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EDITORIAL
Extraído do número 03 - 2006

Não ter medo


O aniversário da morte de João Paulo II foi vivido, por uma singular coincidência, em um clima de grande emoção pelo anúncio – depois de muitos dias de angustiante busca – do assassinato do menino Tommaso Onofri, que fora seqüestrado na região Emilia Romagna. O Papa dos jovens acolheu-o no Paraíso [...]. Outra coincidência no aniversário: o anúncio da morte de Giorgio Rumi, que muitas vezes escreveu páginas belíssimas sobre os vinte sete anos de pontificado


Giulio Andreotti


Bento XVI abençoa os fiéis presentes na Praça de São Pedro para a recitação do Santo Rosário no primeiro aniversário 
da morte de João Paulo II, na noite de 2 de abril de 2006

Bento XVI abençoa os fiéis presentes na Praça de São Pedro para a recitação do Santo Rosário no primeiro aniversário da morte de João Paulo II, na noite de 2 de abril de 2006

O aniversário da morte de João Paulo II foi vivido, por uma singular coincidência, em um clima de grande emoção pelo anúncio – depois de muitos dias de angustiante busca – do assassinato do menino Tommaso Onofri, que fora seqüestrado na região Emilia Romagna. O Papa dos jovens acolheu-o no Paraíso.
Foram muitos os jovens que vieram a Roma – muitos da Polônia – para reviver as inesquecíveis horas da volta do Papa Wojtyla à Casa do Pai. Mas todos os dias, desde então, enormes filas de fiéis rezam sobre o seu túmulo.
Quinta-feira passada, na presença de Bento XVI, foi apresentado no Vaticano o novo filme dedicado ao Papa polonês. Pareceu-me ainda melhor do que o anterior, porque foi dedicado somente – e com grande mestria – aos anos de pontificado, enquanto que o outro reconstruía a sua infância, a juventude e todo o cursus honorum eclesiástico, com o atribulado cenário político daquela nação.
Outra coincidência no aniversário: o anúncio da morte de Giorgio Rumi, que muitas vezes escreveu páginas belíssimas sobre os vinte sete anos de pontificado.
Na história – não apenas na história da Igreja – a João Paulo II será reconhecido um papel decisivo para o crepúsculo e a derrota do domínio bolchevique no Leste. Não foi por acaso que Moscou tentou fazer com que os governantes de Varsóvia impedissem a viagem do novo Papa, que certamente causaria um grande impacto popular. Mas era um conselho muito ambicioso, se pensarmos na maciça participação dos líderes, em Roma por ocasião das cerimônias de posse do pontificado de seu compatriota.
Os convites à coragem e as advertências para nunca ter medo, sem dúvida, foram determinantes para o desenvolvimento do movimento de solidariedade popular promovido por Lech Walesa. Não por acaso desde então deixou-se de considerar ilegítimo o “interclacismo”, que antes era mais ou menos confundido com o capitalismo. Disso nós italianos sabemos alguma coisa, e me consentam, especialmente nós democrata-cristãos.
Quando na Polônia, o general Jaruzelski decretou a virada autoritária, que teve como reação o isolamento internacional da própria Polônia, o Papa seguiu pessoalmente os acontecimentos com grande intensidade.
Entre os papéis que conservo com maior cuidado, há a carta – com a data de 5 de janeiro de 2005 – com a qual João Paulo II retribui, de modo que considero elogioso, minhas felicitações natalinas: “... Renovo-lhe o meu reconhecido apreço pelo constante empenho na promoção da pacífica convivência entre os povos, seguindo as indicações oferecidas pelo Magistério da Igreja”.
Entre as muitas expressões polêmicas atualmente usadas sobre as relações entre Estado e Igreja na Itália, essa evidência das freqüentes fases de coincidência parece-me muito importante. Recordo em particular, retrospectivamente, do apoio dado por Pio XII à Aliança Atlântica, convidando a superar as instintivas contrariedades dos católicos para com os pactos militares. Recordo da convergência entre Paulo VI e Aldo Moro ao associar a Santa Sé diretamente à política de segurança e cooperação européia. Mas penso também na crise de 1984 à qual aludi anteriormente.
Entre os papéis que conservo com maior cuidado, há a carta – com a data de 5 de janeiro de 2005 – com a qual João Paulo II retribui, de modo que considero elogioso, minhas felicitações natalinas: “... Renovo-lhe o meu reconhecido apreço pelo constante empenho na promoção da pacífica convivência entre os povos, seguindo as indicações oferecidas pelo Magistério da Igreja”
O Ministro do Exterior alemão, Genscher mostrara-se disponível para romper o isolamento da Polônia, mas pedia que no programa da visita fosse feita uma homenagem no túmulo do padre Popieluszko, o sacerdote assassinado segundo a vox populi pela polícia comunista. A resposta foi negativa e a viagem foi cancelada. Eu repeti também a mesma cláusula (estava no ministério do Exterior), acrescentando, de modo mais comprometedor, a necessidade de um encontro com os dirigentes do Solidarnosc.
A resposta polonesa foi positiva e esse tratamento privilegiado ao governo italiano, com relação aos alemães, certamente foi devido à vontade de fazer com que chegasse esclarecimentos e mensagens ao Santo Padre (Jaruzelski disse-me isso explicitamente).
Pude prestar homenagem ao pobre sacerdote morto com uma missa ad hoc, na presença de muitos fiéis, com exuberância de flores e velas. Logo depois, na embaixada da Itália, encontrei os dirigentes clandestinos de Solidarnosc, que consideraram o evento como um sinal governamental de distensão. O presidente Jaruzelski recebeu-me e conversamos por várias horas. Muitos anos depois, em circunstâncias muito diferentes, tive (e ainda tenho) ocasião de encontrá-lo nas reuniões do Fórum idealizado por Gorbatchov e pudemos constatar a exatidão da informação da época. Com o “estado de emergência” conseguira bloquear a já decidida invasão soviética; sendo polonês, reivindicava isso como mérito patriótico. Mas tinha mais. Estava fazendo uma limpeza dentro do Partido Comunista, esperando que a sujeira eliminada do Partido não fosse recolhida pelos homens de Walesa, poluindo o Movimento.
Sobre o assassinato de padre Popieluszko, as responsabilidades foram acertadas e o processo seria feito rapidamente com as óbvias conseqüências punitivas.
O nosso embaixador explicou-me o significado de uma alusão do presidente sobre o absurdo de considerá-lo pró-soviético, depois do que fora feito à sua família (parece, dispersa na Sibéria). Pouco antes e logo depois da viagem à Varsóvia tive o privilégio de ser convidado para jantar com o Santo Padre podendo assim falar sem os limites das audiências protocolares.
Porém, em um evento internacional a posição italiana não coincidiu com a vaticana. Firmemente contrário a todas as guerras, o Papa não aprovou a guerra do Golfo com a qual restituiu-se ao Kuwait a soberania do território, invadido pelos iraquianos. Na verdade, o Evangelho reprova o rei que não aceita fazer pactos com o invasor muito mais forte, mas não contempla a proibição de defender o território. Creio que o Papa pensasse que fossem necessárias e possíveis outras tentativas com Saddam Hussein. De qualquer modo ficou satisfeito quando soube que foram reprovadas as propostas punitivas. Com precisão pude garantir-lhe que não foram aceitas as teses dos que projetavam invasões punitivas em território iraquiano.
Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia

