Home > Arquivo > 03 - 2007 > Um Padre da Igreja para os nossos tempos
OS 27 CARDEAIS
Extraído do número 03 - 2007

Um Padre da Igreja para os nossos tempos



do cardeal Julián Herranz



No verão passado um estudante universitário, depois de ter ouvido a homilia de Bento XVI sobre a Eucaristia na Jornada Mundial da Juventude de Colônia, disse-me: “Eminência, a história dirá que desta vez os cardeais escolheram como papa um Padre da Igreja...”. Não sei o que os historiadores dirão deste pontificado, mas uma coisa é certa, e faço questão de recordá-lo nas vésperas do octogésimo aniversário do Papa: os Padres da Igreja, tanto no Oriente como no Ocidente, eram ligados, assim como nós somos hoje, aos acontecimentos humanos da sua época, mas os viviam com o espírito repleto por uma particular clarividência doutrinal e social. O homem Ratzinger demonstrou que possui essa mesma têmpera dos Padres, de modo extraordinário, antes e depois da eleição à cátedra de Pedro. Outros poderão colocar esta realidade em evidência com muitas razões e riqueza de particulares. Neste escrito memorativo, gostaria de aludir a apenas três acontecimentos eclesiais nos quais me senti em especial sintonia com ele.

A crise pós-conciliar
A chamada “crise pós-conciliar” no período entre 1965-1985 era realmente uma situação paradoxal. Justamente enquanto o Espírito Santo, superando humanas limitações, acabava de difundir sobre a Igreja a poderosa luz do Vaticano II, abriu-se um período dramático de particular obscuridade e confusão em muitos setores eclesiais: um desejo de atualizar a teologia e a fé marginalizando Deus e colocando o homem no centro; uma redução temporalista da mensagem evangélica de salvação e conseqüentemente da missão da Igreja; uma reconfiguraçãoda identidade sacerdotal que levou muitos à laicização do estilo de vida e que comportou uma avalanche de defecções sacerdotais e religiosas; um experimentalismo litúrgico descontrolado e dessacralizador, feito abusivamente em nome da chamada “reforma desejada pelo Concílio”, e assim por diante. Em tal contexto a palavra “tridentino” sinônimo de “conservador retrógrado”, para muitos assumiu uma referência danificadora, quase um insulto; enquanto outros se agarravam a um tradicionalismo redutivo da verdadeira Tradição cristã, inclusive em aberta oposição ao magistério do Concílio.
“Confrontando as duas posições contrapostas”, disse o então cardeal Ratzinger no seu famoso Informe sobre a fé, “deve ser esclarecido antes de tudo que o Vaticano II é sustentado pela mesma autoridade do Vaticano I e do Tridentino: ou seja, o papa e o colégio dos bispos em comunhão com ele. Do ponto de vista dos conteúdos deve-se recordar que o Concílio Vaticano II coloca-se em estrita continuidade com os dois concílios anteriores e os retoma literalmente em pontos decisivos”. Confesso que, lendo esta entrevista do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé com Vittorio Messori, fiquei profundamente impressionado pela corajosa clareza e pelo lúcido realismo com o qual as deviações doutrinais e disciplinares da “crise pós-conciliar” eram expostas. Esta longa entrevista provocou animadas discussões nas primeiras páginas dos jornais.
Tive várias oportunidades de falar sobre isso com o cardeal, principalmente em um longo encontro em 14 de janeiro de 1985 no seu escritório da Congregação. Naquele dia pude ilustrar-lhe detalhadamente o pensamento do fundador do Opus Dei, monsenhor Escrivá – do qual já tinha sido iniciada a causa de canonização –, diante da situação da Igreja naquela dramática crise. Disse-lhe que lendo o seu Informe sobre a fé, tinha encontrado em vários pontos, expressado em linguagem acadêmica, as mesmas aflitas, mas cheias de esperanças, considerações teológicas e pastorais que tinha ouvido nos anos Sessenta e Setenta de monsenhor Escrivá, algumas vezes até mesmo durante a meditação pessoal, feita em voz alta, na capela diante do tabernáculo. “Foi uma reação de um grande fundador e de um sacerdote santo”, comentou Ratzinger.
O Informe sobre a fé foi justamente definido “denúncia profética” ou “documento que marca época na hermenêutica conciliar”, ou seja, a reta e serena interpretação do Concílio que muitos anos depois, no seu primeiro discurso como papa à Cúria, no tradicional encontro natalino, Bento XVI teria chamado “hermenêutica da continuidade” em oposição à “hermenêutica de ruptura” denunciada no Informe sobre a fé. A leitura destas considerações – que certamente não é obra pré-confecionada de um teólogo, mas a meditação de um teólogo-pastor consciente da sua responsabilidade diante da almas a serem guiadas – de algum modo evocava a figura remota mas sempre atual dos Padres da Igreja. Eles, com efeito, com seus escritos (ensaios certamente, mas principalmente discursos e homilias fruto da assídua meditação da Sagrada Escritura) transmitiam aos fiéis um vigoroso alimento espiritual e intervinham com diligência quando as circunstâncias internas da Igreja ou as externas da cultura pagã exigiam que se definissem bem os conteúdos, as exigências e as propostas do ditado evangélico e da tradição apostólica. Quase como confirmação desta minha impressão pessoal, e certamente como sinal da sua particular veneração para com os Padres da Igreja, o cardeal Ratzinger escreveu-me gentilmente como dedicatória no exemplar em espanhol do Informe sobre a fé: “Em comunhão fraterna para monsenhor Herranz, Joseph cardeal Ratzinger, na festa de Santo Atanásio, 1986”.

