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ORTODOXOS
Extraído do número 07/08 - 2005

Onde está a Eucaristia, aí está a Igreja Católica


“Os católicos devem levar a sério a noção de plena catolicidade da Igreja local promovida pelo Concílio Vaticano II, e devem aplicá-la a sua eclesiologia.” Ioannis Zizioulas, metropolita de Pérgamo, estabelece os termos do debate entre católicos e ortodoxos a propósito do primado. Entrevista


de Gianni Valente


 Bento XVI com Ioannis Zizioulas, chefe da delegação do patriarcado ecumênico de Constantinopla, que foi a Roma por ocasião da festa dos santos Pedro e Paulo, em 29 de junho de 2005

Bento XVI com Ioannis Zizioulas, chefe da delegação do patriarcado ecumênico de Constantinopla, que foi a Roma por ocasião da festa dos santos Pedro e Paulo, em 29 de junho de 2005

Se existe um filho da Igreja do Oriente que nos últimos anos deu provas de enfrentar com olhar livre de velhos preconceitos a espinhosa questão do primado que ainda divide católicos e ortodoxos, este é Ioannis Zizioulas, metropolita de Pérgamo, membro do sínodo do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla. Foi ele quem guiou a delegação constantinopolitana que chegou a Roma no final de junho para render homenagem ao novo bispo da Cidade Eterna por ocasião da festa dos padroeiros santos Pedro e Paulo. Será ele, reconhecido por todos como um dos mais respeitáveis teólogos ortodoxos vivos, o co-presidente, pelo lado ortodoxo, da Comissão Internacional do Diálogo entre a Igreja Católica e a Ortodoxa, que depois de anos de vida sofrida deve voltar a se reunir no segundo semestre deste ano, para pôr na ordem do dia justamente a discussão sobre o primado. Apresentadas estas premissas, não é preciso muito para imaginar que, na futura discussão, as análises históricas e reflexões amadurecidas durante os últimos anos por esse gentil e austero metropolita - as mesmas que expõe detalhadamente a 30Dias nesta entrevista - constituirão um ponto de referência mais que respeitável.

