Uma amizade florescida sob o sinal de Santo Agostinho
Os congressos de atualidade sobre o santo de Hipona na Universidade de Pádua, foram ocasião de uma amizade profunda e duradoura, entre um sacerdote, o falecido padre Giacomo Tantardini, e um magistrado, Pietro Calogero, que entrega a 30Dias a sua comovida recordação
por Pietro Calogero

Padre Giacomo Tantardini com Pietro Calogero
Padre Giacomo recebeu-me com uma tímida carícia dos olhos e um leve e infantil rubor quando, em 1º de abril de 2003, fui-lhe apresentado no salão nobre da Universidade de Pádua, pouco antes de iniciar a terceira aula do ciclo de Congressos dedicados à atualidade de Santo Agostinho.
A sala estava cheia de jovens que esperavam a sua palavra. Jovem também era o rosto de padre Giacomo, no qual formavam um mágico entrelaçar as cores aquareladas da pele, a púrpura e o âmbar. Até a sua voz harmonizava com as cores, maleável, refinado destilado de uma inesgotável fonte de ideias.
A leitura e o comentário dos textos agostinianos sobre a graça e sobre a beleza da fé cristã ressoaram na sala por cerca de uma hora. No meu pensamento a figura de padre Giacomo cresceu sem medidas e quando, no final da conferência, ele pediu-me para elaborar uma contribuição para a palestra sucessiva não tive coragem, mesmo consciente dos meus limites, de negar-lhe.
Foi assim que em 20 de maio de 2003, introduzindo na mesma sala a quarta aula que seria dada pelo padre Giacomo, tratei o tema da justiça terrena em Santo Agostinho e ilustrei a sua atualidade especialmente nas relações com a política.
Antes de enfrentar os assuntos preparados para a conferência, que se referiam a um objeto completamente diferente, padre Giacomo quis intervir sobre a concepção agostiniana da justiça.
Confesso que o ouvi com uma admirada surpresa pela sua capacidade de chegar em pouco tempo a uma síntese alta e completa da temática recém apresentada.
Pensei que isso era sinal de um genuíno talento especulativo e de profundo conhecimento do pensamento do bispo de Hipona, amadurecido no ápice de um processo de identificação com este último, do qual é necessário que recorde aqui nos pontos essenciais.
“Daquilo que nos disse o procurador”, observou padre Giacomo, “impressionaram-me principalmente três coisas, que me parecem profundamente agostinianas e profundamente atuais. A primeira é a alusão ao fato de que a justiça no sentido humano, cuja tarefa é a de dar a cada um o que lhe pertence, é um bonum da cidade terrena, é uma coisa boa daquela cidade que Agostinho descreve com o realismo evidenciado pelo episódio do encontro com o imperador Alexandre Magno com o pirata” (comentando isso ele pergunta-se “Remota itaque iustitia quid sunt regna nisi magna latrocinia?”, se a justiça for colocada de lado, a que se reduziriam os reinos senão a grandes bandos de ladrões?).
“A segunda coisa que me impressionou particularmente”, continuou padre Giacomo, “é que esta justiça tem como raiz a natureza humana, a pessoa humana. Agostinho sabe muito bem que o pecado original fere a natureza humana como tal. Mesmo assim ele defende a natureza humana afirmando que nenhum pecado é grande a ponto de destruir extrema vestigia naturae, aquele último limiar da natureza humana criada boa e na qual habitat veritas, não no sentido de que cria a verdade mas no sentido de que na natureza humana há a possibilidade de reconhecer a verdade, há a possibilidade de reconhecer a beleza, há a possibilidade de reconhecer o bem. Uma natureza humana ferida porém, pelo pecado original, mas na qual a imagem do Criador não é por nada destruída. Uma natureza humana na qual permanece a abertura à beleza, à verdade, à bondade, à justiça. Uma natureza humana ferida, e mesmo assim capax Dei”.

O batismo de Santo Agostinho em um afresco do século XIV conservado na igreja dos Eremitani em Pádua
É muito interessante e atual que na concepção do homem, na concepção dos bona naturae, dos bens da natureza, Agostinho não valoriza a tradição neoplatônica, mas valoriza a tradição de Varrone e de Cícero. Também culturalmente, parece-me realmente uma das coisas mais interessantes e atuais. Agostinho, que normalmente é visto como um cristão platônico, na concepção da natureza humana e dos bens essenciais da natureza humana valoriza a tradição romana relativista (digo relativista no sentido em que primeiro o procurador Calogero falou de historicidade e de relatividade) e não a tradição do neoplatonismo”.
Para concluir: um grande mestre, padre Giacomo, que soube despertar em mim com a força encantadora da sua cultura e com a envolvente arte da comunicação a antiga paixão pelas ideias, as experiências de vida, o altíssimo sentido do humano e do justo de Agostinho, figura miliária do cristianismo militante dos primeiros séculos.
E ao mesmo tempo um amigo: um amigo muito sensível, perenemente jovem, humilde, reservado, transparente como jamais foi a mais transparente das porcelanas fabricadas pelas mãos do homem.
Mestre e amigo que frequentei com ternura até poucas semanas antes do grande vazio deixado pela sua morte inesperada e que agora, com o olhar ao céu, compadeço.
Veneza, 31 de maio de 2012
Pietro Calogero, quando era jovem substituto procurador de Treviso, fez uma investigação sobre o atentado da Piazza Fontana em Milão, descobrindo a chamada “pista nera” [organizações de extrema direita] e trazendo à luz os despistamentos e as coberturas feitas pelos órgãos dos serviços secretos italianos, delineando o projeto eversivo conhecido como “estratégia da tensão”. Em Pádua, na década de Setenta, conduziu um inquérito que levou à prisão dos chefes da Autonomia Operária (Negri, Scalzone, Piperno), revelando as ligações entre esta organização e as Brigadas Vermelhas. Atualmente é procurador geral junto ao Tribunal de Apelação de Veneza.