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OS 27 CARDEAIS
Extraído do número 03 - 2007

Deus fez breve a sua Palavra



do cardeal Agostino Cacciavillan



Celebramos os oitenta anos de vida de nosso amado papa Bento XVI e lhe desejamos muitos anos mais. Que o Senhor conserve por longo tempo seu belo rosto inteligente e bom, coroado de bastos cabelos prateados, sua expressão firme e dócil, determinada e doce, a amorosa delicadeza com que cumprimenta e agradece a todos, e com que se porta nas audiências, aproxima as pessoas, especialmente os doentes, e beija as crianças (a respeito do Menino Jesus e das crianças, deve-se lembrar sua homilia da noite de Natal do ano passado). Que o Senhor lhe conserve a agilidade dos passos ao subir e descer os degraus do altar da confissão, em São Pedro, e os da sala das audiências.
Chegou aos oitenta anos em grande vigor de intelecto, de sentimentos (inclusive um fino senso de humor), de movimentos, mesmo tendo o seu cargo de “Urso de São Corbiniano” se tornado mais pesado do que antes (cf. Memórias 1927-1977, Milão, Edizioni San Paolo, 1997, pp. 118-121, e a saudação na Marienplatz, Munique, a 9 de setembro de 2006).
Não podemos nos esquecer daquele “simples e humilde trabalhador da vinha do Senhor” com o qual se apresentou em 19 de abril de 2005. Vem ao pensamento o espírito salesiano, ou seja, o humanismo cristão humilde e dócil do bispo e doutor da Igreja São Francisco de Sales. Bento XV talvez também fosse assim.
Os oitenta anos do papa Ratzinger podem facilmente se dividir em duas partes: cinqüenta antes de se tornar bispo (1927-1977), trinta a partir da ordenação episcopal (1977-2007).
Trinta anos de episcopado: cinco na Alemanha como arcebispo de Munique e Freising (1977-1982), vinte e cinco em Roma-Vaticano, vinte e três dos quais (1982-2005) com o cargo de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e dois como pastor universal. Durante vinte e oito anos (1977-2005), foi também cardeal, cinco em Munique, vinte e três em Roma.
Em seu octogésimo ano de idade, que hoje se completa para dar início ao octogésimo primeiro, Bento XVI fez nada menos que quatro viagens apostólicas, e todas de grande significado e sucesso: à Polônia (25-28 de maio de 2006), a Valência (8-9 de julho de 2006), à Baviera (9-14 de setembro de 2006) e à Turquia (28 de novembro a 1º de dezembro de 2006).
A viagem à Baviera foi também num certo sentido sua celebração do próprio octogésimo ano de vida com especial referência ao período anterior à vinda a Roma, em 1982: é uma celebração comovente e edificante voltar a viver em lugares e com pessoas conhecidas e queridas, além de contar com a lembrança de outras ausentes ou falecidas, entre elas os pais, Joseph e Maria, e a irmã Maria, sobre cujo túmulo foi rezar com o irmão, monsenhor Georg; reviver as próprias diferentes idades e tantas coisas e eventos do passado, da infância à maturidade operosa e frutuosa como sacerdote, docente, escritor, bispo – uma celebração que só ele pode fazer. À luz de sua recente viagem à Baviera, é interessante reler as acima mencionadas recordações autobiográficas de seus primeiros cinqüenta anos de vida.
Em setembro passado, em sua pátria, ele se expressou assim: “[...] lugares que tiveram uma importância fundamental na minha vida [...]; muitas recordações dos anos passados em Munique e Regensburg: lembranças de pessoas e de acontecimentos que deixaram em mim uma marca profunda [...]; etapas do meu caminho, de Marktl e Tittmoning a Aschau, Traunstein, Regensburg e Munique” (discurso na chegada a Munique); e ele esteve também em Altötting e Freising. “Lugares que me são familiares, que tiveram uma influência determinante sobre a minha vida, formando o meu pensamento e os meus sentimentos: os lugares nos quais aprendi a crer e a viver [...]; a quantos – vivos e mortos – me guiaram e acompanharam” (homilia em Munique). “Fiquei comovido quando ouvi dizer que muitas pessoas [...] colaboraram para embelezar a minha pequena casa e o meu jardim” (homilia em Regensburg). “Experimento grande emoção neste momento em que me encontro de novo na universidade para dar mais uma aula” (discurso na Universidade de Regensburg). “Nesta belíssima praça, aos pés da Mariensäule: um lugar que já outras duas vezes testemunhou mudanças decisivas na minha vida [início do ministério episcopal, em 1977, e despedida antes de partir para Roma, em 1982]” (saudação em Marienplatz, Munique). Lembranças de sua ordenação sacerdotal, recebida na Catedral de Freising, e das ordenações de sacerdotes e diáconos por ele feitas na mesma Catedral (discurso na Catedral de Freising). “Foram dias intensos e, na lembrança, pude reviver muitos eventos do passado que marcaram a minha existência” (discurso de despedida no aeroporto de Munique). A tudo isso Bento XVI voltou com uma síntese precisa e tocante na audiência geral na praça de São Pedro de 20 de setembro. Dedicou depois às quatro viagens pastorais de 2006 o discurso natalício à Cúria Romana (22 de dezembro), e então disse: “Prossigamos mentalmente rumo à Baviera – Munique, Altötting, Regensburg, Freising. Ali pude viver dias inesquecivelmente belos de encontro com a fé e com os fiéis da minha pátria. O grande tema da minha viagem à Alemanha era Deus”. Estendeu-se portanto num aprofundamento desse tema e de dois temas a ele ligados, o sacerdócio e o diálogo.
O Papa saúda os fiéis no parque de Blonie em Cracóvia, em 28 de maio de 2006

