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OS 27 CARDEAIS
Extraído do número 03 - 2007

Nova et vetera



do cardeal José Saraiva Martins, C.M.F.



Como quem é capaz de extrair de seu tesouro coisas antigas e coisas novas (cf. Mt 13, 51), despontam na produção teológica de Joseph Ratzinger fatores da Tradição por meio dos quais ele permitiu que se expressasse a absoluta novidade do acontecimento cristão, reluzindo em toda a sua beleza. É precisamente nessa novidade cristã que eu gostaria de deter por alguns momentos minha atenção, refletindo sobre a questão da “pessoa” no pensamento daquele que hoje é o Santo Padre Bento XVI.
Há um dado que se destaca na revelação cristã: é o Novum! Sob qualquer forma, ela diz ao homem algo que ele não sabia, que nunca poderia ter imaginado. O teólogo Ratzinger observou que “o processo criativo constitui também sempre um processo receptivo; [...] a forjadura criativa só se tornou possível na forma de recepção na linha da Revelação”1.
Em outras palavras, a decisão tomada pelos patriarcas de Israel por um Deus pessoal e transcendente ou a confissão da Igreja de que Deus é comunhão trinitária de pessoas não correspondem em primeiro lugar a uma iniciativa deles, fruto de uma invenção cultural, mas implica necessariamente um dom, uma recepção, e por isso mesmo também uma verdadeira iniciativa histórica por parte de Deus perante o homem.
Esse aspecto de novidade absoluta da identidade de Deus, que se revelando manifesta ao homem uma dimensão totalmente nova, desponta constantemente na leitura bíblica conduzida pelo atual Pontífice, segundo a qual a idéia de pessoa é um dom que se manifesta a nós com a revelação de Deus. “Ela nos introduz na intimidade de Jesus, na qual Ele só admite seus amigos. Mostra Jesus do ponto de vista da experiência de amizade que permite olhar no íntimo, e é um convite a entrar nessa intimidade”2.
De modo semelhante, é preciso também realçar o fato de que não apenas a idéia de pessoa é fruto da Revelação, mas também que ela representa uma das mais significativas expressões dessa revolução semântica e lingüística que o cristianismo foi capaz de realizar.
Pensemos, a propósito disso, na contribuição para a reflexão teológica trazida por Tertuliano sobretudo mediante a criação de uma linguagem teológica; Ratzinger, a esse respeito, afirma: “Tertuliano transformou o latim em língua teológica e, com uma segurança quase inexplicável, soube bem cedo formular uma terminologia teológica [...]; passaram séculos antes que essa expressão pudesse ser acolhida e completada também espiritualmente [...]”3. Igualmente significativo é o que é afirmado a respeito da origem da idéia de pessoa: “Para responder a essas duas questões de fundo (quem é Deus e quem é Cristo), que se puseram tão logo foi introduzida na fé a reflexão, essa última usou o termo prósopon = pessoa, que até então fora insignificante em filosofia ou de modo algum empregada; a ele foi dado um novo significado e por seu intermédio manifestada uma nova dimensão do pensamento humano”4.
A força de novidade do acontecimento cristão não se limita ao aspecto lingüístico, evidentemente, mas, por meio dele, expressou um impulso de novidade cultural ainda mais profundo. Se a tradição cristã da exegese prosopográfica expressava uma novidade literária, a introdução das categorias de relação e de pessoa, por obra dos Padres e de Agostinho, sobretudo, expressam justamente a subversão dos antigos parâmetros culturais de um mundo marcado profundamente pelo pensamento clássico.
Basta neste caso recorrer às teses de dogmática trinitária formuladas pelo teólogo que hoje ascendeu ao trono de Pedro, nas quais ele afirma que o paradoxo de um só Ser em três Pessoas põe ordem no problema da unidade e da multiplicidade; além disso, esse paradoxo está subordinado ao problema do absoluto e do relativo e põe em relevo o caráter de absoluto intratrinitário deste último. Por fim, esse paradoxo existe em função do conceito de pessoa5. Na simples admissão, portanto, de que, como forma igualmente original do ser, ao lado da substância se encontra também a relação (a pessoa em Deus é constitutivamente relação) se encerra uma autêntica revolução do mundo; a supremacia do pensamento baseado na substância é demolida: “A relação é descoberta como modalidade primitiva e com o mesmo valor”6.
Tudo isso tornou possível e torna novamente possível a superação do que nós chamamos “pensamento objetivante”, ao mesmo tempo em que traça a perspectiva de um novo plano do ser. Com toda a probabilidade, observou nosso autor, “será preciso também dizer que a tarefa para o pensamento que deriva dessas circunstâncias, de fato, está ainda bem longe de ter sido cumprida, pelo fato de o pensamento moderno depender das perspectivas aqui abertas, sem as quais não seria nem imaginável [...]. Eu creio que, seguindo o desenvolvimento dessa luta [...], se possa ver que enorme esforço e que mudança de pensamento se encontram atrás desse conceito de pessoa, o qual, em sua disposição, é totalmente estranho ao espírito grego e latino; ele não é pensado em termos substanciais, mas do ponto de vista existencial”7.
A teologia daquele que se definiu “humilde trabalhador da vinha do Senhor” poderia ser designada como a capacidade de sempre reconduzir tudo à própria origem, ao ponto genético. De fato, “o conceito de pessoa surgiu de duas questões que se impuseram, desde o início, ao pensamento cristão como problemas centrais; estas são as duas questões: o que é Deus e quem é Cristo?”8.
A idéia de pessoa dentro do discurso cristológico revela-se de capital importância. No próprio momento em que Ratzinger trata de teologia da encarnação e de teologia da Cruz, ou quando analisa a cristologia, enquanto doutrina sobre o ser de Cristo, e a soteriologia, fica evidente que a idéia cristológica de pessoa como relação permite sair do beco sem saída da separação dos itinerários em que muitas vezes a teologia cristã incorreu. De fato, é justamente a compreensão relacional do ser pessoal de Cristo que permite fazer confluir naturalmente a teologia da encarnação na teologia da Cruz e vice-versa; da mesma forma, a consciência da identidade, em Cristo, entre pessoa e obra (a pessoa não possui a relação, mas é relação) permite formular uma cristologia em perspectiva soteriológica e uma soteriologia retamente estabelecida9.
Concluo ainda com um pensamento de Ratzinger cujo valor parece mais do que nunca atual: “Deus, baseando-se na autocompreensão da fé, denomina a si mesmo, expressa sua íntima essência e se torna nomeável, abandonando-se ao homem a ponto de se deixar chamar por ele pelo nome”10. Deus, em Jesus, pelo dom do Espírito, se faz chamar Abbá, Pai, e nos introduz em sua divina intimidade. “O Apocalipse fala do antagonista de Deus, da besta. Esse animal [...] não tem um nome, mas carrega um número [...]; é um número e transforma em números. Nós vivenciamos o que isso significa nos campos de concentração, horrendos, pois apagam o rosto, transformam em número. O homem se torna uma função. [...] Deus, por sua vez, tem um nome e chama pelo nome. Ele é pessoa e busca a pessoa; tem um rosto e busca o nosso rosto; tem um coração e busca o nosso coração. Para Ele, nós não somos uma função!”11.
Bento XVI com o irmão Georg em visita à igreja paroquial de Sankt 
Oswald, em Marktl am Inn, sua cidade natal, em 11 de setembro de 2006