Bento XVI saúda os peregrinos que o acolhem ao longo das margens do rio Reno em Colônia, em 18 de agosto de 2005

Bento XVI saúda os peregrinos que o acolhem ao longo das margens do rio Reno em Colônia, em 18 de agosto de 2005

A ditadura do relativismo
Não exatamente de Atanásio, o grade teólogo da encarnação do Verbo, mas antes, de Agostinho, que com a sua Cidade de Deus desvinculou o destino do cristianismo do político-cultural da decadente sociedade imperial, foi o que me fez lembrar o tom da homilia que o decano do Colégio cardinalício pronunciou na missa pro eligendo Romano Pontifice da manhã de 18 de abril de 2005.
Um pouco resfriado, mas com a voz serena e pacata, o cardeal Ratzinger referiu-se à situação da Igreja e do mundo e disse-nos: “Quantos ventos de doutrina conhecemos nestes últimos decénios, quantas correntes ideológicas, quantas modas do pensamento [...] Ter uma fé clara, segundo o Credo da Igreja, muitas vezes é classificado como fundamentalismo. Enquanto o relativismo, isto é, deixar-se levar ‘aqui e além por qualquer vento de doutrina’, aparece como a única atitude à altura dos tempos hodiernos. Vai-se constituindo uma ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades”. E na conclusão da histórica homilia dirigida a nós, os 115 cardeais eleitores que estávamos para entrar no conclave, acrescentou: “O nosso ministério é um dom de Cristo aos homens, para construir o seu corpo, o mundo novo”. Um mundo no qual Cristo seja a medida do verdadeiro humanismo e onde um sadio conceito de laicidade permita superar a “ditadura do relativismo”, que instila nas instituições políticas nacionais e internacionais, principalmente na velha Europa, o fundamentalismo laicista, radicalmente hostil a qualquer relevância social e cultural da religião. Este tipo de fundamentalismo certamente não é respeitoso para com o direito à liberdade religiosa proclamado tanto para o âmbito privado quanto social no artigo 18 da Declaração da ONU sobre os direitos fundamentais e universais da pessoa humana.
Foi dito que no conclave vários fatores motivaram a rápida eleição do cardeal Ratzinger: o prestígio intelectual do grande teólogo, a legitimidade institucional do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a fama de homem de profunda vida espiritual e experiência pastoral e também a legitimidade de homem de confiança de João Paulo II. Penso que tudo isso seja verdade, e que estes dois anos de pontificado tenham posto em evidência principalmente a continuidade do tenaz magistério pontifício em pregar Cristo: princípio de vida e de salvação para as almas que Ratzinger, como Wojtyla, sabe ancorar à realidade cotidiana dos fiéis – mas também necessária luz para entender e tutelar tanto a verdade e a dignidade da pessoa humana – a reta antropologia que sintetiza o próprio conceito de lei natural –, quanto o verdadeiro progresso da sociedade, diante da degradação cultural e moral do relativismo. Como João Paulo II também o Papa Ratzinger atrai as multidões tornando compreensível a todos os mais profundos conceitos da teologia católica.

