cristo? O fato de que Ele ressuscitou”. A Igreja é a visibilidade d’Ele vivo. “A Igreja não goza de outra vida”, diz o Credo do povo de Deus, de Paulo VI, “senão a vida da sua graça”. Não tem outro início, a cada momento, senão a Sua atração, o fascínio da Sua graça. A igreja é o termo visível do gesto de Jesus vivo que encontra o coração e o atrai.
Ler Paulo, vivendo por graça o que Paulo compreendeu em sua conversão (como diz o Papa), faz Jesus Cristo transparecer em todas as palavras cristãs, dá a todas as palavras cristãs essa leveza. Do contrário, elas se tornam pesadas. Se a fé fosse uma iniciativa nossa, estaríamos acabados. Como é uma iniciativa d’Ele, é sempre possível a renovação do Seu dom. E, portanto, é sempre possível recomeçar. É uma iniciativa d’Ele, a cada instante. “Gratia facit fidem [...] quamdiu fides durat”.
Foi uma coisa muito bonita o fato de, em 1999, a Comissão Teológica de Estudos entre a Igreja Católica e os luteranos, valorizando justamente essa frase de Santo Tomás de Aquino, ter reconhecido que entre a teologia de Lutero sobre a justificação pela fé e os aspectos essenciais da doutrina dogmática do Concílio de Trento, no decreto De iustificatione, há uma surpreendente identidade.
Santo Tomás de Aquino, portanto, diz que “a graça cria a fé não apenas quando a fé começa, mas a cada instante em que dura”. E acrescenta esta observação belíssima: é necessária a mesma atração da graça, o mesmo tesouro de graça, quer para fazer que nós que cremos permaneçamos na fé, hoje, quer para fazer uma pessoa (caso haja aqui alguém que não crê) passar da não-fé para a fé.
Eu disse isso apenas para explicar que a conversão de Paulo, como de todo cristão, se realiza na passagem da iniciativa do homem para a iniciativa de Jesus, para a surpresa da iniciativa de Jesus, para a confessio supplex. Como era bonito, na missa em latim, quando, antes do Sanctus, dizíamos sempre: “Supplici confessione / Com reconhecimento que pede”. Pois não é possível reconhecer uma presença que ama você, a não ser pedindo que ela continue a amá-lo.
Agora, três sugestões.

