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SANTOS
Extraído do número 04 - 2004

A necessidade dos milagres


Entrevista com Michele Di Ruberto, subsecretário da Congregação para as Causas dos Santos. Com quais procedimentos um fato extraordinário é reconhecido como milagre pela Igreja. E por que ainda hoje é necessário nas causas de beatificação e de canonização


de Stefania Falasca


O cardeal José Saraiva Martins enquanto cumpre a peroração das seis causas de canonização no consistório ordinário público realizado na Sala Clementina do Palácio Apostólico Vaticano, em 19 de fevereiro de 2004

O cardeal José Saraiva Martins enquanto cumpre a peroração das seis causas de canonização no consistório ordinário público realizado na Sala Clementina do Palácio Apostólico Vaticano, em 19 de fevereiro de 2004

“A coisa mais incrível dos milagres é que eles acontecem” dizia o escritor inglês Gilbert Keith Chesterton. Isso mesmo. Pura gratia gratis data. Disso dom Michele Di Ruberto não há dúvida, pois falando de milagres, ou melhor de confirmação de milagres, pode-se considerar um especialista. Especialista em matéria jurídica, civil e canônica, há 35 anos em atividade junto à Congregação para as Causas dos Santos, da qual atualmente é o subsecretário, já analisou centenas de casos extraordinários, diante dos quais a ciência teve que se render.
Desde 1984 é o responsável pelo setor de milagres. Os casos relatados e aprovados são 346 e cerca de 90 estão na lista de espera para serem examinados. Há vinte anos é sua competência participar da Consulta médica, preparar e redigir, junto com os postuladores, a Positio super miro, ou seja, o conjunto das acta causae e das acta processus referentes aos milagres. Pois, talvez nem todos saibam que provar e atestar a autenticidade de um fato prodigioso é fruto de um minucioso procedimento de investigação e de um rigoroso exame científico e teológico. E não é só isso. Exatamente o processo para a constatação de um milagre acontecido por intercessão de um candidato às honras dos altares é o ponto central na realização de uma causa de canonização.
Por isso, ao falarmos com dom Di Ruberto, quisemos olhar de perto a experiência histórica da Igreja nessa matéria, esclarecendo alguns aspectos relacionados a esses eventos extraordinários, e entrar nos meandros dos procedimentos que levam à aprovação de um milagre. Começamos esta viagem partindo justamente do reconhecimento do fato prodigioso atribuído à intercessão da beata Joana Beretta Molla, médica e mãe de família, que no dia 16 de maio será proclamada santa. De sua causa Di Ruberto foi também, por nomeação pontifícia, relator.

A canonização de Joana Beretta Molla é iminente. O decreto sobre o milagre, acontecido com a sua intercessão, já foi promulgado em dezembro passado. O senhor pode nos dizer, antes de tudo, no que consiste este decreto?
MICHELE DI RUBERTO: O decreto é o último ato que conclui o caminho jurídico para a constatação de um milagre. É um ato jurídico da Congregação para as Causas dos Santos, aprovado pelo papa, com o qual um fato prodigioso é definido como verdadeiro milagre. Na Summa theologica, Santo Tomás define milagre como “aquilo que é feito por Deus fora da ordem da natureza”. Portanto, considera-se milagre um fato que supera as forças da natureza, que é realizado por Deus fora do ordinário de toda a natureza criada, por intercessão de um servo de Deus ou de um beato.
Dom Michele Di Ruberto

