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ANIVERSÁRIOS
Extraído do número 10/11 - 2009

Augusto Del Noce.
Um pensamento não maniqueísta


Há vinte anos, em 30 de dezembro de 1989, morria, em Roma, Augusto Del Noce, um dos maiores intelectuais italianos do pós-guerra, assíduo colaborador de 30Dias. O aniversário de sua morte, ao qual se seguirá, em 2010, o centenário de seu nascimento, permite voltar a refletir sobre o percurso conceitual do filósofo


de Massimo Borghesi


Augusto Del Noce [© Grazia Neri]

Augusto Del Noce [© Grazia Neri]

O leitmotiv de um pensamento
Há vinte anos, em 30 de dezembro de 1989, morria, em Roma, Augusto Del Noce, um dos maiores intelectuais italianos do pós-guerra, assíduo colaborador de 30Dias. O aniversário de sua morte, ao qual se seguirá, em 2010, o centenário de seu nascimento, permite voltar a refletir sobre o percurso conceitual de um filósofo por quem o interesse nunca diminuiu, tanto no âmbito católico quanto no leigo. Autor complexo, genial na indicação de genealogias e percursos ideais inexplorados, Del Noce parece desorientar quem procura encontrar a unidade de seu pensamento. Tomo aqui a liberdade de apresentar uma hipótese, por mais insólita que possa soar. O elemento de fundo do pensamento delnociano, seu impulso ideal, não está, como ele repetiu mais de uma vez, referindo-se a qualquer doutrina filosófica, no desejo de conhecer, numa gnosiologia, mas, sim, numa afirmação moral; em seu caso, na rejeição de “qualquer cumplicidade com o mal”1. É esse posicionamento que o leva a encontrar e a constituir amizade, em 1935, com Aldo Capitini, uma nobre personalidade antifascista, teórico da não violência. Muitos anos depois, chegaria mesmo a afirmar “que é a sensibilidade ao problema da violência [...] que distingue os filósofos autênticos dos filósofos acadêmicos”2. Na correspondência com Norberto Bobbio, pouco antes de sua morte, escreverá que “tivemos em comum uma aversão, desde os primeiros anos da juventude: a aversão ao predomínio da força”3. Essa “aversão” é o que nos permite retomar passo a passo o percurso existencial, teológico, político e filosófico de Del Noce4. A começar da oposição moral ao fascismo, após a guerra da Etiópia, em 1936, uma vez que “o que o fascismo afirmava era um reinado universal da força, a elevação da violência pura a valor”5. Passando pela decepção com a Resistência (que inicialmente tinha visto como uma primavera) pois traía a identidade entre “antifascismo” e “não violência”, para ele decisiva6. E chegando à oposição e à crítica ao marxismo, pela redução da ética a política e pela justificação que faz da violência. Percorrendo as várias etapas do pensamento do filósofo, podemos encontrar, assim, uma espécie de fio condutor: a rejeição da violência, a não cumplicidade com o mal, como motivo de fundo de sua reflexão. Essa convicção moral é o horizonte em que se bifurca o caminho de seu pensamento. Vem daí, e este é o aspecto que gostaríamos de sublinhar, uma vez que é negligenciado nos outros estudos sobre o autor, o encontro com as categorias do pensamento gnóstico, consideradas por ele as mais adequadas para entender a forma nova que a violência assume ao longo do século XX.