<I>A conversão de Paulo</I>, Catedral de Monreale, Palermo

A conversão de Paulo, Catedral de Monreale, Palermo

1. “... pela fé no Filho de Deus, que me amou...”
Leiamos Gl 1, 15, em que o próprio Paulo descreve a passagem da sua iniciativa para a iniciativa de Deus.
“Quando, porém, Aquele que me separou desde o seio materno [a graça da fé nasce de um mistério, que é o da escolha de Deus, da eleição de Deus. Nós não podemos julgar esse mistério: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16)]... quando Aquele que me separou desde o seio materno e me chamou por sua graça [como é bonito esse me chamou por sua graça! Não basta a voz, nem mesmo a voz de Jesus, se a atração de Jesus não toca o coração. É a Sua graça, é a Sua atração que comove o coração], houve por bem revelar a mim o seu Filho...”. Houve por bem revelar-me Seu Filho. Essa é a conversão de Paulo. Aquele que me escolheu e me chamou por Sua graça me fez reconhecer Seu Filho.
Gl 2, 20: “Minha vida presente na carne [na condição humana, marcada pelo pecado original, mesmo depois do batismo. O batismo tira o pecado, mas deixa a fragilidade que vem do pecado e inclina para o pecado], eu a vivo pela fé no Filho de Deus [no reconhecimento do Filho de Deus], que me amou e se entregou a si mesmo por mim”.
Leio-lhes como o papa Bento XVI comentou essa frase: “A sua fé [a fé de Paulo] é a experiência de ser amado por Jesus Cristo de modo muito pessoal. [...] Cristo enfrentou a morte [...] por amor a ele — a Paulo — e, como Ressuscitado, ainda o ama. [...] A sua fé não é uma teoria, uma opinião sobre Deus e sobre o mundo. A sua fé é o impacto do amor de Deus sobre o seu coração”.
A fé de Paulo nasce do impacto do amor de Jesus com seu coração. A fé é a iniciativa do amor de Jesus Cristo sobre o seu coração.
Permitam-me ler a vocês uma frase que descobri indo a Cássia rezar a Santa Rita (Santa Rita era casada e tinha dois filhos. O marido é assassinado e ela perdoa publicamente o assassino e pede que seus dois filhos não vinguem o pai. Depois, entra no mosteiro das monjas agostinianas de Cássia). A frase que vou ler para vocês é de um monge agostiniano beato, cujo escrito sobre a paixão de Jesus era conhecido por Santa Rita: “A amizade é uma virtude, mas sermos amados não é uma virtude, é a felicidade”. Parece-me que essas palavras indicam de onde vem a caridade e o que é a caridade. A amizade é uma virtude, é o ponto mais alto da virtude. Santo Tomás de Aquino diz que a caridade é amizade. Mas sermos amados não é uma virtude, é a felicidade. Sermos amados vem antes (cf. 1Jo 4, 19). Para amar, é preciso que sejamos amados. É preciso primeiro que estejamos contentes por ser amados.
Santo Agostinho, na passagem fantástica em que, comparando os apóstolos Pedro e João um com o outro, questiona-se quem é melhor entre os dois, responde que Pedro é melhor, pois quando Jesus lhe pergunta: “Simão, filho de João, tu me amas [agapás] mais do que estes?” (Jo 21, 15), Pedro responde: “Sim, Senhor, tu sabes que te quero bem [filéo]” (Jo 21, 15). Portanto, Pedro é melhor que João. Comparando a condição de Pedro, que quer mais bem a Jesus, com a condição de João, que é mais amado por Jesus, Agostinho diz: “Facile responderem meliorem Petrum, feliciorem Ioannem / É fácil para mim responder que Pedro é melhor [porque quer mais bem a Jesus], mas João é mais feliz [porque é mais amado por Jesus]”. Sermos felizes depende de sermos amados. Não depende do nosso pobre amor. Pedro é melhor porque quer mais bem a Jesus, mas João é mais feliz porque é mais amado por Jesus.
O Papa diz que a fé de Paulo é o impacto do amor de Jesus sobre seu coração, e assim a própria fé, justamente porque é o impacto do amor de Jesus sobre seu coração, desperta e é também o pobre amor de Paulo a Jesus. Essa atração amorosa de Jesus, enchendo de contentamento o coração de Paulo, desperta também o pobre amor de Paulo a Jesus, pobre como o de Pedro.
O papa Bento XVI, numa audiência de quarta-feira, comentando a pergunta de Jesus a Pedro: “Simão, filho de João, tu me amas?”, insistiu na diferença entre os verbos gregos que Jesus e Pedro empregam. Jesus usa um verbo que indica um amor totalizante (“... tu me amas [agapás]?”). Pedro usa um verbo que expressa o pobre amor humano (“sabes que te quero bem [filéo]”). “Eu te quero bem tal como é possível a um pobre homem”. Então, na terceira vez (é belíssimo como o Papa descreve isto!), Jesus se adapta ao pobre amor humano de Pedro e pergunta-lhe simplesmente se lhe quer bem, tal como um pobre homem pode querer bem.
Lerei agora 1Cor 15, 8ss. Paulo descreve mais uma vez, aqui, o encontro com Jesus no caminho para Damasco: “Em último lugar, apareceu também a mim...”. Como é bonito esse último lugar! Na liturgia ambrosiana, o sacerdote que celebra a missa diz: “Nobis quoque minimis et peccatoribus”. Na liturgia romana, diz apenas: “Nobis quoque peccatoribus”. Na liturgia ambrosiana, aquele que celebra a santa missa, quer seja o bispo, quer seja o último dos padres, diz: “Também a nós que somos os menores e pecadores”. Da mesma forma, Paulo diz ser o último, o menor.
“Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. Pois sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou: e sua graça a mim dispensada não foi estéril. Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo”.

