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NOVA ET VETERA
Extraído do número 03 - 2011

Arquivo de 30Dias

ECCE CRUCEM DOMINI FUGITE PARTES ADVERSAE...


O ciclo apocalíptico afrescado na cripta da catedral de Anagni representa a um só tempo a vitória já conquistada por Cristo e sua batalha ainda em andamento contra a guerra, o inferno e a morte


por Lorenzo Cappelletti


OS VERSÍCULOS 6, 1 - 7, 3 DO APOCALIPSE

 

Vi quando o Cordeiro abriu o primeiro dos sete selos, e ouvi o primeiro dos quatro Seres vivos dizer como o estrondo dum trovão: “Vem!”. Vi então aparecer um cavalo branco, cujo montador tinha um arco. Deram-lhe uma coroa e ele saiu vitorioso para vencer ainda.
Quando abriu o segundo selo, ouvi o segundo Ser vivo dizer: “Vem!”. Apareceu então um outro cavalo, vermelho, e ao seu montador foi concedido o poder de tirar a paz da terra, para que os homens se matassem entre si. Entregaram-lhe também uma grande espada.
Quando abriu o terceiro selo, ouvi o terceiro Ser vivo dizer: “Vem!”. Eis que apareceu um cavalo negro, cujo montador tinha na mão uma balança. Ouvi então uma voz, vinda do meio dos quatro Seres vivos, que dizia: “Um litro de trigo por um denário e três litros de cevada por um denário! Quanto ao óleo e ao vinho, não causes prejuízo”.
Quando abriu o quarto selo, ouvi a voz do quarto Ser vivo que dizia: “Vem!” Vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu montador chamava-se “a Morte” e o Hades o acompanhava. Foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para que exterminasse pela espada, pela fome, pela peste e pelas feras da terra.
Quando abriu o quinto selo, vi sob o altar as vidas dos que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela ti-nham prestado. E eles clamaram em alta voz:
“Até quando, ó Senhor santo e verdadeiro,
tardarás a fazer justiça,
vingando nosso sangue
contra os habitantes da terra?”.
A cada um deles foi dada, então, uma veste branca e foi-lhes dito, também, que repousassem por mais um pouco de tempo, até que se completasse o número dos seus companheiros e irmãos, que iriam ser mortos como eles.
Vi quando ele abriu o sexto selo: houve um grande terremoto; o sol tornou-se negro como um saco de crina, e a lua inteira como sangue; as estrelas do céu se precipitaram sobre a terra, como a figueira que deixa cair seus frutos ainda verdes aos ser agitada por um forte vento; o céu afastou-se, como um livro que é enrolado; as montanhas todas e as ilhas foram removidas de seu lugar; os reis da terra, os magnatas, os capitães, os ricos e os poderosos, todos, escravos e homens livres, esconderam-se nas cavernas e pelos rochedos das montanhas, dizendo aos montes e às pedras: Desmoronai sobre nós e escondei-nos da face daquele que está sentado no trono, e da ira do Cordeiro, pois chegou o Grande Dia da sua ira, e quem poderá ficar de pé?
Depois disso, vi quatro Anjos, postados nos quatro cantos da terra, segurando os quatro ventos da terra, para que o vento não soprasse sobre a terra, sobre o mar ou sobre alguma árvore. Vi também outro Anjo que subia do Oriente com o selo do Deus vivo. Esse gritou em alta voz aos quatro Anjos que haviam sido encarregados de fazer mal à terra e ao mar: “Não danifiqueis a terra, o mar e as árvores, até que tenhamos marcado a fronte dos servos do nosso Deus”.

 

 

 

 

 

A abóbada de ângulo da abside principal, no centro, o Cordeiro apocalíptico circundado pelos quatro seres vivos e os vinte e quatro anciãos [© Paolo Galosi]

A abóbada de ângulo da abside principal, no centro, o Cordeiro apocalíptico circundado pelos quatro seres vivos e os vinte e quatro anciãos [© Paolo Galosi]