O Papa saúda os fiéis no parque de Blonie em Cracóvia, em 28 de maio de 2006

Da vida do nosso Santo Padre, toda ela um grande serviço à Igreja, são particularmente preciosos os vinte e três anos nos quais foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, primeiro colaborador do magistério do inesquecível servo de Deus papa João Paulo II. O cardeal Ratzinger foi prefeito do qüinquagésimo ao septuagésimo oitavo ano de idade. Um longo período de crescente renome e prestígio. Proferiu conferências em várias partes do mundo e sobretudo continuou a publicar livros e artigos, sempre muito difundidos e apreciados.
Eu gostaria, todavia, de assinalar sobretudo os numerosos documentos oficiais por ele emanados como prefeito do mencionado organismo. Acaba de ser publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé um esplêndido livro que reúne Documenta inde a Concilio Vaticano Secundo expleto edita (1966-2005).
Notando que a maior parte desses documentos (do nº 46 ao nº 105, pp. 195-629) trazem a assinatura do cardeal Joseph Ratzinger, o arcebispo Angelo Amato, secretário, escreve (p. 12): “Neles está presente a sua alta qualidade teológica fortemente arraigada na grande tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberta à escuta atenta do novum cultural, visto com simpatia e, sempre que necessário, com sadio espírito crítico. É a ele, tornado por graça de Deus Papa Bento XVI, que a Congregação para a Doutrina da Fé oferece esta coletânea em sinal de imensa gratidão”.
Duas características de grande importância, essenciais de sua personalidade e de sua vida, foram e são a plena dedicação ao serviço apaixonado da verdade e do amor. A substância da vida cristã.
Nas citadas recordações autobiográficas de seus primeiros cinqüenta anos, lemos: “Como mote episcopal [em 1977] escolhi duas palavras da terceira carta de São João: ‘Colaboradores da verdade’, em primeiro lugar porque me parecia que pudessem representar bem a continuidade entre a minha tarefa anterior e o novo cargo; mesmo com todas as diferenças, tratava-se e trata-se sempre da mesma coisa, seguir a verdade, pôr-se a seu serviço. E, uma vez que no mundo de hoje o tema ‘verdade’ quase desapareceu, pois parece grande demais para o homem, e que, todavia, tudo desmorona se não existe a verdade, esse mote espiritual me pareceu o que estaria mais em linha com o nosso tempo, o mais moderno, no bom sentido do termo”. Ele continuou a usar esse mote também quando foi prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, de 1982 a 2005.
Pode-se logo observar que na breve terceira carta de São João, se a verdade é sublinhada, não falta também a menção à caridade. Nos escritos do apóstolo João há um entrelaçamento de verdade e caridade.
Por outro lado, com a verdade estão intimamente conectadas a razão, a racionalidade, a inteligência; o logos minúsculo e o Logos maiúsculo, o Logos criador; como também os temas fé e razão, religião e razão. Sobre isso temos a palestra proferida pelo Santo Padre na Universidade de Regensburg em 12 de setembro de 2006, o que ele mesmo disse a respeito dela na audiência geral de 20 de setembro de 2006 e seu discurso no quarto Congresso Nacional da Igreja na Itália, em Verona, a 19 de outubro de 2006.
Se a verdade sobressai em seu mote, no início do ministério-magistério episcopal, a caridade domina a encíclica inicial de seu sumo pontificado. É de novo joanina a sua inspiração: “Deus é amor” (1Jo 4, 8). Ora, nós reencontramos essa encíclica citada nos mencionados discursos de Regensburg e Verona; isso se explica inevitavelmente pela estreita relação que existe entre verdade e amor. Note-se esta reflexão da conferência de Regensburg: “[...] o Deus verdadeiramente divino é aquele Deus que se mostrou como logos e, como logos, agiu e age cheio de amor em nosso favor. Certamente o amor, como diz Paulo, ‘ultrapassa’ o conhecimento, sendo por isso capaz de apreender mais do que o simples pensamento (cf. Ef 3,19), mas aquele permanece o amor do Deus-Logos, motivo pelo qual o culto cristão, como afirma ainda Paulo, loghikè latreía – um culto que está de acordo com o Verbo eterno e com a nossa razão (cf. Rm 12, 1)”.
Bento XVI assina a encíclica Deus caritas est, de 25 de dezembro de 2005