<I>Ambrósio batiza Agostinho</I>, Pinacoteca Vaticana, Cidade do Vaticano

Ambrósio batiza Agostinho, Pinacoteca Vaticana, Cidade do Vaticano

Da rejeição maniqueísta da história ao maniqueísmo ativo. O problema do marxismo: gnose ou terapia antignóstica?
A familiaridade de Del Noce com os conceitos gnósticos data de meados da década de 1930, quando sua oposição ideal ao fascismo coincide com o seu interesse pelo filósofo Piero Martinetti. O pensamento de Martinetti, inspirado num dualismo kantiano fortemente pessimista, levava a um incurável conflito entre interioridade e exterioridade, entre moral e poder, vida espiritual e história7. O mundo exterior, dominado pelo fascismo, se opunha ao mundo interior, numa espécie de contraposição entre o reino das trevas e o reino da luz que renovava, indiretamente, um quadro gnóstico-maniqueísta, “cátaro”8. “A mentalidade maniqueísta, nos últimos anos do fascismo”, escreve Del Noce em 1944, “foi uma tentação bastante forte (e encontrou, também filosoficamente, nas últimas obras de Martinetti e Rensi, seus intérpretes). Podia o avanço do fascismo deixar de parecer o de uma força pura e simples (e não de um valor; contra os valores, isso sim), que somente pelo impacto com uma força mais poderosa poderia ser detido [...] Mas na Itália, em 1938, a mentalidade maniqueísta era um estado de espírito desesperado [...] – meu também, em parte9. Del Noce confessa aqui sua tentação daqueles anos, tamanha a ponto de o levar a entrar em crise, seriamente, também no que diz respeito à fé católica. “Essa oposição entre a ética e a violência foi vivida por mim de maneira dilacerante nos anos entre 1930 e 1940. [...] Sofri essa contradição de um modo exasperado naqueles anos, dramaticamente, pois as várias filosofias que tinham então prestígio pareciam-me tentativas de viver em harmonia com a violência; a única certeza que eu tinha era a certeza moral, de ter de testemunhar pela ética contra a violência (daqui a minha amizade com Aldo Capitini). Não escondo também o fascínio que exerceram então sobre mim as formas religiosas orientadas para o dualismo gnóstico”10.
O Del Noce “gnóstico-maniqueísta” sai da crise espiritual que o atormenta em 1943, com a queda do fascismo, a recuperação da obra de Jacques Maritain e a experiência dos católico-comunistas, entre o fim de 1943 e os primeiros meses de 1944. A queda do regime abre a possibilidade de pensar numa relação diferente entre idealidade e história, uma história já não abandonada ao reino da violência e do mal. A mentalidade maniqueísta, declara Del Noce em 1944, “não é mais a minha”11. O problema que o momento histórico impõe aos católicos é agora o da determinação da natureza do comunismo: este é um aliado na criação da nova sociedade ou um adversário, inconciliável com a posição cristã? Em Humanismo integral, de Maritain, Del Noce podia encontrar tanto a indicação de uma possível aliança prática com a esquerda marxista, quanto a observação de que o humanismo de Marx era um humanismo “maniqueísta”, que “obriga a repelir para as trevas toda uma parte da herança humana, enquanto religiosa”12. O uso do termo “maniqueísta” é retomado por Del Noce em relação ao marxismo, uma vez que, para essa ideologia, “o mal está na estrutura do real”13. A história, vista como contraposição dialética entre as classes, uma negativa e outra positiva, reapresenta um dualismo em que a hegemonia de uma das duas partes sociais coincide com o mundo perdido, alienado, próprio das cosmologias gnósticas. O problema que Del Noce encontra aqui é, porém, o uso de um conceito – o de maniqueísmo – que parece se referir, inopinadamente, a fenômenos diferentes. De um lado, esse conceito descrevia, no final da década de 1930, a contraposição martinettiana entre ética e história; de outro, parecia referir-se agora a uma doutrina que incorporava a ética à história e santificava a violência. O maniqueísmo, este era o problema, repelia ou implicava a ação violenta? Pode uma mesma go de 1958 publicado em Il Mulino, dedicado à obra de Felice Balbo, Del Noce tomava a obra de Claude Tresmontant Études de métaphysique biblique (Paris, 1955) como exemplo paradigmático dessa interpretação. Para Tresmontant, Marx, em sua crítica a Hegel, repete a crítica de Aristóteles a Platão, permitindo ao pensamento cristão repudiar as sugestões gnósticas e recuperar o contato com o pensamento bíblico, realista e antiplatônico. Essa leitura de Marx explica a aproximação de Del Noce da experiência dos católicos comunistas, em 1943, quando o autor se libertava, enfim, de sua fuga idealista da história. Em 1958, Del Noce observa como “Tresmontant desenvolve a tese, que considero verdadeira, segundo a qual não se deram na história, e nem são em si possíveis, senão dois tipos essenciais de pensamento metafísico, o gnóstico e o cristão, especificados por uma diferente concepção do mal: para o gnosticismo (que tem seu ponto de chegada no pensamento hegeliano), o mal faz parte da própria estrutura da realidade, e sua relação com a existência finita é necessária; para o pensamento bíblico e cristão, o mal foi introduzido no mundo pelo pecado, ruptura da aliança entre o homem e Deus”15. Esse dualismo ficara claro para Del Noce graças à leitura da obra de Lev Chestov, uma vez que havia escrito, em 1946, o prefácio de dois ensaios seus publicados pela editora Bocca. O pensador russo, mesmo em meio a muitas ambiguidades, permitia a compreensão de um ponto importante. O racionalismo moderno, culminante em Hegel, é uma filosofia que justifica o negativo, considerando-o necessário no quadro da totalidade da natureza e da história. O mal pertence à estrutura da existência finita, é conatural a esta. Para a fé bíblica, ao contrário, o mal é acidental e, como tal, um dia poderá ser vencido. O racionalismo, em sua versão hegeliana, se aproxima da compreensão gnóstica do mundo: o finito, enquanto finito, é mal.