Apocalípticos ou conformistas? Perante essa alternativa, nem um pouco alternativa, entre a utopia e a aquiescência, o Apocalipse sempre pretendeu lançar uma luz mais verdadeira sobre os acontecimentos da história: um ponto de vista incomensurável, no entanto extremamente realista, nem apocalíptico nem conformista. Hoje, ante os tambores de uma guerra maior do que nós, sentimos mais do que nunca a necessidade dessa luz.
A palavra “apocalipse”, como sabem até mesmo aqueles que têm um conhecimento superficial da Sagrada Escritura, significa revelação, demonstração, desvelamento. “Revelação de Jesus Cristo: Deus lha concedeu para que mostrasse aos seus servos as coisas que devem acontecer muito em breve”, diz o primeiro versículo programático, retomado de forma quase idêntica na con-clusão do livro (Ap 1, 1 e 22, 6). Jesus Cristo, “a Testemu­nha fiel, o Primogênito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra” (Ap 1, 5), após sua vitória, mostra ao apóstolo João, “arrebatado em espírito” para fora da história, o que nesta realmente acontece. Como escrevia o grande exegeta Heinrich Schlier no início de um famoso ensaio sobre o Apocalipse (que retomamos há alguns anos: cf. 30Dias nº 6, junho de 1995, pp. 65-68), “o Apocalipse de João é o único livro do Novo Testamento que tem por tema a história. Foi, portanto, meditando essencialmente sobre ele que se desenvolveu a reflexão cristã em torno da história”. Reflexão que se exprimiu ao longo dos séculos não apenas por palavras, mas também por imagens e cores.
Na cripta da catedral da fatídica cidade italiana de Anagni, numa série de afrescos iniciados na mesma época em que começavam a se difundir as elucubrações sobre a história de Joaquim de Fiore († 30 de março de 1202), conserva-se a magnífica ilustração de uma concepção da história que ainda brota da tradicional meditação sobre o Apocalipse, que tem como paradigma o De civitate Dei de Agostinho. Até a ruptura realizada por Joaquim, com sua tripartição da história em eras que se sucediam, do Pai, do Filho e do Espírito, não se podia nem mesmo conceber que o acontecimento histórico de Cristo pudesse ser superado ao longo do tempo da história por uma posterior era do Espírito, portadora de uma graça maior. O acontecimento de Jesus Cristo era concebido como o início do fim do mundo. Para a reflexão de caráter agostiniano e tomístico, “Cristo não é o eixo da história, com o qual tem início um mundo mudado e remido e é abandonada uma história não-remida que durou até aquele momento; para essa reflexão, Cristo é muito mais o princípio do fim. Ele é ‘redenção’, na medida em que com Ele o ‘fim’ começa a resplender na história. A redenção consiste (de um ponto de vista histórico) nessa fase iniciada enquanto a história, por assim dizer, procede ‘per nefas’ ainda por um certo tempo, conduzindo a antiga idade deste mundo a seu fim” (J. Ratzinger. San Bonaventura. La teologia della storia, p. 211).
Justamente por querer ser uma leitura do tempo da Igreja como tempo final sub gratia e não a imagem da superação desse tempo, o ciclo apocalíptico anagniano é constituído apenas de cenas extraídas dos primeiros doze capítulos do Apocalipse. E, dos três setenários (dos selos, das trombetas e das taças), opta por representar apenas o dos selos, detendo-se quando está para ser aberto o sétimo. Ou seja, opta por deter-se na proclamação do juízo; não se interessa em investigar as inúmeras imagens que podem ser exploradas em sua promulgação e execução. (Provavelmente não estavam ainda aperfeiçoados os “instrumentos políticos e espirituais cheios de força e de degeneração” [Schlier] que hoje parecem levar ao pé da letra algumas das visões proféticas dos capítulos 13-18 do Apocalipse).
Assim, numa versão pictórica cheia de graciosidade, representa-se com suprema compostura a inexorabilidade da vitória obtida por Jesus Cristo, ao lado dos elementos de uma luta que, embora continue, já não pode mais meter medo. De fato, em Anagni a guerra e a morte (Ap 6, 4-8) fecham os olhos de medo, os astros que mudam de cor (Ap 6, 12) são apenas duas bolinhas submetidas ao sopro pacato de um anjo, o dragão de dez chifres (Ap 12, 3) é um dragãozinho sob os pés de um terno arcanjo. Toda a honra, a força e a beleza são reservadas Àquele que se assenta ao trono e ao Cordeiro, e àqueles que compartilharam sua vitória e carregam a coroa real dos vencedores, os vinte e quatro anciãos, os virgens e os mártires alinhados numa ordem quase musical.

