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IGREJA ORTODOXA RUSSA
Extraído do número 12 - 2007

ENTREVISTA EXCLUSIVA COM O PATRIARCA DE MOSCOU E DE TODAS AS RÚSSIA

“A tua ressurreição, ó Cristo, nos salvou”


30Dias encontrou em Moscou o patriarca Aléxis II. Seus primeiros passos na fé e na vida sacerdotal, o renascimento da Igreja Ortodoxa russa depois da época soviética, a amizade com o presidente Vladimir Putin e as relações com a Igreja Católica


Entrevista com o patriarca Aléxis II de Giovanni Cubeddu e Fabio Petito


Aléxis II, no século Alexei Michailovich Ridiger, nascido em Tallinn, na Estônia, em 1929, subiu ao trono patriarcal de Moscou em 10 de junho de 1990, três dias depois de sua eleição. Na época, existia ainda a União Soviética, e o que aconteceu em seguida todos sabemos. Mas o presente está restituindo à Rússia o sentido de sua dignidade e um forte papel a exercer na comunidade internacional. Isso se reflete claramente nas palavras que o patriarca Aléxis II nos dirigiu. A cada passagem importante, além disso, o Patriarca nunca deixou de lembrar a 30Dias a harmonia hoje vigente na Rússia entre Igreja e Estado, agradecendo cordialmente ao presidente Vladimir Vladimirovich Putin por isso.
30Dias encontrou Aléxis II no pequeno mosteiro da Misericórdia das Santas Marta e Maria, um antigo abrigo dos pobres a dois passos do Kremlin, no dia seguinte de uma visita sua à lavra da Santa Trindade e de São Sérgio de Radonezh, antigo mosteiro, esplêndido coração espiritual da Igreja Ortodoxa russa.
Estas são as respostas que Aléxis II nos concedeu, numa entrevista exclusiva a 30Dias, realizada em colaboração com o World Public Forum de Moscou, a quem agradecemos sinceramente.

O patriarca Aléxis II na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, a 17 de maio de 2007

O patriarca Aléxis II na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, a 17 de maio de 2007