Dom Michele Di Ruberto

Então, sem a aprovação de milagres acontecidos por intercessão de um servo de Deus ou de um beato não se pode levar uma causa a conclusão.
DI RUBERTO: Atualmente para a beatificação de um servo de Deus não mártir a Igreja pede um milagre, para a canonização (também de um mártir) pede um outro milagre. Somente os supostos milagres atribuídos pela intercessão de um servo de Deus ou de um beato post mortem podem ser objeto de verificação. A partir do momento em que o inquérito é estabelecido, que é um verdadeiro processo, este é conduzido separadamente do procedimento sobre as virtudes e sobre o martírio. No decorrer do procedimento são recolhidas e avaliadas todas as provas adquiridas com relação tanto ao fato prodigioso em si mesmo, para comprovar o evento como tal, quanto a atribuição daquele fato à intercessão de um determinado candidato às honras dos altares.
Como se realizam os trâmites jurídicos de constatação de um milagre?
DI RUBERTO: Os trâmites processuais para o reconhecimento do milagre acontecem segundo as novas normas estabelecidas em 1983 pela constituição apostólica Divinus perfectionis Magister. A nova legislação estabelece a distinção de dois procedimentos: o diocesano e o da Congregação, dito romano. O primeiro se realiza no âmbito da diocese na qual aconteceu o fato prodigioso. Por exemplo, no caso do milagre atribuído a Joana Beretta Molla a primeira fase se deu na diocese de Franca, Estado de São Paulo. O bispo abre a instrução sobre o pressuposto milagre na qual são reunidas tanto os depoimentos das testemunhas oculares interrogadas por um tribunal devidamente constituído, como a completa documentação clínica e instrumental inerente ao caso. No segundo, a Congregação examina os atos processuais recebidos e as eventuais documentações suplementares, pronunciando enfim o juízo de mérito.
Mas por que os milagres são tão importantes? Não se pode declarar a santidade em base às provas que demonstram o exercício das virtudes cristãs em grau heróico?
DI RUBERTO: Declarar a santidade de uma pessoa não é como designar um título cavalheiresco ou honorífico. Mesmo estando no céu pode ser que não seja digno, como parece, de um culto público. Estabelecer a heroicidade das virtudes através de todo o trabalho de coleta das provas testemunhais e documentárias, de aprofundamento histórico-crítico, de avaliação teológica até chegar à certeza moral e à formulação do juízo de mérito, por mais fundamentado, sério e minucioso, é algo sempre sujeito a possíveis erros. Nós estamos sempre sujeitos ao erro, ao engano, mas os milagres, ao invés, somente Deus pode realizá-los, e Deus não engana. São um dom gratuito de Deus, um sinal certo da revelação, destinado a glorificar Deus, a estimular e reforçar a nossa fé e, portanto, são também uma confirmação da santidade da pessoa invocada. Portanto, o seu reconhecimento consente dar com segurança a concessão do culto.
Enfim, os santos são feitos para os milagres e estes, em uma causa de canonização, representam também uma sanção divina a um juízo humano...
DI RUBERTO: Exatamente. Por isso é de importância capital conservar a sua necessidade nas causas de canonização.
E a Igreja sempre atribuiu a mesma importância aos milagres?
DI RUBERTO: Sempre. Os milagres sempre tiveram uma relevância central. Desde os primeiros séculos quando os bispos deviam consentir o culto para alguém que não fosse mártir, antes de avaliar a excellentia vitae e as virtudes, consideravam as provas da excellentia signorum. Depois, com o passar dos séculos estabeleceram-se e aperfeiçoaram-se os procedimentos de averiguação sobre os milagres antes de proceder a uma canonização. Urbano II, em 1088, aprovou que “não se pode inscrever no cânon santos cujos milagres não tenham sido vistos por testemunhas que declarem tê-los presenciado com os próprios olhos e sejam confirmados pelo assentimento do Sínodo”. A partir do século XIII o aspecto médico legal adquire importância e, com a instituição da Congregação para os Ritos em 1588, reorganiza-se a matéria. São sugeridos critérios, como