A abertura dos quatro primeiros selos, representada à direita da abóbada de ângulo da abside principal [© Paolo Galosi]

A abertura dos quatro primeiros selos, representada à direita da abóbada de ângulo da abside principal [© Paolo Galosi]

Cristo é a manifestação de uma força que vence o mundo
No centro de todo o projeto pictórico, no coração da abóbada de ângulo da abside, entre os quatro seres vivos e os vinte e quatro anciãos, está o vencedor, o Cordeiro, no momento em que abre os sete selos que fechavam o livro que ninguém antes de sua vitória era capaz de abrir.O que fizera João chorar, faz-nos chorar também sempre de novo, diante do mistério humanamente inexplicável da história. Mas “o Leão da tribo de Judá, o Rebento de Davi, venceu para poder abrir o livro” (Ap 5, 5), lê-se nas páginas escancaradas do livro. Não devemos chorar!
À direita e à esquerda da abside central, sobre um atípico arco triunfal e as abóbadas e arcos a ele adjacentes, são representadas as cenas que correspondem à abertura de cada um dos selos. Começa-se, à direita, pela representação dos quatro cavaleiros, que aparecem quando são abertos os quatro primeiros selos. Cavaleiros bem pouco apocalípticos, no sentido de que não servem como símbolo de quatro forças destrutivas equivalentes e soberanas. Quase como se o desvelamento final coincidisse com uma destruição final, quase como se seu objetivo fosse o fim. Não. Diferentemente do que continua a repetir uma crítica temerosa até de observar a realidade, de tanto que tem medo de perder-se ao perder seus preconceitos, trata-se, segundo a interpretação tradicional baseada na coordenação entre os versículos Ap 6, 1-2 e Ap 19, 11-16, da luta instaurada pelo primeiro cavaleiro contra os outros três. O primeiro dos quatro cavaleiros (que monta um cavalo branco, é coroado e recebe um arco, segundo Ap 6, 2) é também revestido de um manto, vermelho da cor de seu sangue, e da diadema da glória divina, segundo Ap 19, 13: é o Verbo de Deus, o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, que, segundo o que reza a Vulgata (Ap 6, 2), exivit vincens ut vinceret, saiu vitorioso para vencer o que resta a ser vencido. Cristo venceu, é Cristo que vence ainda. “De onde saiu, senão do selo aberto?”, escrevia Ambrósio Autperto, abade do grande mosteiro carolíngio de São Vicente al Volturno, cuja cripta encerra outro estupendo ciclo afrescado na Alta Idade Média, inspirado em seu comentário sobre o Apocalipse. O cavalo branco parece quase sair da abside principal, onde o Cordeiro abre os selos, e está para disparar uma flecha na direção do segundo cavaleiro, que, fugindo, volta-se apavorado.
Para o primeiro cavaleiro, trata-se de dar prosseguimento a uma inexorável vitória. O cavalo segue a passo firme, o cavaleiro enverga o arco sem agitação, com firmeza, mas nenhuma agressividade no olhar. Ao segundo cavaleiro resta apenas galopar em fuga. Não é a guerra que aterroriza, ela é que parece aterrorizada e tem de fugir, girando com as duas mãos a grande espada para se defender. Mas a espada, por mais que seja mastodôntica, não defende, pois lhe fora concedida para o ataque, para “tirar a paz da terra, para que os homens se matassem entre si” (Ap 6, 4). Como defender-se agora contra uma flecha?
No canto baixo do mesmo quadro, a morte tem também o olhar aterrorizado da guerra. Cavalga em fuga, galopando num cavalo de cor esverdeada, perseguida pelo demônio nu e alado, que monta o inferno tenebroso, segurando uma grande balança que pesa sem piedade. Tal como a guerra é perseguida e procura fugir do Rei vitorioso, da mesma forma a morte é perseguida e tenta escapar do inferno, da segunda morte. Quem projetou o ciclo explica diligentemente, com um verso transcrito sob o quadro, que são duas duplas de cavaleiros: Has per picturas bis binas disce figuras (entendas de duas em duas as figuras representadas nestas pinturas). Mas o paralelo é parcial: o inferno e a morte também são, por sua vez, perseguidos pelo primeiro cavaleiro. Seu destino é acabar no lago de fogo (Ap 20, 14).