Santidade, o Senhor pediu aos seus que fossem uma coisa só. A que ponto estamos, na sua opinião, no caminho histórico para essa unidade, depois que, em Ravena, realizou-se a nova sessão do diálogo entre a Igreja Católica e a Ortodoxia?
ALÉXIS II: Indubitavelmente, o mandamento do Senhor “que todos sejam um” (Jo 17, 21) continua a ser atual também para nós. Todavia, não devemos nos esquecer de que qualquer divisão no âmbito eclesial é fruto da vontade humana pecadora, ao passo que a unidade é dom do Espírito Santo. Como mostra a experiência da vida, o processo de reconstrução da unidade requer muito tempo e um empenho sério, e isso vale também para aqueles que compartilham a mesma fé, como no caso da Igreja Ortodoxa russa no exterior, que se reuniu conosco depois de mais de oitenta anos de separação. No caso a que vocês faziam referência, trata-se, além de tudo, de uma divisão milenar...
O testemunho vivo dos padres da Igreja une Moscou e Roma. Em que medida e como a Tradição, que está tanto no coração de Moscou quanto no de Roma, pode encontrar hoje a modernidade?
ALÉXIS II: Estou profundamente convencido de que a fidelidade à antiga tradição apostólica e à herança patrística possa se tornar o fundamento da colaboração entre a Igreja romano-católica e a ortodoxa em seu testemunho dos valores do Evangelho diante do mundo contemporâneo. É evidente que isso é necessário, na medida em que a cultura do relativismo moral imposta à sociedade, o consumismo, a tendência irrefreável ao bem-estar e aos prazeres não são capazes de satisfazer à sede espiritual que está sempre presente no homem. Infelizmente, uma perversa corrida a tal sistema de valores “avançado” se manifesta cada vez com maior freqüência também em algumas confissões cristãs. Por isso a Igreja Ortodoxa e a Católica, tendo raízes comuns no cristianismo apostólico, deveriam unir as forças num seguimento sem compromissos dos mandamentos de Cristo, e não, em vez disso, adaptar-se sempre ao mundo secular que vive em contínua mutação.
Quando encontrou, em agosto passado, o cardeal Etchegaray, o senhor enumerou as muitas iniciativas que católicos e ortodoxos já tomam juntos na Rússia há bastante tempo. Em que medida esse ecumenismo prático, “que vem da base”, ajuda as Igrejas irmãs a se estimarem, e em que medida ajuda também aqueles que não têm nenhum conhecimento da Igreja?
ALÉXIS II: Considero que os contatos pessoais e as iniciativas comuns dos representantes das nossas Igrejas significam muito para a construção de um diálogo autêntico e amplo, que não se restrinja somente ao âmbito oficial. Nós tendemos de qualquer forma ao desenvolvimento dos contatos mais variados com a Igreja Católica. Por ora, devo constatar que o diálogo “a partir da base” se desenvolve mais ativamente entre nós e os católicos que vivem no exterior. Para isso concorrem em boa parte o intercâmbio de peregrinos e os projetos culturais e editoriais comuns. Nós apreciamos muitíssimo o enorme papel que a Igreja Católica exerce no mundo ocidental.
A natureza dos contatos ortodoxos-católicos na Rússia é um pouco diferente. Aqui, os católicos representam uma minoria extremamente reduzida, em boa parte composta por estrangeiros, sobretudo entre o clero. A Igreja Ortodoxa russa, à qual pertence a esmagadora maioria da população, está muito atenta a respeitar o direito dos católicos a uma vida eclesiástica própria na Rússia, e por isso tende à construção de relações cordiais e de respeito mútuo com a comunidade católica russa. Nesse sentido, o diálogo “a partir da base” é simplesmente insubstituível. E, se essa vontade existe de ambas as partes, então tal diálogo deve ajudar a eliminar em nossas relações os vestígios das incompreensões passadas e a evitar novas.
Santidade, seu pai, Michail, o levava, quando o senhor era pequeno, ao mosteiro de Valaam, no lago Ladoga. O que representavam aquelas viagens, a seus olhos de criança? Pode nos contar alguma boa recordação da infância? E o que se lembra de seu orientador espiritual, que foi depois bispo de Tallinn, padre Ioann Bogojavlenskij?
ALÉXIS II: No final da década de 1930, fui duas vezes com meus pais ao mosteiro da Transfiguração de Valaam, no lago Ladoga. Uma experiência que influenciou muito minha vida espiritual. Essas viagens, como também a freqüência ao mosteiro feminino da Dormição de Pjuchtitsa e ao mosteiro masculino da Dormição das Grutas de Pskov, deixaram em mim uma enorme impressão. Em minha alma de criança ficou uma marca indelével dos encontros com os monges de Valaam, homens de fé viva, que visivelmente testemunhavam a ascese e que conservavam as tradições do monaquismo russo. Sou grato a Deus por esses encontros, cuja lembrança tem aquecido meu coração ao longo de toda a minha vida.
Os momentos ligados ao início do meu serviço eclesial são as lembranças mais luminosas da eroso a Deus e à Igreja dos monges de Valaam, de meus pais, de meu orientador espiritual, e nasceu em mim a decisão estável de seguir esse exemplo. No caminho escolhido, fui apoiado por meu orientador espiritual, o protoierej [proto-sacerdote, cargo honorário eclesiástico ortodoxo, correspondente ao monsenhor ocidental, ndr .] Ioann Bogojavlenskij, que depois se tornou o primeiro reitor da renascida Academia Teológica de Leningrado. Lembro-me com gratidão de seu zeloso ministério pastoral, e foi justamente o fogo de sua fé ardente no Senhor que acendeu minha alma. Ao protoierej Ioann estou ligado por muitas coisas. Ele ensinava o catecismo na escola russa em que eu estudava. Padre Ioann era pároco da igreja de Santo Aleksandr Nevskij, em Tallinn, e era em torno dessa igreja que se reunia a comunidade russa. Sob a direção do padre Ioann, eu servia na igreja como ministro, e depois de sua consagração episcopal fui seu primeiro subdiácono. Conservo ainda hoje uma grande lembrança desse homem extraordinário, a quem Deus concedeu o dom da caridade pastoral.
O patriarca Aléxis II com o presidente Vladimir Putin na Catedral de Cristo Salvador, em Kaliningrado

