SANTOS. Aníbal Maria Di Francia e Luís Orione
“Percebi que seus olhos brilhavam de lágrimas...”
...e eu nunca havia encontrado uma pessoa adulta que se abrisse de um modo tão sincero e simples com um jovem”. A transcrição do testemunho de Ignazio Silone no processo de beatificação de Dom Orione
de Ignazio Silone
Ignazio Silone. O escritor conheceu Dom Orione em 1916, quando, órfão, escapou do terremoto de Marsica e foi acolhido num dos colégios de Dom Orione. Em seu livro Uscita di sicurezza, o escritor dedica um capítulo à viagem ao colégio, na qual foi acompanhado pelo sacerdote, que foi buscá-lo pessoalmente
Como já disse, só posso dizer que conheci Dom Orione em 1916. Naquele ano, fui internado num colégio dirigido por religiosos muito zelosos para terminar o ginásio. Pouco antes do Natal, sem nenhum motivo plausível, fugi do colégio. Saí sem me dar conta do que estava fazendo e sem nenhuma direção, simplesmente porque, a certa altura, vi o portão do pátio escancarado. Tinha umas poucas liras no bolso e, naturalmente, nenhuma bagagem. Alojei-me no sótão de um pequeno hotel, perto da estação. Fiquei lá três dias e passava o tempo a ver os trens chegarem e partirem. Enquanto isso, minha ausência no colégio havia sido avisada na delegacia e, no terceiro dia, fui encontrado por um policial e reconduzido ao colégio, onde fiquei esperando uma resposta de minha avó, que, na qualidade de tutora, deveria decidir o meu futuro. A resposta de minha avó não demorou muito: ela chegou com a notícia de que um certo Dom Orione estava disposto a me receber em seu colégio. O diretor do meu colégio havia marcado um encontro com ele na estação central de Roma, onde, no dia e no local estabelecido, encontrei um padre que não reconhecia, pois não era o que eu tinha visto no ano anterior, entre os destroços da minha cidade. Pensei que Dom Orione não tivesse podido vir. Ele carregou minhas malas e trouxas e tomamos o trem. Como teríamos de viajar a noite inteira, a certa altura ele me perguntou se eu tinha trazido alguma coisa para ler e se desejava um jornal, e qual jornal. L’Avanti, eu respondi (era um jornal dos comunistas; ndt.). Era difícil imaginar um pedido mais impertinente vindo de um colegial. Mas, sem perder a compostura, aquele padre desceu do trem e, pouco depois, reapareceu e me entregou o jornal. “Por que foi que Dom Orione não veio?”, eu perguntei a ele. “Dom Orione sou eu!”, ele me disse; “desculpe-me se não me apresentei”. Eu me senti muito mal com aquela revelação inesperada. Escondi o jornal na hora e balbuciei algumas desculpas pela minha presunção de antes e por ter deixado que ele carregasse todas as minhas malas. Ele sorriu e me falou de sua felicidade por poder carregar as malas de vez em quando. Aliás, ele usou uma imagem que me agradou enormemente e me comoveu: “Carregar as malas como um asno”. E me confessou: “A minha vocação - é um segredo que eu quero revelar - seria poder viver como um autêntico asno de Deus, como um autêntico asno da Divina Providência”.
Dom Orione em Roma, em 1915, com o bispo de Avezzano, dom Bagnoli, e alguns órfãos sobreviventes do desastre de Marsica
Eu sentia um prazer infinito em ouvi-lo falar daquela forma: experimentava uma paz e uma serenidade novas. O que ficou gravado em mim foi a ternura serena do seu olhar. A luz dos seus olhos tinha a bondade de quem sofreu pacientemente toda espécie de tribulações na vida e, por isso, conhece as penas mais secretas. Em alguns momentos, eu tinha mesmo a impressão de que ele me enxergava com mais clareza do que eu, de que ele via até o meu futuro. “Eu queria lhe dizer algo que você não deve esquecer”, ele me disse a certa altura. “Lembre-se disto: Deus não está só na igreja. No futuro, não vão lhe faltar momentos de profundo desespero. Mesmo que você ache que está só e abandonado, não estará. Lembre-se disto!”. Eu percebi que seus olhos brilhavam de lágrimas. E eu nunca havia encontrado uma pessoa adulta que se abrisse de um modo tão sincero e simples com um jovem.
Chegamos a San Remo perto do meio-dia. À noite, quando Dom Orione tinha de voltar, ouvi quando ele encarregou alguém de me procurar, pois queria se despedir de mim. Mas eu me escondi. Não quis que ele me visse chorar. Poucos dias depois, na manhã de Natal, recebi sua primeira carta, uma longa, afetuosa, extraordinária carta de doze páginas. Numa das viagens que fizemos juntos, Dom Orione me contou que havia chegado a Avezzano na noite de 19 de setembro, um ou dois dias depois do terremoto, e que, no dia seguinte, de manhã, saiu para celebrar a missa. Assim que a missa terminou, chegou um mensageiro, que o convidou a ver o bispo imediatamente. O bispo lhe perguntou se fora ele quem havia trazido a bandeira, posta no Patronato. Dom Orione lhe assegurou que não havia sido ele. Mas o bispo logo o intimou a nunca mais voltar à diocese dos Marsos enquanto ele vivesse. Dom Orione contava tudo isso com tranqüilidade, mas com tristeza.
Eu tinha cerca de vinte anos e era jornalista num periódico muito hostilizado, por isso vivia miseravelmente, sem que ninguém soubesse. No dia de Natal, fui a um restaurante, procurando não gastar mais que uma cifra modestíssima, mas, no final, a conta superou o que eu possuía. O dono quis que eu empenhasse o meu velho impermeável até que trouxesse o resto do dinheiro. Chovia. Ao sair, me lembrei de que poucos dias antes havia visto Dom Orione passar de charrete. Decidi procurá-lo em Sant’Ana, esperando que estivesse lá. O porteiro, mesmo confirmando sua presença, não queria me deixar entrar. Insisti e, enquanto discutia com o porteiro, Dom Orione desceu e, logo depois de me cumprimentar, enfiou a mão no bolso e pôs em minhas mãos uma soma pouco superior à que eu devia pagar. Foi singular aquele gesto de Dom Orione, pois, até aquele dia, eu nunca lhe havia pedido dinheiro. Numa viagem de Cúneo a Régio Calábria, em que o acompanhei, Dom Orione queria parar em Roma, pois estava sem dinheiro para continuar a viagem. Mas, na estação de Roma, um senhor se aproximou dele e lhe entregou um envelope. Dom Orione, depois de agradecer, exclamou: “Agora podemos prosseguir”. Era impressionante a sua maneira de crer em Deus, mais presente do que as coisas reais, e a sua caridade, que lhe permitia ter o contato que tinha com seus interlocutores, dos quais, em certos casos, previa o futuro.
Dito isso, e antes mesmo que lhe fizessem prestar juramento, a testemunha declarou: “Eu disse tudo o que sei de Dom Orione e não teria mais nada a acrescentar”.
Ignazio Silone
Roma, 10 de novembro de 1964