Portanto, em vez de um panorama de destruição e medo que a tudo transtorna (que comumente é designado como a concepção apocalíptica em plena Idade Média, mas, na verdade, coincide no máximo com o prevalecimento da leitura milenarista e gnosticizante retomada de Joaquim), estamos aqui diante da representação de uma força que venceu o mundo, e que, vencendo uma vez mais, protege em primeiro lugar a paz.
Esse tema continua e se torna mais preciso na abóbada que está encima da representação dos quatro cavaleiros. Aqui, quatro anjos, postos dos quatro lados de um quadro pontilhado de flores, derrubam quatro figuras munidas de chifres e asas. Não se trata da luta alegórica entre o bem e o mal, como tantas vezes a crítica repetiu, acreditando serem realidades os fantasmas da sua pré-compreensão maniqueísta. É, sim, a barreira contra os ventos da destruição, que ameaçam as condições que permitem a vida nesta terra, como diz Ap 7, 1. Tal como a paz, da mesma forma a realidade natural é preservada pelo Rei vitorioso e misericordioso: Tu, victor Rex, miserere. Há uma enorme distância entre a letra do Apocalipse e as elucubrações alucinadas que pretendem atribuir-lhe pessoas que têm fantasmas na cabeça e ódio no coração: “Vi quatro Anjos, postados nos quatro cantos da terra, segurando os quatro ventos da terra, para que o vento não soprasse sobre a terra, sobre o mar ou sobre alguma árvore. Vi também outro Anjo que subia do Oriente com o selo do Deus vivo. Esse gritou em alta voz aos quatro Anjos que haviam sido encarregados de fazer mal à terra e ao mar: ‘Não danifiqueis a terra, o mar e as árvores, até que tenhamos marcado a fronte dos servos do nosso Deus’” (Ap 7, 1-2). De fato, outro anjo, como se subisse das costas do arco inferior, indica o desenho de uma carta, na qual estão escritas essas palavras, e segura uma cruz-estandarte, da qual pendem o alfa e o ômega.
Esse último pormenor é apenas o atributo iconográfico identificador do anjo? Mero detalhe? Não, essa cruz estreita (que “é o sinal da Trindade que todos recebemos no batismo”, escrevia São Bruno, bispo de Segni, comentando esse versículo do Apocalipse), é a razão última de tudo o que é representado. O objetivo da batalha que o Rei vitorioso promove contra guerra, como também da ordem peremptória de suspender qualquer destruição, dada pelo anjo detentor do selo (que é apenas outra forma de dizer novamente “Cristo ressuscitado”, como afirmam Beda, Ambrósio Autperto e tantos outros), é permitir, graças ao batismo, que uma sublime descendência, numerosa como as estrelas, segundo a promessa, goze de uma felicidade celeste, incomensurável: promissa posteritas caelesti felicitate sublimis, escreve Agostinho (De civitate Dei 16, 23).
Mais de uma vez (ao menos três) reaparece na cripta anagniana o selo batismal em forma de monograma do nome de Cristo, mas nenhum crítico nunca o considerou digno de nota. Quase como se a promessa feita a Abraão de que seria pai de muitos povos, de uma descendência tão grande quanto as estrelas do céu, se realizasse em algo diferente do batismo (por outro lado, a própria promessa a Abraão jamais foi reconhecida pela crítica na abóbada VIII de Anagni, o que rompe todo o “mecanismo” do cristianismo, diria Péguy). O batismo, sussurrado por Jesus a Nicodemos naquela noite em Jerusalém, que Pedro repetiria em voz alta depois da morte e ressurreição do Senhor: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados. Então recebereis o dom do Espírito Santo. Pois para vós é a promessa, assim como para vossos filhos e para todos aqueles que estão longe, isto é, para quantos o Senhor, nosso Deus, chamar” (At 2, 38s).