O patriarca Aléxis II com o presidente Vladimir Putin na Catedral de Cristo Salvador, em Kaliningrado

Quando o senhor se tornou patriarca, em 1990, a URSS ainda existia. Hoje não existe mais. Que impressão o senhor tinha da Rússia e da Igreja naquela época, e que impressão tem delas hoje?
ALÉXIS II: O desaparecimento da União Soviética abriu uma nova era na vida da Igreja. Até então, a hierarquia e o laicado se preocupavam principalmente em evitar o definitivo afastamento de nosso povo da Igreja e a total destruição da própria Igreja. A época soviética, para nós, foi um período de luta pela sobrevivência. De qualquer forma, a URSS não foi uma espécie de “império do mal”. Com o sacrifício do trabalho de seus cidadãos, a União Soviética conseguiu grandes resultados em algumas esferas da economia popular e da construção da sociedade. Além disso, nosso país exerceu um papel importante na política mundial. Todavia, a inevitabilidade do colapso desse regime parecia clara desde o momento de seu nascimento, uma vez que em seu fundamento estava o desejo de construir o “paraíso” na terra, contra a vontade de Deus.
Ao me tornar patriarca na época soviética, durante a perestroika, ficou claro para mim que o futuro do nosso povo seria impossível sem a Ortodoxia, a qual não pode se limitar artificialmente às fronteiras eclesiásticas ou ficar entre as quatro paredes dos museus, mas determina a vida da pessoa, do povo e do Estado. Isso, com o sistema que existia então, era impossível. Por isso, nos alinhamos em favor de reformas que levassem a uma natural recusa do domínio de uma ideologia funesta desde seus próprios fundamentos. Mas o radicalismo anti-soviético, incapaz de distinguir o mau do bom, provocou a destruição insensata do Estado, e com isso também sofrimentos inúteis ao nosso povo.
Naquilo em que eu acreditava ontem, também acredito hoje. Estou igualmente convencido de que sem a Ortodoxia é impensável o bem-estar de nosso povo e seu crescimento futuro. No período pós-soviético a vida eclesial na Rússia se transformou, nós fomos testemunhas de um verdadeiro renascimento espiritual. Aumentou o número de igrejas, mosteiros, institutos de formação eclesial. Isso se refletiu positivamente em todos os aspectos da vida dos homens. A volta à cultura religiosa de nossos antepassados mostrou o quanto em nosso país era efêmera e sem fundamentos aquela ideologia que se opunha a Deus.
Por outro lado, ainda hoje não faltam tentativas de pôr obstáculos artificiais ao caminho de colaboração entre Igreja e Estado. Sob o patrocínio do laicismo, algumas forças políticas procuram privar a religião de sua dimensão pública. Creio que uma abordagem como essa deva se restringir de uma vez por todas a ser apanágio da época do ateísmo militante.
O senhor notoriamente trabalha para construir entre Estado e Igreja relações de colaboração mútua, mesmo mantendo a separação. Como se conjuga aqui o “dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”? Mais de uma vez por ano o senhor encontra o presidente Vladimir Putin. Que homem é o presidente e como se trabalha com ele? Enfim, o senhor, Santidade, não deixou de lembrar aos fiéis, em suas últimas mensagens de Natal e de Páscoa, que o caminho positivo de reconstrução da Igreja Ortodoxa russa continua.
ALÉXIS II: O modelo atual das relações entre a Igreja e o Estado russos formou-se levando em conta, de um lado, a experiência de como a Igreja russa viveu no Estado soviético ateu, e, de outro, a influência das mudanças que ocorreram na Rússia no início da década de 1990. No período soviético, não se podia nem falar de relações construtivas entre autoridades eclesiásticas e estatais; o Estado submetia a Igreja a sua autoridade, e aos fiéis era reservado um lugar à margem da vida pública. Um amolecimento das posições do Estado perante a Igreja foi notado durante os festejos pelo milênio do Batismo da Rus’. E, depois da queda do poder ateu, foi dada à nossa Igreja a possibilidade de realizar livremente sua missão na sociedade. As poucas igrejas que naquela época existiam se enchiam de pessoas que tinham o desejo de encontrar a Deus. Os sacerdotes começaram a ser convidados aos programas de rádio e televisão. À Igreja se abriram de par em par as portas das escolas, dos institutos superiores, dos hospitais, das prisões, dos quartéis. Foram reativadas as obras missionárias e de formação das paróquias e dos mosteiros da Igreja Ortodoxa russa. Mudadas as condições históricas, começou-se a formar um novo sistema de relações entre Igreja e Estado, cujo fundamento é o princípio, arraigado na tradição eclesial, da sinfonia entre poder eclesial e temporal.
Hoje, entre a nossa Igreja e o Estado, existem relações de colaboração construtiva e de mútuo apoio social, com respeito e sem ingerência nos negócios internos de ambas as partes. O presidente Vladimir V. Putin deu pessoalmente uma contribuição determinante para o processo de estabilização e para o desenvolvimento dessas relações. Sua atenção às necessidades atuais da Igreja e às tarefas de sua missão na sociedade testemunha a vontade do chefe do Estado de reforçar na vida pública os valores tradicionais, culturais e religiosos. Espero que as nossas boas relações com o atual presidente se mantenham também no futuro.
O mosteiro da Transfiguração de Valaam, no lago Ladoga, em Carelia, Rússia