<I>Ananias batiza Paulo</I>, Catedral de Monreale, Palermo

Ananias batiza Paulo, Catedral de Monreale, Palermo

2. Paulo é sempre arrebatado pela iniciativa de Jesus
Paulo é sempre arrebatado pela iniciativa da graça. E essa é uma das coisas mais impressionantes para quem lê suas Cartas. Não apenas o início é graça, não apenas o início é iniciativa de Jesus. Paulo é sempre arrebatado pela iniciativa de Jesus, momento por momento. E é isso que acontece a cada um de nós. Mas a experiência de Paulo, desse ponto de vista, é de uma dramaticidade e de uma beleza únicas.

Leio-lhes uma passagem da Segunda Carta aos Coríntios (12, 7ss) que já me confortava muito quando eu estava no seminário. Na época, o que me impressionava eram as palavras; hoje, o caminho da vida, por Sua graça e Sua renovada misericórdia, deu realidade a essas palavras.
A Segunda Carta aos Coríntios, para mim, é a Carta mais bonita, pois é aquela em que Paulo – como ele mesmo diz – abre todo o seu coração (2Cor 6, 11). É a Carta em que Paulo, diante da “mansidão e bondade de Cristo” (2Cor 10, 1), descreve aquilo que ele é, o ser indefeso que ele é, a fragilidade que ele é.
“Já que essas revelações eram extraordinárias, para eu não me encher de soberba, foi-me dado um aguilhão na carne – um anjo de Satanás para me espancar – a fim de que eu não me encha de soberba [como quer que leiamos esse “aguilhão na carne”, essa fragilidade, essa tentação, é assim que Paulo se expressa]. A esse respeito [em razão desse sofrimento] três vezes pedi ao Senhor que o afastasse de mim [que afastasse esse sofrimento, essa tentação, essa fragilidade]. Respondeu-me, porém: ‘Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que a força manifesta todo o seu poder’” (2Cor 12, 7ss). A Sua força se manifesta plenamente na fraqueza.
Permitam-me fazer uma pequena correção a uma frase que li num painel da mostra sobre São Paulo. Eu não escreveria que Paulo tem “orgulho de sua fraqueza”. Não podemos ter orgulho de nossa fraqueza. Santo Irineu, comentando esse trecho da Segunda Carta aos Coríntios, e tendo em mente a gnose (um dos elementos essenciais da heresia gnóstica é a não distinção entre o bem e o mal, a ponto de apresentar, e Hegel o teoriza, o mal em Deus e de Deus), tem extrema atenção em mostrar a diferença entre fraqueza e graça. A fraqueza evidencia a graça. A fraqueza, quando é abraçada, torna mais evidente o fato de sermos abraçados. Mas o positivo é que sejamos abraçados, não a fraqueza. Na fraqueza, que é a condição humana, o fato de alguém ser abraçado gratuitamente por Jesus é mais evidente. Quando uma criança está doente, é como se a mãe e o pai a amassem mais, mas o fato de a criança estar doente não é um valor. É que essa fraqueza torna mais evidente o fato de que é amada. Num tempo, como o nosso, em que a gnose é culturalmente hegemônica na mentalidade do mundo, e muitas vezes também na Igreja do Senhor, como é importante essa distinção! A fraqueza não é um bem em si mesma. A fraqueza torna mais evidente o fato de sermos abraçados quando somos abraçados, o fato de sermos amados quando somos amados. Torna mais evidente a gratuidade de sermos amados. O pecado é pecado e o pecado mortal merece o inferno, como diz o Catecismo. Mas quando Jesus, depois de ter sido traído, olhou para Pedro (Lc 22, 61), esse olhar evidenciou o amor de Jesus pelo pobre Pedro.
“Por conseguinte, com todo o ânimo prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que pouse sobre mim a força de Cristo” (2Cor 12, 9). A fraqueza é a condição para que a Sua força se revele com mais evidência a todos.