O encontro razão e fé
Como muitos outros, para reagir à campanha midiática e fundamentalista orquestrada pelos países islâmicos contra o Papa, depois do famoso discurso na Universidade de Regensburg, eu também, em uma entrevista de 16 de setembro a um conhecido jornal italiano, exortei à leitura completa da lectio magistralis sobre fé e razão. Só assim – e não em base a parciais sínteses jornalísticas ou superficiais reportagens de televisão – os muçulmanos moderados e razoáveis poderiam entender que as considerações de Bento XVI, não só não eram infamadoras para com o islã, antes, abriam o melhor caminho possível para o necessário diálogo entre as culturas e as religiões.
Com efeito a afirmação que “não agir segundo a razão é contrário à natureza de Deus” constitui o ponto de partida para as sucessivas afirmações do Papa, que, mesmo com o risco de um resumo pobre, ousaria sintetizar assim: “No princípio era o logos, e o logos é Deus: diz-nos o evangelista [João]. Este encontro entre a mensagem bíblica e o pensamento grego não era simples coincidência [...] Trata-se, no fundo, do encontro entre fé e razão, entre iluminismo autêntico e religião [...]”. E depois de ter assinalado os limites da razão puramente positivista, surda às realidades espirituais, Ratzinger acrescenta: “Com toda a alegria face às possibilidades do homem, vemos também as ameaças que resultam destas mesmas possibilidades e devemos perguntar-nos como poderemos dominá-las. Consegui-lo-emos apenas se razão e fé voltarem a estar unidas duma forma nova; se superarmos a limitação autodecretada da razão ao que é verificável na experiência, e lhe abrirmos de novo toda a sua amplitude [...]. Só assim nos tornamos capazes também de um verdadeiro diálogo das culturas e das religiões – um diálogo de que temos necessidade muito urgente”.
Bento XVI durante a visita à Pontifícia Universidade Lateranense, em
21 de outubro de 2006

Bento XVI durante a visita à Pontifícia Universidade Lateranense, em 21 de outubro de 2006

Certamente é um diálogo que deve ser feito no mútuo respeito da dignidade da pessoa humana – valor universal a ser tutelado contra todo o reducionismo relativista – e dos direitos fundamentais que nascem desta dignidade, entre os quais o direito à liberdade religiosa, de culto e de consciência, como o próprio Bento XVI teve o cuidado de repetir várias vezes, mesmo na sucessiva viagem à Turquia. Uma viagem considerada justamente em um primeiro momento “perigosa” até mesmo “arriscada” e depois julgada “triunfal” e resolutiva para o diálogo cristão-muçulmano”. Com efeito, dever-se-ia apostar no sereno delineamento de um diálogo inteligente, que ajude a marginalizar progressivamente a irracionalidade do fundamentalismo islâmico, raiz do homônimo terrorismo e que una o cristianismo e a religião islâmica no compromisso comum de enfrentar, no chamado Ocidente, um tipo de razão que exclui totalmente Deus da visão e da vida moral do homem. O próprio Bento XVI explicou-nos, em 22 de dezembro passado ao falar com a Cúria Romana sobre a sua visita à Turquia: “Trata-se da atitude que a comunidade dos fiéis deve assumir face às convicções e às exigências que se afirmaram no Iluminismo. Por um lado, devemos contrapor-nos a uma ditadura da razão positivista que exclui Deus da vida da comunidade e das organizações públicas, privando assim o homem dos seus específicos critérios de medida. Por outro lado, é necessário aceitar as verdadeiras conquistas do Iluminismo, os direitos do homem e especialmente a liberdade da fé e da sua prática, reconhecendo neles elementos fundamentais também para a autenticidade da religião”.
Este discurso fez-me lembrar da frase sobre os Padres da Igreja daquele jovem da Jornada Mundial da Juventude de Colônia... Penso em Ambrósio e em Agostinho, a sua determinação em enfrentar a decadência do Império e as invasões bárbaras e o início da transmissão à nascente Europa da herança clássica e cristã. E penso a João Paulo II e a Bento XVI, a sua determinação para enfrentar, com as perenes forças criativas da razão humana e da fé no amor divino, a decadência e em fundo a “barbárie” do fundamentalismo laicista (a ditadura relativista de uma sociedade e de uma cultura sem Deus) e o fundamentalismo islâmico (que gostaria de impor ao invés, a fé em Deus por meio do terrorismo físico e moral).
Obrigado, Santidade, por nos ensinar a viver assim com a alma contemplativa imersa na alegre amizade com Cristo e o olhar apostólico atento aos apaixonantes acontecimentos humanos do nosso tempo. Parabéns pelos seus oitenta anos de cristã juventude e desejo-lhe ainda muitos e muitos anos no seu ministério. Todos nós precisamos, cristãos e não cristãos.


Italiano Español English Français Deutsch