O mosteiro da Transfiguração de Valaam, no lago Ladoga, em Carelia, Rússia

Como é o quadro social atual em que a Igreja Ortodoxa russa vê a necessária caridade exigida para com os pobres? Numa entrevista anterior a 30Dias, o senhor explicou que na Rússia o fiel sabe bem que “a pessoa vai para o Paraíso por meio da santa esmola”.
ALÉXIS II: A Igreja Ortodoxa não propõe métodos concretos de redistribuição dos recursos materiais excedentes. Qual parte dos frutos do trabalho deve ser destinada ao desenvolvimento da produção e ao pagamento dos salários, e qual parte aos cidadãos necessitados e a programas sociais, é uma questão de consciência de cada homem, e é matéria de regulação dos processos sociais. Todavia, não é possível considerar normal a situação que se veio criando na esfera social, apesar das mudanças positivas dos últimos tempos obtidas graças à atividade do presidente Vladimir V. Putin. Corremos o risco de que a estagnação na esfera social, que ainda hoje observamos, leve a conseqüências seriamente negativas tanto para a estrutura da sociedade quanto para a estabilidade política. A enorme diferença entre as rendas dos ricos e as dos pobres é uma conseqüência direta da situação de domínio existente no sistema econômico do setor de matérias-primas, e da injusta distribuição dos ganhos provenientes da venda dos recursos naturais. É urgente que se reconheça que entre os ricos e os pobres, nos últimos quinze anos, criou-se na Rússia um abismo, e que por vários motivos uma classe média ainda não se formou por completo. Um Estado dessa espécie não pode continuar estável por muito tempo. É preciso uma postura responsável do Estado e do mundo nos negócios diante de faixas da população que, pela idade ou pela condição social, não estão inseridas nas atividades econômicas. Seja como for, não é suficiente, para resolver o problema, apenas a beneficência por parte dos empresários. É urgente reformar estruturalmente a economia com base na moderna tecnologia e apoiar, em nível estatal, as metas de interesse estratégico prioritárias para o país. É necessário um progresso industrial que ofereça novos empregos, e se isso for realizado poderemos dar às pessoas a possibilidade de trabalhar de maneira criativa, de acordo com suas competências, e as tornaremos capazes de garantir uma vida condigna para si e para os seus.
Foi particularmente importante e feliz, em 2007, o reencontro da unidade entre a Igreja que o senhor dirige e a “Igreja Ortodoxa russa no exterior”. O presidente Vladimir Putin felicitou-se publicamente com o senhor, que por sua vez agradeceu publicamente ao presidente pelos esforços que havia feito. No ato de comunhão canônica está escrito que “o humilde Aléxis” e “o humilde Lavr”, o metropolita da Igreja Ortodoxa russa no exterior, sanaram essa divisão histórica. O senhor pode nos dizer como e por que se chegou a essa bela conclusão? O que estava em jogo, para a Igreja e para a Rússia?
ALÉXIS II: Agradeço pela pergunta. Efetivamente, o retorno à unidade eclesial que se realizou em 17 de maio de 2007 representou um acontecimento de importância histórica na vida de nossa Igreja e do povo russo em geral. A divisão, que durou oitenta anos, se devia aos cataclismos históricos de que a Rússia foi teatro no princípio do século XX. Para muitos, coube beber o cálice amargo do exílio, ao passo que aqueles que ficaram na pátria tiveram de assistir à ainda mais terrível perseguição da Igreja. A guerra civil já era uma lembrança do passado, a Igreja tinha finalmente e novamente obtido a liberdade, mas continuavam os efeitos da catástrofe que nos havia atingido: faltava uma