Bento XVI assina a encíclica Deus caritas est, de 25 de dezembro de 2005

Ainda um texto do Papa Bento XVI, na homilia da noite de Natal de 2006: “[...] ‘Deus abreviou a sua Palavra’. A Palavra que Deus nos comunica nos livros da Sagrada Escritura, ao longo dos tempos, tornou-se extensa. Extensa e complicada [...]. Jesus ‘abreviou’ a Palavra – fez-nos rever a sua mais profunda simplicidade e unidade. Tudo aquilo que nos ensina a Lei e os profetas está resumido – Ele diz – na palavra: ‘Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente [...]. Amarás a teu próximo como a ti mesmo’ (Mt 22, 37-40). Está tudo aí – toda a fé se resolve nesse único ato de amor que abraça Deus e os homens”. É o que se lê em Santo Agostinho na Liturgia das Horas do tempo de Natal (3 de janeiro): “Venit ipse Dominus, caritatis doctor, caritate plenus, brevians, sicut de illo praedictum est, verbum super terram, et ostendit in duobus praeceptis caritatis pendere legem et prophetas”. Na homilia na Catedral de Regensburg, a 12 de setembro de 2006, o Santo Padre havia dito: “O ágape, o amor, é autenticamente a síntese da Lei e dos profetas. Nele tudo está ‘envolvido’; todavia, é um tudo que na vida cotidiana deve ser ‘desenvolvido’ sempre de novo”.
As acima referidas palavras do Papa formam portanto, por assim dizer, um todo da Verdade-Verbo-Logos e do Amor. O Verbo, a Palavra, a Verdade, diz respeito principalmente ao Amor: Deus é amor, e a síntese da Lei e dos profetas é amar a Deus e amar ao próximo.
Verdade e caridade são temas fundamentais para toda a vida e obra da Igreja: sua missão na sociedade civil (nos campos da política, da economia, do trabalho, do pensamento, da ciência, da técnica, etc.), a promoção da unidade dos cristãos, o diálogo com as outras religiões e culturas, etc. Na estupenda homilia da Epifania de 2007, o Papa nos falou das dimensões política, científica e religiosa, constitutivas do humanismo moderno, e fez votos de que os governantes, os homens de pensamento e de ciência e os guias espirituais das grandes religiões não-cristãs sejam os Magos de hoje.
Nos acima citados desafios, Bento XVI tem uma responsabilidade suprema, e ele a exerce de maneira admirável, com muita ciência e muita sabedoria, às vezes “de maneira surpreendente”, como já se disse, e “com verdadeira maestria da palavra e dos gestos”. Por seu incansável e grande serviço à verdade e ao amor, dirigimos ao papa teólogo Bento XVI todo o nosso reconhecimento. Ao mesmo tempo, fazemos votos de que as menções a seu ensinamento, feitas acima, ajudem-nos a crescer no “sustento e afeto” para com sua pessoa pelos quais ele mesmo humanissimamente expressa seu “obrigado”, com simplicidade tão modesta quanto é elevada sua grandeza espiritual. O incremento de seu cargo de Urso de São Corbiniano o faz sentir-se mais próximo de Deus.


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