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SÃO BENTO
Extraído do número 05 - 2005

Sinais de amizade espiritual


Comunhão de espírito entre São Bento, padre Luigi Giussani e o papa Bento XVI


de padre Giacomo Tantardini


Mestre umbro do século XV, O último colóquio entre São Bento e Santa Escolástica, Igreja Superior do Sacro Speco, Subiaco

Mestre umbro do século XV, O último colóquio entre São Bento e Santa Escolástica, Igreja Superior do Sacro Speco, Subiaco

Pediram-me para escrever um artigo sobre São Bento, padre Giussani e o cardeal Ratzinger, que, eleito sucessor de Pedro, escolheu chamar-se Bento também por devoção àquele que – tendo escrito para si mesmo e para seus amigos, considerando a si e a eles “negligentes / nobis negligentibus”, uma “mínima Regra de iniciação / minimam inchoationis regulam” (Regra, capítulo 73) – tornou-se, como Abraão, pai de uma descendência inumerável.
Correspondência entre
cristianismo e humano.
O cêntuplo
Gostaria de iniciar estas notas de “comunhão de espírito” (Fl 2,1) entre São Bento, padre Giussani e o papa Bento XVI partindo da conferência do cardeal Ratzinger em Subiaco, a 1º de abril de 2005, sobre “A Europa na crise das culturas”, mesmo porque era justamente em Subiaco, num pequeno eremitério nas montanhas perto do Sacro Speco, que padre Giussani, nos meses de verão, no final da década de 1960, fazia alguns dias de exercícios espirituais com jovens que expressavam o desejo de dedicar-se a Deus no sacerdócio ou na vida consagrada.
Não pretendo, evidentemente, comentar essa última conferência de Ratzinger como cardeal, cuja clareza e simplicidade de exposição tornam fácil para todos perceber sua verdade e beleza. Pretendo apenas fazer menção à posição humana que aquelas palavras testemunham. Um espírito, um coração que o apóstolo Paulo descreve assim numa das frases mais citadas por padre Giussani: “Examinai todas as coisas e ficai com o que é bom” (1Ts 5,21).
De fato, por um lado, de maneira muito franca, “o desenvolvimento da cultura iluminista” é considerado “a contradição absolutamente mais radical não apenas do cristianismo, mas também das tradições religiosas e morais da humanidade”, levando à afirmação de que “uma confusa ideologia da liberdade conduz a um dogmatismo que vem se revelando cada vez mais hostil à liberdade” e de que “uma filosofia que não exprime a razão completa do homem, mas apenas parte dela, por essa mutilação da razão não pode ser considerada de modo algum racional”. Por outro lado, quando se pergunta “se essa é uma recusa pura e simples do iluminismo e da modernidade”, Ratzinger responde: “Não, absolutamente”. Não apenas porque “o cristianismo, desde o princípio, compreendeu a si mesmo como a religião que está de acordo com a razão”, identificando “no iluminismo filosófico” daqueles tempos “seus precursores”, mas também porque “foi e é mérito do iluminismo ter reproposto esses valores originais do cristianismo e ter dado novamente à razão uma voz própria. O Concílio Vaticano II, na Constituição sobre a Igreja no mundo contemporâneo, evidenciou mais uma vez essa profunda correspondência entre cristianismo e iluminismo, procurando chegar a uma verdadeira conciliação entre Igreja e modernidade, que é o grande patrimônio a ser preservado por ambas as partes”.
Impressiona a expressão “profunda correspondência entre cristianismo e iluminismo”. Parece-me que pode ser mesmo esse reconhecimento surpreendente que nos permita vislumbrar a “comunhão de espírito” entre Ratzinger e Giussani, ao conceberem e viverem a experiência cristã. Realmente, o que é a experiência cristã, senão perceber a correspondência entre o acontecimento de Jesus Cristo e as exigências e evidências do coração do homem? O acontecimento cristão, ao mesmo tempo em que, com seu aparecimento gratuito, evidencia presunções, parcialidades e contradições das tentativas humanas, realiza em superabundância toda a espera humana. Há uma palavra evangélica, talvez a mais repetida por Giussani, que indica essa dinâmica: “O cêntuplo”. Foi comovente ouvir o papa Bento, na conclusão da homilia na missa pelo início de seu ministério, repetir, dirigindo-se aos jovens, essa mesma palavra, “o cêntuplo”, para descrever o proprium da experiência cristã e de sua experiência pessoal. “E mais uma vez o Papa [João Paulo II] queria dizer: não! Quem faz entrar Cristo, nada perde, nada, absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentamos o que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria, com grande força e convicção, partindo da experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira. Amém”.