El Greco, <I>Retrato de São Paulo</I>, Casa y Museo de El Greco, Toledo

El Greco, Retrato de São Paulo, Casa y Museo de El Greco, Toledo

3. O Evangelho que Paulo transmitiu
Duas breves observações sobre o anúncio de Paulo.
O que Paulo anuncia? Em primeiro lugar, o que ele, por sua vez, recebeu. Como é bonito! Paulo não inventa nada, anuncia aquilo que ele mesmo recebeu.
Vou ler 1Cor 15, 1ss. Estes versículos contêm todo o anúncio de Paulo. Todo o anúncio de Jesus Cristo.
“Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei, que recebestes, no qual permaneceis firmes, e pelo qual sois salvos, se o guardais como vo-lo anunciei; doutro modo, teríeis acreditado em vão. Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze”. Paulo anuncia o testemunho de Jesus. “O testemunho de Deus” (1Cor 2, 1). O testemunho que Deus deu ressuscitando Jesus dos mortos. O testemunho que Jesus Cristo deu de ter ressuscitado, mostrando-se aos discípulos. Faz parte da essência do anúncio cristão a manifestação visível do Ressuscitado às testemunhas que Ele escolhe. Se não se tivesse tornado visível às testemunhas, se Ele mesmo não tivesse dado testemunho de ter ressuscitado, o testemunho dos apóstolos teria sido uma invenção deles.
Heinrich Schlier, que, na minha opinião, é o maior exegeta que a Igreja teve no século passado, insiste muito nesse fato! É Jesus que, dando-se a ver, dá testemunho de Si mesmo. É Jesus que, dando-se a ver aos apóstolos, deixando-se tocar e comendo com eles, testemunha a realidade da Sua ressurreição: “Tomé, vê e põe teu dedo aqui” (cf. Jo 20, 27). “Visus est, tactus est et manducavit. Ipse certe erat / Foi visto, foi tocado, comeu. Era realmente Ele”, diz Santo Agostinho num discurso contra os gnósticos, comentando a aparição de Jesus ressuscitado aos apóstolos a partir do Evangelho de Lucas (Lc 24, 36-49).
É Jesus que, dando-se a ver, testemunha ter ressuscitado, estar vivo. O testemunho dos apóstolos é um reflexo de Seu testemunho. Como isso é importante! A luz da Igreja é apenas uma luz refletida. “Lumen gentium cum sit Christus / É Cristo a luz dos povos”. A Igreja reflete essa Sua luz como num espelho. Uma das frases mais belas de Paulo, muito valiosa para mim, diz: “E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem [o reflexo de Jesus é eficaz: muda a vida], cada vez mais resplandecente, pelo Espírito do Senhor” (2Cor 3, 18).
Paulo anuncia o que recebeu, o que o próprio Jesus Cristo testemunhou a Seus apóstolos.
Faço uma segunda observação a respeito do anúncio de Paulo. Esta coisa belíssima também pode ser lida na Primeira Carta aos Coríntios (2, 1ss). O anúncio de Jesus traz consigo a prova da sua verdade. A questão não é que nós demonstremos que Jesus está vivo. É o próprio Jesus que, mostrando-se, agindo, demonstra estar vivo. Do contrário, aumentamos a dúvida, nossa e dos outros. É Jesus que, agindo, e portanto mostrando-se, demonstra estar vivo. A demonstração da verdade do cristianismo é a ação e a manifestação de Jesus no presente.
Schlier diz isso usando uma expressão belíssima: “O kerygma e os dons, o kerygma e os milagres são uma coisa só”. E Paulo o diz de maneira ainda mais simples que o grande exegeta: “Eu mesmo, quando fui ter convosco, irmãos, não me apresentei com o prestígio da palavra ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus [o testemunho que Deus deu]. Pois não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado. Estive entre vós cheio de fraqueza [como é bonito isso!], receio e tremor; minha palavra e minha pregação nada tinham da persuasiva linguagem da sabedoria [não queria demonstrar ele que Jesus era real], mas eram uma manifestação do Espírito [ou seja, do fato de que Jesus ressuscitado se manifesta] e poder [de Sua ação, de Sua manifestação], a fim de que a vossa fé não se baseie sobre a sabedoria dos homens, mas sobre o poder de Deus” (1Cor 2, 1-5).
A fé só pode basear-se na força de Deus, ou seja, na ação de Jesus, na manifestação de Jesus. Não vencemos o medo da morte (cf. Hb 2, 15) com os argumentos de sabedoria, com os nossos discursos. O medo da morte é vencido quando Jesus, agindo no presente, se dá a reconhecer vivo. Jesus demonstra ser real, estar vivo, quando se mostra. Quando mostra a Sua ação, quando mostra a Sua força. “Dando uma prova totalmente Sua”, escreve Schlier, que experimentamos “como realidade tangível”.
Filippino Lippi, <I>São Paulo visita São Pedro na prisão</I>, Capela Brancacci, Santa Maria do Carmo, Florença