comunhão eclesial entre aqueles que viviam na Rússia e uma parte daqueles que tinham ido para o exterior e seus descendentes. O que era preciso para superar essa divisão? Era preciso que todos compreendessem a fundo o que havia acontecido no século XX e tirassem uma lição bem precisa de tudo o que a Igreja tinha tido de sofrer. Nesse plano, assumiu para o Patriarcado de Moscou uma importância decisiva o documento “Fundamentos da doutrina social da Igreja Ortodoxa russa”, aprovado pelo Sínodo dos Bispos de 2000. Naquela ocasião, foram glorificados numerosos confessores da fé do século XX que receberam o martírio pela fé em Cristo na Rússia. Essas atas do Sínodo tiveram um reflexo positivo na Igreja Ortodoxa russa no exterior e começamos a ver os primeiros sinais de uma reaproximação. Os irmãos no exterior passaram a se interessar cada vez mais pela vida na pátria. Vieram cada vez mais vezes à Rússia e aqui assistiram ao espetáculo de um efetivo renascimento da vida religiosa, não apenas fora da Igreja, mas também dentro dela, com seu despertar espiritual e o crescimento da atividade missionária e doutrinal. E gelo da desconfiança começou a derreter.
Além disso, foi determinante para a Igreja Ortodoxa no exterior constatar a qualidade atual das relações entre Igreja Ortodoxa russa e autoridade estatal na Rússia. Em seu estatuto, estava escrito que a Igreja russa no exterior se separava da Igreja na pátria apenas temporariamente, “até o desaparecimento do regime inimigo de Deus na Rússia”. Nesse sentido, para a cúpula da Igreja russa no exterior foi de fundamental importância o primeiro encontro pessoal tido com Vladimir V. Putin. Nossos irmãos tiveram, assim, a possibilidade de se convencer pessoalmente de que não tinham à sua frente um representante do “regime inimigo de Deus”, mas um devoto russo ortodoxo. Impressão que se reforçou ainda mais ao longo dos últimos contatos. Por isso tive de agradecer de modo particular ao presidente de nosso país no dia da assinatura do Ato de Comunhão Canônica na Catedral de Cristo Salvador.
Obviamente, para que a unidade se tornasse realidade depois de uma divisão tão longa, foi necessário percorrer um longo caminho. As comissões responsáveis pela condução do diálogo, que durou três anos, realizaram um trabalho notável para que se alcançasse a plena unidade da Igreja Ortodoxa russa, desfazendo passo a passo todos os nós mais emaranhados. Todos, porém, estão convencidos, creio eu, de que o elemento decisivo não foi tanto a preparação dos documentos, embora importantes, quanto o gradual conhecimento recíproco por meio da experiência da oração e da vida cristã. Foi o Espírito de Deus que nos conduziu à unidade, isso é o que percebeu quem tomou parte dos diálogos. E onde age o Espírito Santo desaparecem as ofensas humanas transitórias, as incompreensões e as parcialidades que por longos anos tornaram maior a separação. O amor e a alegria no Senhor vencem.
Assim, a Ascensão do Senhor se tornou para nós o dia do triunfo do amor, do perdão, da restauração dos laços rompidos, a renovação da sucessão entre velha e nova Rússia, festejos pela unidade dos russos, “dispersos pela pátria”. A Igreja russa mostrou-se a toda a comunidade russa, e aos homens de todo o mundo, como exemplo edificante de união, em cuja base está Cristo, e que é testemunhada pelos mártires de Cristo.
O patriarca de Moscou, Aléxis II, e o metropolita Lavr, líder da Igreja Ortodoxa russa no exterior, na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, a 17 de maio de 2007, durante a cerimônia que pôs fim à divisão entre as duas Igrejas, que durou mais de oitenta anos