Eminência, o problema do primado está, sem sombra de dúvida, no coração das relações entre católicos romanos e ortodoxos. A teologia ortodoxa, a respeito desse problema, não é monolítica. O senhor poderia nos descrever alguns critérios fundamentais de distinção entre os teólogos ortodoxos?
IOANNIS ZIZIOULAS: Há alguns teólogos ortodoxos (no passado, eram a maioria) que ligam o primado, qualquer tipo de primado, à organização da Igreja, e dizem que as pretensões do papa relativas a seu primado não têm um conteúdo dogmático e que, portanto, o primado pode ser relativizado. Para eles, o primado está relacionado ao direito canônico, não diz respeito à fé. Não vislumbram nenhum nexo entre o primado e a natureza da Igreja. Para eles, o ofício primacial refere-se ao bene esse, não ao esse da Igreja.
E o outro grupo?
ZIZIOULAS: Alguns teólogos ortodoxos consideram que o primado na Igreja pertence ao esse da Igreja e não é simplesmente um fato de ordem canonística. Eles percebem que não podemos renunciar ao primado sem que, com isso, se enfraqueça algo de essencial da nossa fé. Isso demonstra que o tema do primado é um problema não apenas em relação à pretensão do bispo de Roma, mas também dentro da própria Igreja Ortodoxa.
O senhor poderia nos dar um exemplo das argumentações do primeiro grupo?
ZIZIOULAS: Um dos maiores teólogos ortodoxos, o falecido professor Ioannis Karmiris, escreveu: “Em razão da importância política de Roma e da apostolicidade dessa Igreja, como também do martírio nela sofrido pelos apóstolos Pedro e Paulo, da pre-excelência de suas obras de caridade, de serviço e de missão, o bispo de Roma recebeu dos Concílios, dos Padres e dos pios imperadores - portanto, de instâncias de ordem humana e não divina - um simples primado de honra e de ordem, como o primeiro entre os pares presidentes das Igrejas particulares”. Segundo esse modo de ver, a atual estrutura primacial, inclusive o primado da Sé romana, deve-se simplesmente a fatores humanos e passageiros. Isso significa que a Igreja poderia existir sem primado, ao passo que ela não poderia existir sem bispos ou sínodos, sendo essas realidades de direito divino, constitutivas do esse da Igreja.
Os teólogos ortodoxos, com muita freqüência, usam a fórmula “primado de honra e de ordem”. O que significa?
ZIZIOULAS: Quando se fala de “primado de honra”, quer-se excluir o direito do primaz a exercer jurisdição sobre os outros bispos. Mas é uma fórmula ambígua. De fato, não parece existir, nem mesmo na Igreja Ortodoxa, “um simples primado de honra”.
Por quê?
ZIZIOULAS: Na Igreja Ortodoxa, por exemplo, na ausência do patriarca ou durante a vacância de sua sé, não pode haver nenhuma eleição episcopal nem a realização de qualquer ato canônico. Podemos, portanto, descrever o primado do patriarca como uma simples honra?
Essa fórmula tem outros conteúdos?
ZIZIOULAS: A expressão “simples primado de honra” é usada para sublinhar o fato de que todos os bispos, do papa aos patriarcas, descendo até o último dos bispos, são iguais do ponto de vista do sacerdócio (hieratikós).
Esse, porém, é um princípio tradicional tanto para os ortodoxos quanto para os católicos romanos...
ZIZIOULAS: Mas com uma diferença fundamental: os católicos romanos só se referem a essa igualdade no nível da graça sacramental, que não comporta automaticamente o exercício da jurisdição (a missio canonica), ao passo que os ortodoxos não fazem uma distinção desse tipo.
O senhor considera corretas essas idéias?
ZIZIOULAS: Essas posições parecem negligenciar certos dados presentes na tradição ortodoxa e também de fé: o simples e óbvio fato de que não pode existir sinodalidade sem primado. Na tradição ortodoxa, nunca houve nem pode haver um sínodo ou um concílio sem um protos ou um primus. Portanto, se a sinodalidade é de direito divino, o primado também deve ser.
Algum teólogo ortodoxo procurou resolver essa contradição?
ZIZIOULAS: Alivisatos, por exemplo, afirma que não é necessário que haja um protos fixo; o primado pode ser exercido rotativamente. Considero essa posição muito fraca: o primado na Igreja nunca é exercido rotativamente. Ele está ligado a um ofício ou ministério particular e a uma pessoa particular. Além disso, se estendêssemos, analogamente, a aplicação da rotação também ao interior de cada Igreja autocéfala, isso significaria a abolição dos ofícios de patriarca e metropolita como ministérios pessoais e permanentes.
Outros teólogos ortodoxos recorrem à democracia em suas objeções teológicas ao primado...
ZIZIOULAS: Karmiris, por exemplo, refere-se à democracia como uma característica da Igreja Ortodoxa. Ele, porém, identifica explicitamente a posição ortodoxa com a do conciliarismo ocidental em sua oposição ao primado do papa: não pode haver primado na Igreja porque a autoridade suprema, o verdadeiro primus na Igreja é o Concílio.
O senhor afirmou que houve novas perspectivas para uma saída para esse impasse durante o período anterior e posterior ao Concílio Vaticano II. Por quê?
ZIZIOULAS: O problema que já dominava o debate durante o longo período que precedeu o Concílio, quando as figuras proeminentes de Congar, Rahner, Ratzinger, De Lubac e outros aplainavam o caminho para a teologia do Vaticano II, era se a plenitude da Igreja, a sua catolicidade, coincidia ou não com sua estrutura universal.
Bartolomeu I em oração diante da Confissão de São Pedro nas Grutas Vaticanas, em 29 de junho de 2004

Bartolomeu I em oração diante da Confissão de São Pedro nas Grutas Vaticanas, em 29 de junho de 2004

