Home > Arquivo > 11 - 2010 > A dormição da Theotokos
ECUMENISMO
Extraído do número 11 - 2010

A MÃE DE DEUS – A TODA SANTA

A dormição da Theotokos


Aprofundamentos mariológicos sobre vida, morte e ressurreição


de Sua Santidade Bartolomeu I


No aniversário de sessenta anos da proclamação do dogma da Assunção da Bem-Aventurada Virgem Maria à glória do Paraíso em corpo e alma (1º de novembro de 1950), pedimos um comentário a Bartolomeu I, patriarca ecumênico de Constantinopla.
O texto que ele nos enviou é motivo de gratidão pela fé que juntos professamos e ocasião de pedido ao Senhor de que nos doe a plena comunhão


Bartolomeu I, patriarca ecumênico de Constantinopla, durante a liturgia da festa da Dormição da Santa Mãe de Deus, no mosteiro de Sumela, na província turca de Trabzon, em 15 de agosto de 2010 [© Reuters/Contrasto]

Bartolomeu I, patriarca ecumênico de Constantinopla, durante a liturgia da festa da Dormição da Santa Mãe de Deus, no mosteiro de Sumela, na província turca de Trabzon, em 15 de agosto de 2010 [© Reuters/Contrasto]

A Igreja Ortodoxa venera intensamente a Mãe de Deus – ou Theotokos (a Mãe de Deus), ou Panaghia (a Toda Santa), como nós preferimos nos referir a ela – exaltando-a não como uma piedosa exceção, mas realmente como um exemplo concreto do modo cristão de entregar-se e responder à vocação a ser discípulo de Cristo. Maria é extraordinária apenas na sua virtude ordinariamente humana, que nós somos chamados a respeitar e imitar como devotos cristãos. Sua morte é comemorada em 15 de agosto, uma das doze Grandes Festas do calendário ortodoxo.
Ao compreender a “sagrada aliança” ou mistério de Maria, do qual “ninguém se pode aproximar com mãos despreparadas”, a teologia ortodoxa mira à Escritura mas, sobretudo, à Tradição, de modo particular à liturgia e à iconografia. Nesse sentido, os cristãos ortodoxos ligam Maria antes de mais nada ao seu papel na divina encarnação, como Mãe de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, enquanto, ao mesmo tempo, a conectam a uma longa série de seres humanos – e não divinos – que remete à continuidade da história sagrada, conduzindo até o nascimento do Filho de Deus, Jesus de Nazaré, há dois mil anos. Isolar Maria dessa estirpe preparatória ou “econômica” separa-a da nossa realidade e a põe em posição marginal em relação à nossa salvação. Maria também precisa da salvação – como todos os seres humanos; ainda que ela tenha sido considerada “sem pecados pessoais”, continua sujeita à servidão do pecado original. Embora ela seja “mais honorável que os Querubins e incomparavelmente mais gloriosa que os Serafins”, o que vale para nós vale também para Maria. Ainda que tenha sido “bendita entre todas as mulheres”, ela encarna a única coisa necessária entre todos os seres humanos, ou seja, a dedicação à Palavra de Deus e a entrega à Sua vontade.
Assim, quando os cristãos ortodoxos estão dentro da igreja e veem no alto o Pantokrator (“aquele que contém tudo”), ou seja, Cristo, que paira sobre suas cabeças durante o culto, eles se encontram ao mesmo tempo diretamente diante da Platytera (“aquela que é mais espaçosa que tudo”), ou seja, a Mãe de Deus, que está imediatamente diante deles, bem na ampla abside que une o altar ao céu. E isso porque, ao dar à luz o Deus Verbo e “conceber o inconcebível” em seu seio, ela foi capaz de conter o incontível e de tornar descritível aquele que não pode ser circunscrito.
Nós aprendemos com a Sagrada Escritura que quando Nosso Senhor estava pregado na cruz viu sua mãe e seu discípulo João e voltou-se para a Virgem Maria, dizendo: “Mulher, eis o teu filho”, e para João, dizendo: “Eis tua mãe!” (Jo 19, 25-27). A partir daquele momento, o apóstolo e evangelista do Amor acolheu a Theotokos em sua própria casa. Com o acréscimo da referência dos Atos dos Apóstolos (At 2, 14), que confirma que a Virgem Maria estava com os apóstolos do Senhor na festa de Pentecostes, a Tradição da Igreja tem plena certeza de que a Theotokos permaneceu na casa de João em Jerusalém, onde ela continuou seu ministério em palavras e obras.
A tradição iconográfica e litúrgica da Igreja professa também que no momento de sua morte os discípulos se encontravam espalhados pelo mundo a anunciar o Evangelho, mas voltaram a Jerusalém para render homenagem à Theotokos. Com exceção de Tomé, todos os outros – inclusive o apóstolo Paulo – estiveram junto a seu leito. Na hora da sua morte, Jesus Cristo desceu para levar sua alma ao céu. Depois da morte, o corpo da Theotokos foi levado em procissão para ser deposto num túmulo próximo ao Jardim do Getsêmani; quando o apóstolo Tomé chegou, três dias depois, e quis ver seu corpo, o túmulo estava vazio. A assunção corpórea da Theotokos foi confirmada pela mensagem do anjo e pela aparição dela aos apóstolos, coisas que refletem acontecimentos relativos à morte, ao sepultamento e à ressurreição de Cristo.
<I>Dormição da Virgem</I>, mosaico da igreja de Cristo Salvador, em Chora, c. 1320, Museu de Kariye Camii, Istambul, Turquia

Dormição da Virgem, mosaico da igreja de Cristo Salvador, em Chora, c. 1320, Museu de Kariye Camii, Istambul, Turquia

O ícone e a liturgia da festa da morte e sepultamento de Maria descrevem claramente um serviço fúnebre, sublinhando ao mesmo tempo os ensinamentos fundamentais a respeito da ressurreição do corpo de Maria. A esse respeito, a morte de Maria serve como uma festa que afirma a nossa fé e a nossa esperança na vida eterna. Mais ainda: os cristãos ortodoxos se referem a esse evento festivo como a “Dormição” (Koimisis, ou “o adormecer”) da Theotokos, em vez de sua “Assunção” (ou “traslado” físico) ao céu. Isso porque sublinhar que Maria é humana, que morreu e foi sepultada como os outros seres humanos, nos dá a garantia de que – embora “nem túmulo nem morte poderiam conter a Theotokos, nossa inabalável esperança e sempre vigilante proteção” (do kontakion do dia) – Maria está na realidade muito mais próxima de nós do que pensamos; não nos abandonou. Como frisa o apolytikion para a Festa: “No nascimento, preservaste a tua virgindade; na morte, não abandonaste o mundo, ó Theotokos. Como mãe da vida, partiste para a fonte da vida, libertando as nossas almas da morte por meio das tuas intercessões”.
Para os cristãos ortodoxos, Maria não é apenas aquela que foi “escolhida”. Ela simboliza sobretudo a escolha que cada um de nós é chamado a fazer em resposta à divina iniciativa, mediante a encarnação (ou seja, o nascimento de Cristo em nossos corações) e a transformação (ou seja, a conversão dos nossos corações, do mal para o bem). Como São Simeão, o Novo Teólogo, disse no século X, nós somos todos convidados a nos tornar Christotokoi (geradores de Cristo) e Theotokoi (geradores de Deus).
Por sua intercessão, possamos todos nós nos tornar como Maria, a Theotokos.

(Agradecemos a colaboração de padre John Chryssavgis)


Italiano Español English Français Deutsch