 

A representação da abertura do quinto selo: Jesus Cristo doa as vestes gloriosas às almas dos mártires [© Paolo Galosi]

A representação da abertura do quinto selo: Jesus Cristo doa as vestes gloriosas às almas dos mártires [© Paolo Galosi]

Dentro de breve tempo
Simetricamente, em relação a esse conjunto de cenas, na outra parte do arco triunfal que emoldura a abside principal, é representada a abertura do quinto e do sexto selos.
O tempo ainda é concedido, não apenas para que sejam marcados com o selo batismal todos aqueles que o Senhor chamar, mas também para que se complete o número daqueles que devem ser mortos propter Verbum Dei et propter testimonium quod habebant. Às almas daqueles que foram imolados, que receberam o batismo de sangue do martírio e gritam que a justiça finalmente seja feita, é dito “que repousassem por mais um pouco de tempo [tempus modicum], até que se completasse o número dos seus companheiros e irmãos, que iriam ser mortos como eles” (Ap 6, 11). Para que possam ter paciência, Aquele que está assentado no trono os veste com vestes de glória alvejadas no sangue do Cordeiro. Tendo-as recebido, poderão esperar em paz que outros venham completar o número dos mártires, apressando assim o res­gate definitivo.
De qualquer forma, o tempo de espera é breve, o tempo da história é um tempus modicum: “O Senhor não retarda o cumprimento de sua promessa. [...]. Esse breve intervalo de tempo nos parece longo, pois dura até agora; quando tiver acabado, nos daremos conta do quanto foi breve” (Santo Agostinho. Comentário ao evange-lho de João 101, 6). O tempo fez-se breve depois da vitória de Cristo. Assim, na abertura do sexto selo, o sol e a lua na frente do arco da esquerda mudam de cor e um anjo se prepara para soprar um vento que precipita as estrelas do céu, tal como a tempestade faz com os frutos da figueira; e outro anjo traz o turíbulo de ouro, por meio do qual, da mesma forma como sobe o perfume das orações dos santos, descerá dali a pouco sobre a terra o fogo da ira dAquele que se assenta no trono e do Cordeiro.
Se a brevidade do tempo exercita a paciência daqueles que esperam justiça, suscita no dragão uma “raivosa vontade de potência que nasce da ânsia do tempo que lhe escapa”, escrevia Schlier no ensaio citado. Ao lado do dragão da pequena abside da direita, houve tempo em que havia em Anagni também uma representação hoje perdida da Ascensão do Senhor, como a que existe no estupendo afresco da contra-fachada da igreja de Civate, no monte Pedale, pouco distante de Leco. Essa cena descreve o que o Apocalipse chama “o arrebatamento do filho para junto de Deus e de seu trono” (cf. Ap 12, 5). De fato, é “com a Ascensão de Jesus Cristo ao céu”, continua Schlier, “que o dragão, figura ideal do que é satânico, da força absoluta do egoísmo, é lançado por terra”.
Já precipitado à terra por força da Ascensão do Senhor, o dragão “pôs-se a perseguir a Mu­lher” (Ap 12, 13), que, porém, lhe escapa com asas de águia (nós a encontramos com o filho, perto de João, na pequena abside da esquerda). Então o dragão vai “guerrear contra o resto dos seus descendentes, os que observam os mandamentos de Deus e mantêm o Testemunho de Jesus” (Ap 12, 17). De fato, o dragão, em Anagni, encontra-se ao lado de 18 santos mártires, ou seja, daqueles que detêm o testemunho de Jesus, sendo, como repetem todos os Padres e escritores medievais, 18 o valor numérico das iniciais IE do nome Iesus (do qual o número da besta é uma falsificação grosseira: 666). Em Civate, são também 18 os santos mártires afrescados dentro da pequena cúpula do cibório: “É por isso que estão diante do trono de Deus, servindo-o dia e noite em seu templo. Aquele que está sentado no trono estenderá sua tenda sobre eles” (Ap 7, 15).
Mas não são apenas os mártires que morrem, ou seja, que revelam de modo real, como escreve Schlier, “o anacronismo de um mundo que ainda hoje pretende afirmar a si mesmo”, e que, com sua morte, tornam “acessível, também a seus inimigos, o futuro aberto por Cristo”. Os virgens também morrem, obedecendo. A eles é dedicada toda a parte da pequena abside da esquerda em torno de Maria, Virgem dos virgens. Te nimis implorant virgo iubilant et adorant. Dum tibi subduntur natum moriendo secuntur. Esses ver-sos, que relembram o hino ambrosiano “Iesu corona virginum”, correm na pequena abside da esquerda pela faixa que divide Nossa Se-nhora com o Menino (rodeada por duas santas virgens e pelos dois João, no alto) da história da virgindade e martírio de Secundina, embaixo: “Quanto te imploram, quanto te louvam e te veneram, ó Virgem. Enquanto se submetem a ti, morrendo acompanham teu Filho”. É o que, no fundo, deseja e vive qualquer pobre pecador, nem virgem nem mártir, que, participando do vitorioso amor de Cristo, olhou durante séculos, arrependido e devotado, para os rostos da cripta de Anagni. “Quando penso que um homem, um jovem, um indivíduo, só pode se casar com uma mulher por amor a Cristo – parece-me já ter dito esta frase: só por amor a Cristo –, quando uma pessoa diz isso, sente toda a imensidão – imensidão quer dizer que algo não é comensurável –, a incomensurabilidade de um ponto de vista, que é ‘o’ ponto de vista, mas também o ponto de renascimento, de nascimento do renascimento” (L. Giussani).



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