Bento XVI com o irmão Georg em visita à igreja paroquial de Sankt Oswald, em Marktl am Inn, sua cidade natal, em 11 de setembro de 2006

Eu quis deter-me num aspecto da reflexão teológica de Joseph Ratzinger e não no magistério de Bento XVI, mesmo sabendo que o Papa ou um bispo, como ele mesmo precisou anos atrás, não deve expor suas concepções pessoais, mas dar espaço à palavra comum da Igreja12. Todavia, eu o fiz justamente para formular meus votos de que, a exemplo de todos os santos da Igreja, os bispos, os sacerdotes e os leigos tenham tal consciência. Enfim, é justamente isto que quero desejar ao Santo Padre, na feliz circunstância de seu octogésimo aniversário: que todos acolham seu alto magistério como expressão da unidade e da caridade da Igreja Católica, como chegou a dizer Cipriano ao Papa Cornélio13.
O canto unânime da Igreja nos une a todos no afeto e na devoção ao sucessor de Pedro que a Providência nos soube doar: “Dominus conservet eum et vivificet eum...”.


Notas
1 Ratzinger J., Introduzione al cristianesimo. Lezioni sul Simbolo apostolico, Brescia, Queriniana, 2007, pp. 87-88.
2 Id., Guardare al Crocifisso, Milão, Jaca Book, 1992, p. 21.
3 Id., Dogma e predicazione, Brescia, Queriniana, 2005, p. 174.
4 Id., ibid., p. 173.
5 Cf. id., Introduzione al cristianesimo, op. cit., pp. 135-138.
6 Id., ibid., p. 141.
7 Id., Dogma e predicazione, op. cit., p. 183.
8 Id., ibid., p. 173.
9 Cf. id., Introduzione al cristianesimo, op. cit., pp. 180-185.
10 Id., ibid., p. 95.
11 Id., Il Dio di Gesù Cristo, Brescia, Queriniana, 2006, pp. 20-21.
12 Ratzinger J./Bento XVI, Vi ho chiamati amici. La compagnia nel cammino della fede, Cinisello Balsamo, San Paolo, 2006, pp. 31-32.
13 Epistola 48, 3 (CSEL 3/2, 607).


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