a necessidade de interrogar as testemunhas qualificadas e requisitar um parecer médico, para que o juízo seja dado em base às perícias médico-legais e em base às testemunhas oculares. Bento XIV especificou os critérios de avaliação e instituiu o primeiro conselho de médicos. Toda essa secular elaboração confluiu no Código de Direito Canônico de 1917. Mas o procedimento tinha um ponto fraco: a falta de distinção entre o juízo médico-científico e o teológico. Com efeito, os teólogos deviam dar um parecer vinculante sobre as conclusões médicas sem ter competência na matéria. Por isso, em 1948, Pio XII decidiu constituir a Comissão médica, como organismo específico de avaliação científica e, a partir de então até hoje, são feitos dois exames: médico e teólogo.
No que consiste o juízo da Consulta Médica?
DI RUBERTO: O seu exame e a discussão final se concluem estabelecendo exatamente o diagnóstico da doença, o prognóstico, a terapia e a sua solução. A cura, para ser considerada objeto de um possível milagre, deve ser julgada pelos especialistas como rápida, completa, duradoura e inexplicável segundo os atuais conhecimentos médico-científicos.
Por quem é formada a Consulta? São todos médicos católicos?
DI RUBERTO: É um órgão colegial constituído por cinco médicos especialistas mais dois peritos internos. Os especialistas que participam variam de acordo com os casos clínicos apresentados. E não se exclui a solicitação de consultas ou convocações de outros peritos provenientes também do exterior. O juízo dos médicos é estritamente científico, eles não se pronunciam em mérito ao milagre, portanto se são ateus ou de outras religiões, não é relevante. Um dos peritos do fato prodigioso atribuído a Edith Stein que deu a sua contribuição como testemu­nha qualificada foi, recordo bem, um conhecido médico de Boston de religião judaica. Mas há também muitas perícias e relatórios redigidos por médicos muçulmanos e de outras confissões.
Como são qualificadas as modalidades de um milagre?
DI RUBERTO: O milagre pode superar as capacidades da natureza: ou quanto à substância do fato ou quanto ao sujeito, ou apenas quanto ao modo de se produzir. Portanto distinguem-se três graus de milagres. O primeiro grau é representado pela ressurreição dos mortos (quoad substantiam). O segundo refere-se ao sujeito (quoad subiectum): a doença de uma pessoa é considerada incurável, no seu decurso pode ter destruído ossos ou órgãos vitais; neste caso não só se confronta a cura completa, mas também a reconstituição integral daqueles órgãos (restitutio in integrum). Há também um terceiro grau (quoad modam): a cura de uma doença, que a medicina poderia conseguir somente depois de um longo período e, ao invés, acontece instantaneamente.
Também as conversões são fatos prodigiosos. Porém atualmente os milagres de ordem moral não são considerados nas causas. Por quê?
DI RUBERTO: Ninguém pode contestar que as imprevistas conversões de pecadores ou de ateus como as de São Mateus, do bom ladrão, de São Paulo, sejam verdadeiros milagres. Todavia, mesmo sendo verdadeiros, tais milagres não são controláveis, por isso dificilmente poderiam adquirir um valor provativo, pois seria extremamente difícil descrever e definir semelhantes eventos.
Então somente os que se referem a curas físicas podem ser objeto de exame.
DI RUBERTO: Não. Também os fatos prodigiosos de ordem técnica.
Ou seja?
DI RUBERTO: Nos Evangelhos estão descritos milagres como estes: a transformação da água em vinho nas núpcias de Caná, ou a multiplicação dos pães e peixes, por exemplo. São eventos analisáveis científica e tecnicamente, dos quais é possível demonstrar a inexplicabilidade.
E acontecem muitos desses fatos?