E, a respeito dessa questão, eles olharam para a ortodoxia...
ZIZIOULAS: Principalmente para a chamada “eclesiologia eucarística” do teólogo russo Nicolai Afanassieff, que formulou o axioma “onde está a Eucaristia, aí está a Igreja”. Isso significa que toda Igreja local na qual é celebrada a Eucaristia deveria ser considerada como a Igreja plena e católica. Os teólogos católicos romanos foram influenciados por essa abordagem e, como conseqüência, nos documentos do Concílio houve espaço para uma teologia da Igreja local.
Que se refletiu também no debate a respeito do primado...
ZIZIOULAS: Do lado ortodoxo, o debate foi conduzido sobretudo por teólogos de origem russa, que inicialmente viviam em Paris e depois se transferiram parcialmente para os Estados Unidos. Quatro deles - Afanassieff, Meyendorff, Schmemann e Koulomzine - produziram um livro a várias mãos intitulado O primado de Pedro na Igreja Ortodoxa (edição em inglês de 1973). Partiam da pergunta: se toda Igreja local é uma Igreja “católica”, que necessidade há de se falar de um primado universal ou mesmo de uma “Igreja universal”?
Todos deram a mesma resposta a essa pergunta?
ZIZIOULAS: Não. Afanassieff, por exemplo, insiste que uma eclesiologia universal é desconhecida para a Igreja antiga, até São Cipriano. Seguindo-o, alguns teólogos ortodoxos afirmam que a Igreja universal é apenas um fenômeno ocasional que se verifica quando bispos e chefes de Igrejas locais se encontram nos concílios. Se não houvesse concílios, não haveria Igreja universal. Haveria apenas comunhão na fé e comunhão sacramental, sem nenhuma conseqüência estrutural.
E os outros?
ZIZIOULAS: Schmemann, por exemplo, vê a questão de um modo diferente. Para ele, a Igreja conheceu um primado universal de direito divino. “O primado”, escrevia, “é a expressão necessária da unidade na fé e na vida de todas as Igrejas locais”.
E Meyendorff?
ZIZIOULAS: Para ele, o primado era uma exigência inevitável da existência da Igreja no mundo. “Não houve época”, escrevia, “em que a Igreja não tenha reconhecido uma certa ordem em primeiro lugar entre os apóstolos e depois entre os bispos, e que nessa ordem um apóstolo, São Pedro, e em seguida um bispo, à cabeça de uma Igreja particular, não ocupasse o lugar de primaz”. Ele ousou afirmar que “a função desse bispo é estar a serviço da unidade em escala mundial, tal como a função de um primaz de uma região é ser fator de unidade em escala regional”.
Qual é seu ponto de vista pessoal?
ZIZIOULAS: Os ortodoxos recusaram o primado universal na Igreja tanto por razões não teológicas quanto por razões teológicas. Depois do grande cisma, os ortodoxos viram o primado papal como um imperialismo eclesiástico. Nos tempos modernos, os teólogos ortodoxos em geral consideram o primado incompatível com as idéias democráticas da sociedade moderna, deixando, assim, que argumentos não teológicos decidam sobre uma questão teológica. Hoje, porém, nós devemos nos perguntar se essa é uma maneira de ver correta do ponto de vista da eclesiologia ortodoxa.
E no futuro?
ZIZIOULAS: Antes de mais nada, é preciso ter em mente a nossa tradição. Como eu já disse, nunca houve sínodos sem primados na Igreja Ortodoxa, e isso mostra claramente que, se a sinodalidade é uma necessidade dogmática, assim deve ser também para o primado. É o que o conhecido Cânon dos Apóstolos número 34 estabelece explicitamente...
Que texto é esse?
ZIZIOULAS: Esse cânon do século IV pode constituir a regra áurea da teologia do primado. Ele estabelece que o protos é uma conditio sine qua non para a instituição sinodal e que o sínodo, por sua vez, é um pré-requisito para o exercício do primado.
O fato de todos os sínodos terem um primaz significa que os sínodos ecumênicos também deveriam ter um primus. Isso implica automaticamente o primado universal. Nessas bases, a teologia ortodoxa poderia estar disposta a aceitar o primado em todos os níveis da estrutura eclesiástica, aí incluído o universal. O problema que resta para ser discutido, no contexto do diálogo teológico entre católicos romanos e ortodoxos, é em que espécie de primado se pensa.
Que tipo de primado deve ser excluído para promover a reconciliação sobre esse problema decisivo?
ZIZIOULAS: Os ortodoxos não podem aceitar uma eclesiologia piramidal na qual o titular do primado universal, em vez estar a serviço, submete as Igrejas locais. O primado universal pode valer apenas em relação àqueles que compõem o sínodo e nunca isoladamente, ou seja, fora de uma realidade de comunhão.
Por que é tão importante que todas as primazias (inclusive a primazia universal) devam ser exercidas pelo primaz como chefe de uma Igreja local?
ZIZIOULAS: O primado não é uma noção legalista que implica investidura de poder de um certo indivíduo, mas uma forma de diakonia. Implica também que esse ministério alcance toda a comunidade graças à comunhão das Igrejas locais manifestada por meio dos bispos que constituem o concílio ou o sínodo. É por essa razão que o primaz deve ser o chefe de uma Igreja local, ou seja, um bispo. Como chefe de uma Igreja local, e não como um indivíduo, este servirá à unidade da Igreja como uma koinonia de Igrejas plenamente constituídas e não como uma colagem de partes incompletas de uma Igreja universal. O primado, desta forma, não minará a integridade de nenhuma Igreja local.
Por que o senhor não leva em consideração o papel dos argumentos exegéticos ligados ao debate sobre o primado?
ZIZIOULAS: A exegese bíblica e a história são um terreno instável de reaproximação. Ainda que a posição-guia de Pedro entre os doze seja cada vez mais aceita também pelos ortodoxos, a importância particular que é dada a ele pelos católicos romanos é seriamente contestada pelos ortodoxos. O falecido cardeal Yves Congar o enxergou muito bem. Escrevia: “No Oriente, a autoridade da Sé romana nunca foi considerada como a de um monarca [...]. O Corpo de Cristo não tem outra Cabeça senão o próprio Cristo [...]. Os teólogos bizantinos remetem muito raramente o primado da Sé romana ao apóstolo Pedro, ainda que autores prestigiosos como Máximo, o Confessor, ou Teodoro Estudita algumas vezes digam algo nesse sentido”.
Sendo assim, o caminho está fechado nessa direção...
ZIZIOULAS: Se esperarmos que os biblistas entrem em acordo sobre a relação entre o papel de Pedro no Novo Testamento e o primado exercido pela Sé romana, teremos de adiar a unidade da Igreja para um outro milênio, quando não para o infinito...
Nestas páginas, os mosaicos da primeira metade do século XI do mosteiro de Hosios Loukas, Daphni, Grécia; aqui, acima, o lava-pés