Karl Marx

Karl Marx

O erro de Tresmontant. Velha e nova gnose
Del Noce concordava, portanto, com Tresmontant quando este opunha o gnosticismo e o cristianismo. Mas não concordava com ele na dissociação entre platonismo e judaísmo, entre pensamento helênico e pensamento cristão: a chamada deselenização. A identificação do pensamento grego com a gnose, oposta ao pensamento cristão, era um erro grave que não levava em consideração o fato, demonstrado pela Cabala e pelo misticismo judaico moderno, de que “o gnosticismo encontrou meios de se arraigar no pensamento hebraico, como também no grego”16. Para Del Noce, “parece infinitamente mais correspondente à verdade histórica dizer que o cristianismo salvou, assim, tanto o judaísmo quanto o pensamento grego das involuções gnósticas”17. O que escapa a Tresmontant é que, se vemos “no pensamento de Hegel o ponto de chegada do gnosticismo, o fato de Marx ter libertado o pensamento hegeliano dos aspectos platônicos não significa de modo algum que o tenha libertado dos aspectos gnósticos”18. Marx, na realidade, rejeita o momento platônico de Hegel e conserva o gnóstico: a filosofia da história baseada na dialética entre unidade (comunismo primitivo), cisão (alienação capitalista) e reconciliação (comunismo final). A realização do bem passa, aqui, pela grande catástrofe (a revolução), que, virando de ponta-cabeça o mundo perdido, permite a saída da alienação e a instauração do novo Éon. A correta compreensão da relação Marx-Hegel torna-se, assim, um problema de máxima importância. Se interpretamos, como Tresmontant, o marxismo como oposto do gnosticismo hegeliano, a filosofia de Marx passa a ser a melhor aliada da fé na luta contra a gnose, o apoio que permite a plena reabilitação do mundo natural. “O ponto de chegada lógico é a encarnação sem cruz e sem redenção do pecado”19. É o catolicismo naturalista de Balbo e de Rodano, em que um certo tomismo aristotelizante se opõe a qualquer possível encontro com a posição “agostiniana”. Ao contrário, se fica claro que o Hegel “gnóstico” continua na dialética de Marx, então a terapia marxista da gnose não se sustenta.
O ponto, segundo Del Noce, era “um equívoco extremamente grave, que é o fundamento do neomodernismo: a ideia da unidade da gnose, uma unidade entre a gnose pré-cristã e a pós-cristã”20. Tresmontant, e com ele Rodano e Balbo, não fazem distinções entre as possíveis variantes de um mesmo modelo, entre gnose antiga e gnose moderna. A “gnose antiga ateíza o mundo (ao negar sua criação por parte de Deus) em nome da transcendência divina; a pós-cristã o ateíza em nome de um imanentismo radical. Podemos certamente encontrar um caráter comum a ambas, na busca de evitar os males da existência, mas sublinhar o elemento comum serve para evidenciar melhor a diferença substancial: a que existe entre o pessimismo e o otimismo”21. A gnose hegeliana, encontrada no ponto culminante de um processo em que a religião se reduz a filosofia, é uma nova gnose, “pós-cristã”, que vê na história não o lugar da evasão, mas da realização do homem, o qual, na superação do mundo alienado, realiza prometeicamente sua natureza deiforme. O que o marxismo, na sequência de Hegel, combate é a forma antiga da gnose, a que abandona o mundo e a matéria a seu destino de iniquidade. Faz isso, porém, dentro de um modelo que reatualiza a si mesmo na enquadramento do ateísmo moderno pós-cristão. “Dentro do novo gnosticismo, a forma ativista e revolucionária está destinada a prevalecer sobre a forma contemplativa22. Com isso, não podemos dizer que a velha gnose tenha desaparecido. Esta sobrevive nos filões pessimistas do pensamento moderno, em Martinetti e em Simone Weil, por exemplo, em quem um pessimismo, configurado de modo racionalista, luta dramaticamente com o cristianismo23. Essa inquietação religiosa é negada pelo otimismo da nova gnose, para a qual o mal e a dor do mundo não são um problema, uma ferida aberta, mas apenas um obstáculo necessário no caminho para o progresso.
Distinguindo as duas perspectivas, a antiga e a nova, Del Noce podia, assim, dar uma resposta à questão implícita da década de 1940: como era possível agrupar duas atitudes tão distantes – a martinettiana e a marxista – sob a única categoria do maniqueísmo? Na realidade, o posicionamento espiritual da década de 1930, compartilhado por Martinetti, apresentava analogias com o pessimismo da gnose antiga. Ao contrário, o novo ativismo da Resistência (católico-comunista), que previa a legitimação da violência, se enquadrava na versão nova da gnose, a tipicamente moderna. Como quer que seja, o tema da violência, como ficava evidente, se entrelaçava sempre com o da gnose. A violência moderna, a que se disseminou no século XX, não é uma violência “natural”. É o resultado do contexto pós-cristão, em que, pela primeira vez, é justificada como violência “criadora”, necessário parto doloroso do mundo novo que deve ser produzido. Em Violenza e secularização da gnose, seu ensaio de 1979, une os dois termos do problema. A paranoia pós-hegeliana está no paradoxo de uma perspectiva que dilata a esfera do negativo, do mal, da dor, com a finalidade de poder resolvê-lo numa época de pura positividade. A violência é justificada por uma teodiceia que desenha, mítica e gnosticamente, as linhas do mundo novo.