DI RUBERTO: O número é restrito. Foi clamoroso, por exemplo, o caso da multiplicação do arroz, feito prodigioso que aconteceu em um refeitório de pobres na Espanha por intercessão do frei Juan Macias, canonizado em 1975. Mas também nas últimas beatificações e canonizações apresentaram-se casos deste gênero. Como por exemplo o do submarino “Pacocha”, afundado nas águas peruanas em 26 de agosto de 1988. Quando estava em uma profundidade de 15 metros com uma pressão de água de 3,8 toneladas, o comandante, que invocara a ajuda da serva de Deus Maria Petkovic, conseguiu abrir com extrema facilidade a porta do submarino e desse modo salvar a tripulação. Nesse caso o exame não cabe aos médicos, mas reune-se um grupo consulente de peritos técnicos ad hoc que estudam minuciosamente cada elemento.
E se houver controvérsias?
DI RUBERTO: Se se apresentam controvérsias, o grupo consultor suspende a avaliação e solicita novas perícias e documentações. Quando se alcança a maioria ou a unanimidade do voto, o exame passa para o grupo consulente de teólogos.
Qual é o objeto específico de juízo por parte dos teólogos?
DI RUBERTO: Os consultores teólogos, partindo das conclusões da Consulta Médica, são chamados a individualizar o nexo de causalidade entre as orações ao servo de Deus e a cura ou outro inexplicável evento de ordem técnica, e exprimem o parecer de que o fato prodigioso é um verdadeiro milagre. Depois de os teólogos expressarem e redigirem seu voto, a avaliação passa à Congregação dos Bispos e Cardeais, os quais depois de terem ouvido a narração feita por um “relator”, discutem todos os elementos do milagre: então cada componente da congregação dá o seu juízo a ser submetido à aprovação do papa, o qual determina o milagre, e estabelece a promulgação do decreto.
Já aconteceu de o papa, depois de ter ouvido as conclusões, ter se pronunciado de modo diverso?
DI RUBERTO: Já aconteceu, mas não em tempos recentes, que alguns pontífices tenham mandado adiar para rever o caso. Antigamente as técnicas de investigações científicas não eram tão aperfeiçoadas e evoluídas, não havia a disponibilidade de meios para diagnósticos sofisticados, como os que temos hoje, a ponto de fornecer garantias idôneas. Além disso, o número dos milagres solicitados para as beatificações e canonizações era maior.
Porém, as normas atuais não fixam o número de milagres solicitados. O senhor acha que poderia aumentar novamente?
DI RUBERTO: O número atual é uma praxe estabelecida com Paulo VI. Não penso que seja preciso acrescentar outro milagre para a canonização. Pode acontecer que algum candidato tenha mais fatos prodigiosos com todos os requisitos a serem considerados idôneos para um processo. Duas provas consideradas absolutamente incontestáveis podem bastar.
O fato extraordinário atribuído a Joana Beretta Molla aconteceu há menos de quatro anos. O seu reconhecimento foi rápido.
DI RUBERTO: Já em abril do ano passado a Consulta Médica tinha se pronunciado unanimemente sobre a extraordinariedade e inexplicabilidade científica. Também o voto dos teólogos foi unânime.
O senhor foi relator da sua causa de canonização...
DI RUBERTO: A sua causa, de grande importância eclesial, foi desejada por Paulo VI. Ele ficou impressionado com a figura dessa senhora da Ação Católica e chegou a definir a oferta da sua vida como “uma meditada imolação”. Como eu fazia parte da Ação Católica fui designado relator ad casum.
Qual aspecto mais o impressionou na história do milagre atribuído a Joana Beretta Molla?
DI RUBERTO: Quando acontece um milagre, o benefício não é apenas para os diretos interessados mas para todos os fiéis. O fato prodigioso de uma menina ser formada no ventre materno com total ausência do líquido amniótico, é um milagre que se liga particularmente à vida e à obra de Joana Beretta Molla, mãe e médica pediatra. Também, é singular que este milagre, pela sua intercessão te­nha acontecido como o precedente para a beatificação, no Brasil, lugar que Joana Beretta Molla na sua juventude tinha sempre sonhado trabalhar como médica voluntária. Justamente, o Concílio Vaticano II, falando da intercessão dos santos enquadrou-a na vital união de caridade que devemos ter para com eles. O vitale consortium pelo qual podemos tomar parte dos benefícios procurados por seus méritos e, amando-os com a caridade que leva a Deus, formamos juntos um só corpo, uma só família, uma só Igreja.


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