Karol Wojtyla, arcebispo de Cracóvia

Para uma exatidão crônico-histórica escrevo a expressão do então Chefe de Estado-Maior americano, o general Colin Powell: “Os meus homens não colocarão os pés em território iraquiano. Seria uma armadilha. Devíamos libertar o Kuwait. Ponto final”.
Também um outro capítulo do pontificado de João Paulo II merece uma menção: a grande abertura para com os judeus no quadro de um auspiciado diálogo entre as religiões.
Neste aspecto deve ser colocada a modificação da Concordata de 1929 que removeu também a rígida interpretação segundo a qual em Roma havia fortes limitações ao pluralismo religioso. A partir disso foram enfrentadas delicadas questões com os protestantes, também pessoalmente com o Secretário de Estado americano Forster Dulles, fautor de uma presença romana da Church of Christ.
Também foi formidável a expansão diplomática da Santa Sé depois de 1978, com a instauração de relações que tiveram aspectos delicados (Estado de Israel, Líbia, Autoridade Palestina).
Ainda restam duas lacunas: a China e a Arábia Saudita, mas os dois países, por ocasião da morte de João Paulo II, “participaram” ao luto universal. A estrada – ainda difícil – não foi de modo algum abandonada.
Em um mundo que muda (pensemos às emigrações de islâmicos em áreas não islâmicas) muitos problemas se complicam e se agravam. A firmeza nos princípios deve ser acompanhada por uma grande disponibilidade ao diálogo. E onde havia como obstáculo abismos históricos de incompreensão, mesmo conflituosos, Papa Wojtyla abriu corajosamente as brechas para os acordos, não tendo medo até mesmo de reescrever páginas de história temporal da Igreja.
Nunca ter medo. É a grande herança que nos deixou.


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