Antonio Rosmini

Antonio Rosmini

A recuperação de Agostinho
Nessa sua luta contra o pensamento “violento”, de uma forma bem mais sutil que a empregada por Foucault, Del Noce encontrou-se idealmente com um autor em que, de certa forma, reconheceu um processo semelhante ao seu: Agostinho. O fato de ter atravessado as névoas da tentação “maniqueísta”, entre os anos de 1936 e 1943, e de ter encontrado no cristianismo a resposta, gratuita e misteriosa, para o mal do mundo tornam-no seguramente próximo, até existencialmente, da perspectiva do santo bispo de Hipona. Não por acaso, em 1944, depois de ter-se libertado da tentação maniqueísta, escreve: “Nós nos encontramos hoje em condições melhores para entender a mentalidade maniqueísta em sua intencionalidade e em sua essência eterna. Creio que quem se dedicar a esse estudo chegará a uma conclusão filosófica inesperada: a de que o maniqueísmo é sempre correlativo a um defeito de criticidade da consciência moral, a um pessimismo humano insuficiente, ou seja, à consideração de formas humanas e sempre relativas de bem como um bem absoluto. E por esse caminho será possível libertar Santo Agostinho da acusação que tantos historiadores lhe fazem de ter-se voltado nos últimos anos, com a teoria dos splendida vitia, para uma posição próxima do maniqueísmo. Na realidade, a crítica a Mani talvez tenha suas raízes no pessimismo que mais tarde o levou a criticar Pelágio”24. O maniqueísmo representa um pessimismo imperfeito, que não envolve a alma divina e sua capacidade de autoelevação. Daí sua retomada na divinização do humano, que é o fio condutor da gnose moderna. O desencanto agostiniano se opõe à utopia, também à utopia maniqueísta, a partir de um dualismo novo entre civitas Dei e civitas mundi, cuja diferença é obra de Deus e não do homem. A consequência é liquidar com qualquer possível teologia política25. Como escreve Del Noce em sua resposta a Balbo, em perfeita linguagem agostiniana, “ou pomos a origem do mal na própria vontade do homem, ou esta está na injustiça [...] de uma estrutura social, removida a qual o mal também será tolhido. A consequência da primeira tese é a distinção mais precisa entre a religião e a política; na segunda tese, a política substitui a religião na luta contra o mal. É lícito a qualquer um optar por uma ou por outra; não é lícito, porém, contaminá-las. Certamente os santos transformaram o mundo, mas sem se propor a fazê-lo; a transformação é um ‘acréscimo’, dado a quem buscou em primeiro lugar o reino (não temporal) de Deus: segue-se à irradiação de uma autêntica experiência religiosa. Essa distinção marca também o limite que a concepção cristã deixa à ação estritamente política: a busca da minimização do mal [...], mas sem a pretensão direta de uma transformação do homem”26.