Nestas páginas, os mosaicos da primeira metade do século XI do mosteiro de Hosios Loukas, Daphni, Grécia; aqui, acima, o lava-pés

Como o senhor avalia a proposta de voltar ao modelo de relações adotado durante o primeiro milênio?
ZIZIOULAS: Esse caminho não me parece realista, sobretudo porque a Igreja Católica romana não está disposta a apagar da história seu segundo milênio para fazer a unidade com os ortodoxos.
Na sua opinião, então, qual pode ser um terreno comum realista para respostas comuns a essas questões que estão abertas?
ZIZIOULAS: Para o futuro desenvolvimento do diálogo sobre esse tema, é de importância crucial que os ortodoxos reconheçam que o primado faz parte da essência da Igreja e não é uma questão de organização. Deveriam também aceitar que deve haver um primado em nível universal. No momento, isso é difícil, mas se tornaria mais simples se refletíssemos mais profundamente sobre a natureza da Igreja. A Igreja não pode ser local sem ser universal e não pode ser universal se não é local.
E na frente católica, o que é que pode ajudar o diálogo?
ZIZIOULAS: Os católicos devem levar a sério a noção de plena catolicidade da Igreja local promovida pelo Concílio Vaticano II, e devem aplicá-la a sua eclesiologia. Isso significa que qualquer forma de primado em nível universal deve refletir a Igreja local e não intervir na Igreja local sem seu consenso. Cada Igreja local deve ter a possibilidade de afirmar sua catolicidade em relação ao primado. Por isso, repito, a regra áurea para um exercício correto do primado é o Cânon dos Apóstolos número 34.
Como é possível uma reaproximação com base numa nova tese teológica?
ZIZIOULAS: O reconhecimento do primado romano depende de se concordar que a Igreja é formada de Igrejas locais plenamente constituídas, unidas numa única Igreja, sem perder sua plenitude eclesial. Mas isso não é um “novismo” teológico. Padre Congar acreditava que o primado papal, a despeito das tendências monárquicas que prevaleciam naquele tempo, havia sido exercido dentro de uma eclesiologia de comunhão também no Ocidente até por volta do século XVI, quando o papado acabou por impor o primado monárquico em todo o Ocidente. Se as coisas estão nesse pé, a volta a essa eclesiologia de comunhão não é uma proposta tão irrealista assim.
Última pergunta. O senhor conheceu o cardeal Ratzinger, hoje papa Bento XVI. Quais o senhor acredita que serão a abordagem e a contribuição do novo Papa quanto a esses problemas?
ZIZIOULAS: Tive a honra e o privilégio de encontrar o então cardeal Ratzinger no início da década de 1980, quando éramos membros da Comissão Internacional para o Diálogo Teológico oficial entre católicos romanos e Igrejas ortodoxas. É um grande teólogo e um especialista em eclesiologia tanto ocidental quanto oriental. Em sua nova veste de Papa, pode certamente contribuir de maneira decisiva para a convergência entre católicos romanos e ortodoxos na compreensão do primado. No passado, deu importantes sugestões para a solução desse problema. Pode ser providencial o fato de que, neste momento crucial do debate sobre essa matéria, o Papa seja ele.


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