O início permanente
e o confronto com o espírito
da utopia
Essas palavras tão evangélicas (“Quem me segue tem a vida eterna e o cêntuplo neste mundo”, cf. Mc 10,29-30) chamam a atenção para o que o próprio cardeal Ratzinger, em 1993, apresentando o livro Un avvenimento di vita cioè una storia, editado por Il Sabato, que reúne entrevistas e palestras de padre Giussani, definia como “o confronto com o espírito da utopia”. E não se tratava tanto do confronto, ainda que “decisivo”, com as utopias mundanas, quanto da “nossa tentação” (são palavras de Giussani de outubro de 1976), ou seja, a tentação que nós, cristãos, temos de, “logo depois da correta intuição” do fato cristão, “deslizar em maior ou menor medida para uma atitude que privilegia um projeto”.
O cêntuplo não é o resultado de um projeto, de um programa. “O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não é perseguir idéias mi­nhas, mas pôr-me à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história”, dizia ainda Bento XVI na homilia da missa pelo início de seu ministério. O cêntuplo neste mundo, como a vida eterna, tem um início, uma fonte “permanente” (todas as palavras da primeira aparição de Bento XVI na praça de São Pedro, cheia de romanos que corriam para ver o novo Papa, continuam na memória: “Confiantes em sua ajuda permanente”). O início “permanente” é Jesus Cristo, o Senhor ressuscitado.
“A Igreja é viva porque Cristo é vivo, porque verdadeiramente Ele ressuscitou” (domingo, 24 de abril). E em 1º de maio, quando, dirigindo-se às Igrejas do Oriente que celebravam a Páscoa, repetiu com força “Christós anesti! Sim, Cristo ressuscitou, ressuscitou verdadeiramente”, foram belos os aplausos que imediatamente se elevaram da praça cheia de fiéis para aquela janela.
Aqui, a comunhão de mente e de coração entre São Bento, Bento XVI, padre Giussani e o menor dos fiéis é luminosa e total.
“Padre Giussani sempre manteve fixo o olhar de sua vida e de seu coração para Cristo” (foi o que disse o cardeal Ratzinger no Domo de Milão, durante os funerais de Giussani). “Precisamos de homens que mantenham o olhar voltado para Deus, aprendendo daí a verdadeira humanidade” (em Subiaco). E, ainda em Subiaco, o cardeal Ratzinger concluiu a conferência citando a frase mais bela que São Bento repete duas vezes na Regra: “Nada, absolutamente nada anteponham a Cristo, o qual nos poderá conduzir todos à vida eterna”. Aqui, no capítulo 72: “Christo omnino nihil praeponant”. E no capítulo 4: “Nihil amori Christi praeponere / nada antepor ao amor de Cristo”.
Quando, desse permanente “prae-ponere / pôr antes”, se desliza para a postura em que se privilegia um projeto, um programa, então “se produz um traba­lho penoso e deprimente, pesado e amargo” (como dizia ainda Giussani em outubro de 1976). São Bento, no capítulo 72 da Regra, citado pelo cardeal Ratzinger em Subiaco, fala também de “zelo mau, de amargura, que separa de Deus e conduz ao inferno”. E, no capítulo 4, escreve: “Zelum non habere”, que evangelicamente poderíamos traduzir por “não vos preocupeis” (cf. Mt 6,25-34).
Esse amor de Cristo que sempre vem antes (trata-se do Seu amor: “...julgando que mesmo as coisas boas que têm em si não as puderam por si, mas foram feitas pelo Senhor, glorificam Aquele que neles opera”, Prólogo da Regra), esse olhar fixo nEle gera “um zelo bom, que separa dos vícios e conduz a Deus e à vida eterna” (mais uma vez do capítulo 72, citado pelo cardeal Ratzinger em Subiaco). “E ser presença não significa não se expressar: a presença é também uma expressividade. A utopia tem como modalidade de expressão o discurso, o projeto e a busca ansiosa de instrumentos e de formas de organização. A presença tem como modalidade de expressão gestos de humanidade real, ou seja, de caridade” (Giussani, em outubro de 1976).
Como é surpreendente, também do ponto de vista humano, e como é católico, também do ponto de vista teológico, que todo gesto bom, toda obra boa surja e floresça sempre de uma coisa que parece ser nada, como o fascínio (L’attrattiva Gesù, o fascínio que é Jesus, título de um livro de Giussani, Rizzoli), de uma coisa que parece ser nada, como o olhar (Guardare Cristo, olhar para Cristo, título de um livro de Ratzinger, Jaca Book). Assim, a pessoa é tomada pela mão e “conduzida pelo Evangelho/ per ducatum Evangelii” (Prólogo da Regra). Assim, “vendo Cristo realmente”, a pessoa compreende que “encontrar Cristo significa seguir Cristo” (o cardeal Ratzinger, nos funerais de Giussani). Assim se compreende por que São Bento inscreve o “nada antepor ao amor de Cristo” entre “os instrumentos das boas obras” (título do capítulo 4: Quae sunt instrumenta bonorum operum).
Até mesmo a boa obra por excelência, ou seja, a liturgia, salvaguardando a validade dos sacramentos, seria reduzida – palavras do cardeal Ratzinger -, a “celebração de si mesmos”, a “teatro”, se não fosse um “pensar nEle”, um estar “voltados para o Senhor”. A liturgia se tornaria um formalismo pesado, pesado porque construído por nós. Perderia aquela transparência de beleza que (lembrava Ratzinger numa de suas conferências mais belas, no Congresso Eucarístico de Bolonha de 1997, fazendo menção a uma lenda antiga sobre as origens do cristianismo na Rússia) encheu de admiração os embaixadores do príncipe Vladimir de Kiev quando, na Basílica de Santa Sofia, em Constantinopla, assistiram à santa liturgia. “O que os impressionou foi o mistério enquanto tal, que, indo justamente além da discussão, fez brilhar à razão a força da verdade”.
Abadia do Sacro Speco, Subiaco