Agostinho, crítico do milenarismo, torna-se aqui o modelo de um pensamento não conservador, mas realista. É prova disso a leitura que Del Noce nos oferece do agostinismo cristão moderno, uma leitura que não se detém em Pascal, que em seu pessimismo roça o maquiavelismo, nem em Malebranche, com sua “a-historicidade”, mas, passando por Vico, recupera a relação positiva com a história, para concluir-se, enfim, em Rosmini, em quem o catolicismo se encontra com as liberdades modernas.
O agostinismo moderno, que Del Noce contrapõe ao filão imanentista, gnóstico, da modernidade, não é um percurso linear. É, antes, o resultado, na original reconstrução historiográfica realizada pelo pensador piemontês, de uma série de correções, de integrações. Del Noce, portanto, tem perfeita consciência de que a gnose moderna, a hegeliana, se impôs porque o pensamento cristão moderno, numa singular assonância com o gnosticismo antigo, perdeu a relação com a história. Esse é o elemento de verdade contido na reflexão de Balbo e de Rodano, elemento que Del Noce acolhe. O agostinismo moderno, aquele que procede da tradição cartesiana, parece impotente diante da nova gnose, que utiliza a história como legitimação de sua verdade. Essa fraqueza é evidente em Nicolas Malebranche, um dos mais importantes filósofos da França moderna, cujo pensamento, porém, como dirá Von Balthasar, dá lugar a um “reino de espectros, devoto e vazio de mundo” que “sucumbe ao juízo da revolução francesa, e sucumbe-lhe com a mesma necessidade com que o reino dos espectros de Hegel cairá vítima de Feuerbach e de Marx”27. Da mesma forma, para Del Noce, Malebranche “representa uma bifurcação em que é possível retroceder ao pensamento cátaro ou proceder rumo a Rosmini”28. A segunda direção é assegurada se o agostinismo, tendo-se libertado dos trilhos cartesianos, se encontra com a tradição tomista, para além das contraposições artificiosas entre filosofia da interioridade e filosofia da exterioridade que caracterizaram o pensamento cristão moderno. A obra de Étienne Gilson, com seu “tomismo agostiniano”, representava um exemplo paradigmático desse encontro29. Com ele, Del Noce compartilhava a ideia de que, na relação entre fé e razão, “o processo deve ir da fé à razão, pois o Deus da fé não é o Deus da razão mais alguma coisa. Há um salto, pois todos os conhecimentos filosóficos sobre Deus, juntos, não nos podem fazer chegar ao Deus redentor. Por conseguinte, em vez de falar de uma fé que se sobreponha ao conhecimento racional, será preciso falar de uma fé que salva a razão, libertando-a da idolatria de si mesma, do racionalismo”30. Era uma perspectiva sensivelmente diferente da da Escolástica. Todavia, a resposta a Hegel exigia o encontro de Agostinho e de Tomás, da metafísica platônica da participação e do realismo gnosiológico, única possibilidade de restituir ao pensamento cristão a consciência de sua tarefa31. “Se a filosofia cristã tem uma história, esta não é a da síntese das posições opostas, nem muito menos a da deselenização, mas a de sua purificação do racionalismo, ou, se quisermos usar este termo em referência ao adversário que o cristianismo teve à sua frente desde o início, da gnose”32.