O patriarca de Moscou, Aléxis II, e o metropolita Lavr, líder da Igreja Ortodoxa russa no exterior, na Catedral de Cristo Salvador, em Moscou, a 17 de maio de 2007, durante a cerimônia que pôs fim à divisão entre as duas Igrejas, que durou mais de oitenta anos

No primeiro grande encontro inter-religioso realizado em São Petersburgo, em 2006, vocês quiseram inserir no documento final frases como: “Rejeitamos as duplas medidas nas relações internacionais”, ou: “O que torna realmente eficiente a economia é que ela dê benefícios ao povo”. A que vocês se referiam, especificamente? E como sua Igreja vê e julga estes últimos anos vividos pela política internacional, desde 11 de setembro?
ALÉXIS II: A reunião de cúpula mundial dos líderes religiosos foi uma manifestação do desejo unitário dos líderes religiosos de combater as tentativas de usar a religião como fator de contraposição e de conflito, e expressou-se também a respeito de muitas questões problemáticas atuais. Em particular, os líderes religiosos concordaram por unanimidade com o fato de que as duplas medidas nas relações internacionais contemporâneas se tornaram expressões de injustiça, já que permitem a alguns Estados que julguem arbitrariamente os outros e ditem regras de comportamento que eles mesmos, em primeiro lugar, não respeitam. Na mensagem da reunião de cúpula se identificou também o critério de eficácia da economia, compartilhado pela maioria das realidades religiosas mundiais: a eficácia da economia não está em sua capacidade de produzir lucro, mas na de trazer bem-estar às pessoas. Do contrário, toda a atividade econômica perde seu significado.
O documento conclusivo da cúpula se tornou de certa forma uma resposta aos acontecimentos de 11 de setembro de 2001, uma vez que nele está contida a recusa do terrorismo e do extremismo, atrás dos quais está uma motivação pseudo-religiosa. Considero que a luta contra o terrorismo deve consistir em privá-lo do terreno sobre o qual nasce; hoje esse terreno é a ignorância religiosa, que se manifesta na falta de compreensão da própria tradição religiosa e da moral a ela ligada. São conseqüências disso a ofensa aos sentimentos religiosos, a profanação das coisas sagradas, a propaganda do egoísmo e do arbítrio generalizado. Tudo isso, em seu conjunto, provoca o fanatismo. Depois de 11 de setembro foram empreendidas numerosas ações de força contra os terroristas, mas é preciso se perguntar se aumentou correspondentemente a atenção às convicções religiosas das pessoas, e se ao tomar decisões globais foram levadas principalmente em consideração, respeitosamente, as tradições religiosas. Estas são as perguntas que nos fazemos ao avaliar a política mundial dos últimos anos.
Ao mesmo tempo, não podemos, porém, deixar de sublinhar que uma idéia muito promissora da cúpula foi acolhida na proposta, lançada pela Rússia na 62º Assembléia Geral da ONU, de que se crie nas Nações Unidas um conselho consultivo sobre a religião. Creio que essa iniciativa, em caso de sucesso, poderá favorecer a realização de um diálogo efetivo entre as diversas visões de mundo e conduzirá à aprovação de decisões importantes para todo o planeta.
Continuemos no tema da solicitude da Igreja pela justiça social no mundo e perante os homens: a encíclica de Paulo VI Populorum progressio já tem mais de quarenta anos. Como o senhor a recorda? Muitas de suas partes parecem realmente terem sido escritas hoje.