Abadia do Sacro Speco, Subiaco


A misericórdia de Cristo
e a não banalização do mal
Entre os instrumentos para as boas obras, São Bento põe o “nunca desesperar da misericórdia de Deus / et de Dei misericordia numquam desperare” (capítulo 4). Um conforto para quem, como o próprio Bento se considerava (“nobis male viventibus”, capítulo 73), é pobre pecador.
Toda a Regra, justamente por ser um simples e humilde deixar-se guiar pelo Evangelho (“per ducatum Evangelii”), é exemplo admirável de como “a misericórdia de Cristo não supõe a banalização do mal” (Ratzinger), de como “da misericórdia não apenas surge, mas se atesta e se preserva o fio da moralidade” (Giussani).
E, tendo como imagem ideal do cristão a de quem sempre repete “aquilo que disse publicanus ille evangelicus / aquele publicano do Evangelho” (capítulo 7), a Regra é em primeiro lugar a proposta clara, breve, concreta dos mandamentos de Deus, que, com realismo insuperável, Bento lista no início do capítulo 4, ou seja, de preceitos que indicam o que deve ser feito e o que deve ser evitado nas várias circunstâncias da vida. Justamente porque “a primeira coisa / in primis” a fazer é “rezar a todo instante com oração muito insistente (istantissima oratione) Àquele que leva a termo toda boa obra que se inicia” (Prólogo); justamente pelo fato de que “o instrumento mais eficaz que se pode usar”, por exemplo diante de um irmão pecador, é “a oração para que o Senhor, que tudo pode (qui omnia potest), opere a salvação” (capítulo 28), os mandamentos e os preceitos são propostos sem eliminar ou esvaziar nada.
“Não há nada mais realista que afirmar os princípios justos com fidelidade. E o tempo produzirá a mudança. E a mudança realizada será suficiente para testemunhar o milagre de Deus em nós. E quem apenas experimentou um pouco dessa fidelidade em repetir os princípios justos sabe que mortificação ela é” (Giussani).
A alternativa ao moralismo que condena (os outros) está em repetir o que é bom e o que é mal ao lado do pedido Àquele que tudo pode. Esse re-petir, esse re-pedir “sempre, sem cansar” (Lc 18,1) é a coisa mais simples e mais humilde que podemos fazer, e “é peculiar àqueles que estimam nada haver mais caro que o Cristo” (capítulo 5 da Regra).
Por isso, eu gostaria de concluir estas notas agradecendo àquele que, dois meses antes de ser eleito papa, aceitou escrever a introdução a um pequeno livro de orações que contém também quais e quantas coisas são exigidas para fazer uma boa confissão.
“Estou muito contente, portanto, com o fato de 30Dias fazer uma nova edição deste pequeno livro que contém as orações fundamentais dos cristãos, amadurecidas ao longo dos séculos. Elas nos acompanham durante todas as vicissitudes da nossa vida e nos ajudam a celebrar a liturgia da Igreja rezando. Faço votos de que este pequeno livro possa se tornar um companheiro de viagem para muitos cristãos. Roma, 18 de fevereiro de 2005. Cardeal Joseph Ratzinger”.

Obrigado.




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