Notas
1 Del Noce, A. Pensieri di un uomo libero, notas de seu diário, suplemento de Il Sabato, nº 13, 30 de março de 1991, p. 15.
2 Del Noce, A. “Violenza e secolarizzazione della gnosi”. In: Vv. Aa. Violenza. Una ricerca per comprendere. Bréscia: Morcelliana, 1979, p. 205.
3 Del Noce, A.; Bobbio, N. “Dialogo sul male assoluto”. In: Micromega, nº 1, 1990, p. 232. A carta de Del Noce é de 4 de janeiro de 1989.
4 Sobre o desenvolvimento de seu pensamento ético-político no período 1930-1946, cf.: Borghesi, M. Modernità e democrazia in Augusto Del Noce. Encarte de 30Giorni, nº 10, outubro de 2004, pp. I-XXIV. Hoje em: Scalon, R. (org.) Le radici storico-filosofiche della democrazia. Turim: Trauben, 2006, pp. 183-229.
5 Del Noce, A. “La prima sinistra cattolica italiana postfascista”. In: Rossini, G. (org.) Modernismo, fascismo, comunismo. Aspetti e figure della cultura e della politica dei cattolici nel ’900. Bolonha: Il Mulino, 1972, p. 463.
6 Del Noce, A. “Storia di un pensatore solitario”, entrevista concedida a M. Borghesi e L. Brunelli. In: 30Giorni, nº 4, abril de 1984. Hoje em: Borghesi, M. Maestri e testimoni. Profili filosofico-teologici del ’900. Pádua: Edizioni Messaggero, 2009, p. 115.
7 Sobre o pensamento de Martinetti, cf.: Colombo, G. La filosofia come soteriologia. L’avventura spirituale e intellettuale di Piero Martinetti. Milão: Vita e Pensiero, 2005.
8 Del Noce, A. “Martinetti nella cultura europea, italiana e piemontese”. In: Vv. Aa. Giornata martinettiana. Turim: Edizioni di “Filosofia”, 1964. Hoje em: Mercadante, F.; Casadei, B. (orgs.) Filosofi dell’esistenza e della libertà. Milão: Giuffrè, 1992, p. 436.
9 Del Noce, A. “La volontà morale nella situazione politica presente”, texto datilografado, provavelmente de 1944, hoje em: Del Noce, A. Scritti politici 1930-1950. Org. por T. Dell’Era. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2001, pp. 214 e 215. Grifo nosso.
10 Del Noce, A. “Violenza e secolarizzazione della gnosi”, p. 206.
11 Del Noce, A. “La volontà morale nella situazione politica presente”, p. 215.
12 Maritain, J. Umanesimo integrale. Turim: Borla, 1962, p. 134.
13 Del Noce, A. “Principi di una politica cristiana”, texto datilografado de 1944-1945, hoje em: Del Noce, Scritti politici 1930-1950, p. 232.