ALÉXIS II: Obviamente, são bem conhecidos os documentos da Igreja romano-católica, nos quais se enfrenta o tema da justiça social, fala-se da luta contra a pobreza e dos outros problemas da sociedade contemporânea. Sobre muitos pontos esses pensamentos estão em sintonia com os nossos. Muitos compreendem que o mundo não está se tornando mais justo, e aos cristãos de hoje, mais ainda que há quarenta anos, cabe defender com a palavra e com as ações quem sofre, quem é oprimido, quem vive na pobreza. A Igreja Ortodoxa russa estuda e compartilha as preciosas experiências do serviço social dos cristãos do Ocidente, tão necessárias também para a nossa atividade nessa esfera. De fato, nos longos anos de perseguição por parte do poder ateu, nossa Igreja não pôde conduzir essa obra: qualquer atividade social sua era ordinariamente vetada pelo Estado. Só há alguns anos nossa Igreja teve a possibilidade de fazer renascer sua rica tradição de serviço social e caritativo, e de desenvolvê-la em formas novas, utilizando de modo profícuo a experiência de outros. Aliás, os resultados desse renascimento são impressionantes: praticamente em todo o espaço pós-soviético a Igreja Ortodoxa se tornou um dos principais sujeitos na organização e na participação do trabalho social, é o primeiro defensor dos despossuídos e dos marginalizados, e angariou a confiança deles. Considero isso um claro sinal da ação da graça de Deus no mundo, que não se esgota nunca e a todos socorre.
“Nossa Igreja compartilha a convicção de que um conflito global só poderá ser prevenido e os conflitos locais resolvidos se todas as nações crescerem livremente e se todas as civilizações históricas puderem sem restrições influenciar os destinos do mundo. Nossa Igreja tem o desejo de continuar a desenvolver o diálogo com os líderes religiosos iranianos.” Santidade, o senhor disse isso na última sessão de diálogo entre Ortodoxia russa e islã, em Teerã, já há dois anos. Esta poderia parecer sua resposta à tese do conflito de civilizações, mas é também mais do que isso. Pode nos explicar? No seu modo de ver, que contribuição a grande tradição religiosa e cultural russa poderia trazer ao progresso do diálogo entre as civilizações para a construção de uma ordem mundial mais feita à medida do homem? E, em relação ao islã que vive nas terras ortodoxas russas, como vai a coexistência hoje?
ALÉXIS II: A Rússia é um lugar único no mundo, onde o islã e o cristianismo convivem pacificamente há mil anos. Entre nós nunca houve nenhuma guerra confessional, ao passo que a história de outros países da terra conheceu numerosas e sangrentas guerras de religião. Daí se compreende que os povos na Rússia tenham aprendido a viver juntos, a ter respeito mútuo, a manter-se em seu devido lugar, a não dirigir ofensas. É mais evidente hoje do que nunca o extraordinário potencial de conciliação presente nas religiões, sobretudo no que diz respeito às relações inter-étnicas. Estou convencido de que os expoentes das religiões tradicionais, todos juntos, possam e devam responder ao grande número de desafios e de problemas muito graves, convidando seus fiéis à paz e à concórdia. De fato, a posição de conciliação dos chefes religiosos pode servir para evitar muitos conflitos, para impedir a transformação dos conflitos internacionais em conflitos inter-religiosos, para pôr um limite na difusão de perigosos movimentos pseudo-religiosos.
A Igreja Ortodoxa russa sempre convidou e convida a cultivar um diálogo paritário e respeitoso entre religiões, culturas e civilizações em nível nacional, regional e internacional. É particularmente importante unir os esforços para ajudar no desenvolvimento do direito internacional, na participação da superação de situações de conflitos, na compreensão sem preconceitos dos vários modelos de interação entre religião, Estado e sociedade.
Uma procissão em torno da Catedral 
da Dormição, no mosteiro da Santa Trindade e de São Sérgio de Radonezh, em Sergijev Posad, na região de Moscou