Filippino Lippi, São Paulo visita São Pedro na prisão, Capela Brancacci, Santa Maria do Carmo, Florença


Concluo com as palavras de Giovanni Battista Montini, em suas notas sobre as Cartas de São Paulo, escritas em Roma quando era ainda um jovem sacerdote, entre 1929 e 1933: “Ninguém mais que ele [Paulo] sentiu a insuficiência humana e reconheceu e exaltou a ação livre, por si só suficiente, necessária para nós, da graça de Deus salvador”. É belíssimo! Livre: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi” (Jo 15, 16). Por si só suficiente: “Basta-te a minha graça” (2Cor 12, 9). Necessária para nós: “Sem mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5).
E Montini acrescenta mais uma frase, comovente, se pensarmos nas humilhações que ele também sofreu: “Ele [Paulo] sentiu aversão por sua presença ‘contemptibilis’ [desprezível]”.
Praesentia corporis infirma [escreve na Segunda Carta as Coríntios, 10, 10] / Uma vez presente, é um homem fraco / et sermo contemptibilis / e a sua linguagem é desprezível”.
“Ele sentiu aversão por sua presença contemptibilis. Experimentou depressões de espírito desoladoras”.
Uma expressão dessa humanidade tão fraca de Paulo se encontra em 2Cor 2, 12: “Cheguei então a Trôade para lá pregar o evangelho de Cristo, e, embora o Senhor me tivesse aberto uma porta grande [portanto, era possível para ele anunciar o Evangelho de Cristo], não tive repouso de espírito, pois não encontrei Tito, meu irmão. Por conseguinte, despedi-me deles e parti para a Macedônia”. Paulo também não tem forças para anunciar o Evangelho, se não possui o conforto da graça do Senhor, que brilha refletida no rosto de uma pessoa querida. Querida simplesmente por esse reflexo de graça.
E depois continua: “Quando chegamos à Macedônia, nossa carne [nossa pobre humanidade] não teve repouso algum, mas sofremos toda espécie de tribulação: por fora, lutas; por dentro, temores” (2Cor 7, 5ss).
Como é verdade! “Entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus avança, peregrina, a Igreja”, diz a Lumen gentium. Santo Agostinho, na passagem da De civitate Dei de que é extraída essa frase, escreve que as perseguições do mundo vêm em primeiro lugar de dentro da Igreja. Até porque as perseguições do mundo são, antes de mais nada, nossos pobres pecados, que fazem sofrer o coração de quem é amado por Jesus e quer bem a Jesus.
Continua Paulo: “Mas aquele que consola os humildes, Deus, consolou-nos pela chegada de Tito. E não somente pela sua chegada, mas também pelo consolo que recebeu de vossa parte”. Paulo, que em Trôade não tinha tido forças para anunciar o Evangelho, é confortado com a chegada de Tito, também porque Tito lhe fala do afeto que as pessoas de Corinto têm por ele.
“A esta consolação pessoal sobreveio uma alegria maior ainda: a de vermos a alegria de Tito” (2Cor 7, 13). Porque não basta lembrar o afeto de pessoas distantes, se quem fala desse afeto não está ele mesmo alegre, contente, no presente.

Quando vou rezar no túmulo de Paulo na Basílica de São Paulo Fora dos Muros, em Roma, de joelhos, repito sempre um hino: “Pressi malorum pondere, te, Paule, adimus supplices / Oprimidos pelo peso de tantas contrariedades [em primeiro lugar, de nossos pobres pecados], vimos a ti, ó Paulo, suplicantes / [...] quos insecutor oderas defensor inde amplecteris / [...] aqueles que tu, quando eras perseguidor, odiaste, e agora como defensor abraças”. Nesse abraço, nesse sermos amados por Jesus, também por intermédio dos amigos de Jesus, podemos repetir: “A amizade é uma virtude, mas sermos amados não é uma virtude, é a felicidade”.
Obrigado.


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