14 Sobre a crítica antignóstica em Balbo e Rodano, cf.: Borghesi, M. “Contemplazione e/o azione?” In: Atlantide, nº 1, 2009, pp. 56-62. Para um estabelecimento crítico da relação entre antropologia grega e antropologia cristã em Franco Rodano, cf.: Napoleoni, C. Cercate ancora. Lettera sulla laicità e altri saggi. Roma: Editori Riuniti, 1990. Sobre a relação entre Del Noce, Rodano e Balbo, cf.: Musté, M. Franco Rodano. Bolonha: Il Mulino, 1993, pp. 131-143; Possenti, V. Cattolicesimo & Modernità. Balbo, Del Noce, Rodano. Milão: Edizioni Ares, 1995; Ricci, N. Cattolici e marxismo. Filosofia e politica in Augusto Del Noce, Felice Balbo e Franco Rodano. Milão: Franco Angeli, 2008.
15 Del Noce, A. “Pensiero cristiano e comunismo: ‘inveramento’ o ‘risposta a sfida’?” In: Il Mulino, nº 5, 1958. Depois em: Balbo, F. Opere 1945-1964. Turim: Boringhieri, 1966, p. 982. Grifos nossos.
16 Id., ibid.
17 Id., ibid.
18 Id., ibid.
19 Del Noce, A. “Eric Voegelin e la critica dell’idea di modernità”, introdução a Voegelin, E. La nuova scienza politica. Turim: Borla, 1968, p. 24.
20 Id., ibid., p. 22.
21 Id., ibid., p. 19.
22 Id., ibid., p. 21.
23 Sobre Weil, cf.: Del Noce, A. “Simone Weil interprete del mondo di oggi”. In: Del Noce, A. L’epoca della secolarizzazione. Milão: Giuffrè, 1970, pp. 137-177.
24 Del Noce, “La volontà morale nella situazione politica presente”, pp. 214-215.
25 Cf. Borghesi, M. “Da Peterson a Ratzinger: Agostino e la critica alla teologia politica”. In: Possenti, V. (org.) Ritorno della religione? Tra ragione, fede e società. Milão: Guerini e Associati, 2009, pp. 165-186.
26 Del Noce, “Pensiero cristiano e comunismo: ‘inveramento’ o ‘risposta a sfida’?”, pp. 980-981.
27 Von Balthasar, H. U. Nello spazio della metafisica. L’epoca moderna. Vol. 5 de Gloria. Una estetica teologica. Milão: Jaca Book, 1978, p. 429.
28 Del Noce, “Simone Weil interprete del mondo di oggi”, p. 162.
29 Sobre o conflito de ideias entre Del Noce e Gilson, cf.: Borghesi, M. Caro collega ed amico. Lettere di Étienne Gilson ad Augusto Del Noce. Sena: Cantagalli, 2008, pp. 5-57.
30 Del Noce, A. “Gilson e Chestov”. In: Vv. Aa. Esistenza, Mito, Ermeneutica, 2 vols. Pádua: Cedam, 1980, p. 316.
31 Cf. Del Noce, A. “Agostino e Tommaso”. In: Il Mulino, n°6, 1959, pp. 509-521.
32 Del Noce, A. “Gilson e Chestov”, pp. 325-326.


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