Uma procissão em torno da Catedral da Dormição, no mosteiro da Santa Trindade e de São Sérgio de Radonezh, em Sergijev Posad, na região de Moscou

O que significou para o senhor o recente texto do papa Bento XVI sobre o latim na liturgia? Sua Igreja também se vê hoje tendo de enfrentar questões litúrgicas delicadas? Aliás, o senhor leu a recente encíclica do Papa aos católicos chineses? Por ocasião dos oitenta anos do Papa, o senhor escreveu, entre outras coisas, que “o que torna a sua posição convincente é que o senhor, como teólogo, não é meramente um estudioso do pensamento teórico, mas sobretudo um cristão sincero e profundamente devoto que fala da abundância de seu coração (cf. Mt 12, 34)”. Em que o senhor reconhece hoje maior sintonia com o papa Bento XVI?
ALÉXIS II: Creio que a questão da língua litúrgica e as relações entre os diferentes componentes da Igreja romano-católica sejam questões internas. Por outro lado, para nós, que somos uma Igreja para a qual o conceito de tradição tem um grande significado, é bem compreensível e familiar a busca incessante de encontrar formas eficazes de harmonização entre a experiência multissecular e as realidades objetivas e exigências contemporâneas. Vejo nisso um dos aspectos mais válidos da obra do atual papa de Roma, Bento XVI.
O papa Bento XVI afirmou que considera uma tarefa dele trabalhar para a realização ainda incompleta do Concílio Vaticano II, sem seguir a lógica da “ruptura”, mas a da “continuidade”. Como o senhor avalia essa afirmação, de Moscou?
ALÉXIS II: Sem dúvida nenhuma, acolhemos com favor qualquer tentativa de superar o máximo possível as divisões. Já é uma questão diferente a que diz respeito à natureza de uma ou de outra divisão. E a compreensão das causas ajuda a encontrar as soluções. Com todo o respeito e a salvaguarda das diferenças, a busca daquilo que une, e não do que divide, mostra-se eficaz na maioria dos casos. Sem cair num excessivo otimismo, eu gostaria de dizer que justamente nisso vejo uma perspectiva particular para as relações entre ortodoxos e católicos.
Santidade, foram publicados recentemente diversos livros que revisam o chamado “segredo de Fátima”; falando-se numa parte desse segredo da fé cristã na Rússia. Qual é seu juízo sobre toda essa questão?
ALÉXIS II: Digo, de imediato, que é difícil para mim avaliar essas aparições. Nós prestamos atenção em tudo o que se disse e se diz da Rússia no Ocidente, tanto mais num contexto de fé cristã. Todavia, sobre essa questão, é necessário notar que muitas realidades da vida espiritual dos cristãos ocidentais fazem parte somente de sua experiência, a qual apresenta claras diferenças em relação à tradição ortodoxa. Nós temos respeito pela devoção na Igreja Católica às aparições de Fátima, mas, de nossa parte, é difícil pronunciar qualquer parecer específico a esse respeito. Trata-se de uma experiência espiritual particular da Igreja Católica.
Obrigado, Santidade.


(Fábio Petito é docente da Universidade de Sussex, Grã-Bretanha, e da Universidade de Nápoles “L’Orientale”)


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